A jornalista, o cadáver flatulento e a escravatura para o Óscar - três histórias de Sundance
O festival de cinema independente termina no domingo, mas já tem histórias de Antonio Campos, Daniel Radcliffe e Christine Chubbuck para contar.
Até domingo, o cinema independente está hospedado em Park City, no estado do Utah, convidado por Robert Redford e cheio de estrelas mais ou menos independentes na cidadezinha montanhosa. O Festival de Sundance está também a encher-se de histórias, nomeadamente a de Daniel Radcliffe como um cadáver que esvaziou salas, a do filme The Birth of a Nation, que já pôs a crítica a pensar nos Óscares – de 2017 –, e os dois filmes sobre a jornalista Christine Chubbuck.
Ninguém hesita em proclamar que Swiss Army Man era um dos filmes mais aguardados do festival. Harry Potter como cadáver flatulento, ou mais um capítulo da carreira de Daniel Radcliffe a afastar-se da sua personagem juvenil com papéis fora do mainstream. Daniel Kwan e Daniel Scheinert dirigem Paul Dano como Hank, um homem que planeia o seu suicídio numa ilha deserta e que encontra um cadáver que acaba por se tornar o seu companheiro – como os cadáveres tendem a fazer, acumula gases no seu interior.
A flatulência de Manny pontua o filme descrito pelo Indiewire como um “puzzle excêntrico” com uma intriga inédita no cinema. “A mais estranha comédia de amigos alguma vez feita”, continua a publicação, um dos filmes “que mais dividem” do festival, com um “estilo de realismo mágico”, atesta a Variety, “uma fábula bizarra” que começou a esvaziar a sala cheia pouco depois dos primeiros... flatos. Masturbação, o sentido da vida, beijo entre Dano e o cadáver Radcliffe, tudo fruto de uma “piada de peidos” que originou o filme, segundo um dos seus realizadores, Daniel Scheinert.
Elogiado e detestado, explorador das fronteiras do gosto e dos limites do público, é um dos filmes-sensação do festival, esse fazedor de buzz para prémios muito distantes – da colheita de 2014 de Sundance saíram os nomeados Whiplash e Boyhood, este ano está lá Brooklyn e de tempos mais recuados lembram-se Precious, Despojos de Inverno, Uma Família à beira de Um Ataque de Nervos ou mesmo Quatro Casamentos e Um Funeral (e sensações como Cães Danados). A menção ao Óscar não tardou a surgir este mês em Sundance, com a polémica das nomeações “brancas” deste ano em pano de fundo, sobre o aclamado The Birth of a Nation. O filme de Nate Parker “pode ser o segundo contender de relevo para os Óscares a estrear-se em Sundance”, escreve um dos editores da Variety – o outro candidato a nomeado é Manchester by the Sea, de Kenneth Lonergan, em que Casey Affleck se muda para um vilarejo para cuidar do sobrinho e que foi muito bem recebido em Park City. No total, há 123 filmes em Sundance desde dia 21, entre nomes como o de Todd Solondz, Kelly Reichardt ou Richard Linklater.
Mas voltemos a The Birth of a Nation, com a crítica a destacar tanto a realização quanto a interpretação de Nate Parker (que também escreve o argumento). “Sacrifiquei tudo”, disse sobre o investimento pessoal e financeiro de sete anos que fez no filme, pontuados pelas recusas dos financiadores pelo tema do filme e pelos negros como protagonistas. The Birth of a Nation tem um título de óbvia alusão ao histórico de 1915 de D.W. Griffith (cujo retrato dos negros e do Ku Klux Klan lhe mereceu controvérsia) e, em 2016, versa agora sobre uma rebelião de escravos verídica na América em 1831 encabeçada por Nat Turner (interpretado por Parker).
Ovação inflamada de pé (entre a audiência estava Spike Lee), elogios dos críticos para um drama descrito como “brutal” pela Variety, que está “em sintonia com o actual estado de fricção racial intensificada” e que pode beneficiar comercialmente do sucesso de 12 Anos Escravo e Django Libertado, como analisa o crítico Todd McCarthy na Hollywood Reporter. Parker abandonou o seu trabalho como actor durante dois anos para fazer The Birth of a Nation e fê-lo “por uma razão, a esperança de criar agentes de mudança. [Para que] as pessoas possam ver este filme e ser afectadas” e “vejam que havia sistemas em campo que eram corruptos” – “Só quero que você, se for afectado e se ficar tão (co)movido, se pergunte: ‘Há sistemas na minha vida que precisem de atenção, sejam eles raciais ou de género?’”
E chegamos a Christine Chubbuck ou a Christine, de Antonio Campos (de Afterschool, 2008) – e a Kate Plays Christine, de Robert Greene –, que se enquadra como documentário ao acompanhar a preparação da actriz Lyn Sheil para o papel de Chubbuck numa longa-metragem; ambos contam uma história cujo fim é conhecido. A jornalista norte-americana, uma jovem de 29 anos descrita como inteligente, ambiciosa e insatisfeita com o seu trabalho numa estação televisiva de âmbito local, suicidou-se em directo com uma arma em 1974.
Falar de Christine é lembrar Escândalo na TV (1976) – muito porque este último se inspirou na trágica história de Chubbuck. E Christine com Rebecca Hall e Michael C. Hall como protagonistas e o realizador Antonio Campos, saído da adolescência e menos avant-garde, como diz o crítico Guy Lodge, apesar de manter o seu olhar artístico, é certamente um dos filmes mais mediáticos nesta edição de Sundance.
Já Kate Plays Christine, merecedor de quatro estrelas pela crítica do Guardian, tem um olhar meta sobre a história que procura contar – “tem o seu verdadeiro foco menos no caso específico” e no que levou a jornalista a cometer aquele que se considera ser o primeiro suicídio em directo na televisão, “e mais na procura de compreender o incognoscível”, escreve Jordan Hoffman no diário britânico. Uma actriz (Sheil pode ser vista em Listen up Philip ou House of Cards) que se prepara sob o olhar da câmara para um filme (que não existe) e cuja interpretação está a ser elogiada, bem como a abordagem do realizador: “sublinham a natureza incognoscível do incidente”, escreve a Hollywood Reporter, “enquadrando-o tanto com a sensibilidade do seu tempo quanto com os ângulos contemporâneos que desencadeiam questões morais e éticas complexas”.
O facto de dois filmes, embora de géneros distintos, sobre a jornalista estarem em contenda no festival é “uma total coincidência”, disse o nova-iorquino de origem italo-brasileira Antonio Campos ao Indiewire, “mas talvez se possa ler algo mais no facto de ela ser particularmente relevante agora, ou que pareça mais relevante do que nunca”.