Inflação das notas obriga a repensar todo o sistema de acesso ao superior, defende investigador
Novo indicador do Ministério da Educação confirma práticas de “desalinhamento” das notas na maioria das escolas. Várias respondem dizendo que é “injusto” e “redutor”.
Entre 2010/2011 e 2014/2015, houve 15 escolas que deram notas aos seus alunos consideravelmente mais altas do que as atribuídas ao resto dos estudantes do país que tiveram os mesmos resultados nos exames do 11.º e 12.º ano. No grupo das escolas que alegadamente têm “inflacionado” as notas dadas pelos professores, estas 15 fazem parte dos 10% maiores desvios para cima: dez são colégios, a maioria do Norte do país, e entre eles figuram alguns com lugares cativos no topo dos rankings das escolas, os quais só têm em conta as médias obtidas nos exames.
A expectativa apresentada pelo Ministério da Educação (ME) aquando do lançamento, no início do ano, do novo “Indicador de Alinhamento das notas internas atribuídas pelas escolas com as notas atribuídas pelas outras escolas do país a alunos com resultados semelhantes nos exames nacionais” foi a seguinte: saber quais as escolas que dão notas mais altas ou mais baixas do que o esperado poderá permitir que estas corrijam as suas práticas e garantir, assim, uma maior equidade no acesso ao ensino superior.
Isto porque as classificações internas também contam, e muito, para o cálculo da média de entrada nas universidades ou politécnicos. Para o investigador da Universidade do Porto, Gil Nata, co-autor com Tiago Neves de vários estudos sobre a “inflação” das notas, o que se tem vindo a saber sobre este fenómeno deveria mesmo obrigar “a repensar todo o sistema de acesso ao superior”.
A informação revelada pelo novo indicador, que foi agora actualizado com dados relativos a 2014/2015, dá conta também de que há 13 escolas que, nos últimos cinco anos, estiveram sempre no grupo dos 10% maiores desvios para baixo. Ao contrário do anterior pelotão, aqui são as escolas públicas as maioritárias (nove) e também há quem costume destacar-se pelas boas posições alcançadas nos rankings.
Para além das categorias que dão conta destes desvios mais fortes, o ministério criou outros dois grupos de “desalinhamento” para cima ou para baixo das notas internas, onde estas diferenças são menos relevantes, situando-se “entre as 30% e as 10% mais fortes do país”. Em 2014/2015, juntando todas as escolas que “desalinharam” notas, o cenário foi este: na maioria das secundárias (61%) as notas internas não correspondem ao que seria expectável tendo em conta os resultados dos alunos nos exames. A mesma proporção, com variações mínimas, pode ser encontrada nos quatro anos lectivos anteriores e sempre com a mesma tendência: embora com diferenças quase residuais, nas escolas em que se regista um desalinhamento das notas a proporção das que o fazem para baixo é maior do que aquelas em que sucede o oposto.
Por tipo de escola, há também este dado: 47% das privadas analisadas deram notas mais altas do que o esperado, enquanto nas públicas esta percentagem foi de 25,6%. Nas escolas que “desalinharam” para baixo a situação inverte-se, com 34,5% das públicas analisadas a entrarem neste grupo, enquanto nas privadas esta prática foi seguida em 23,5%.
“Distorção da realidade”
Com este indicador, estão a comparar-se “escolas onde, por exemplo, 80% dos alunos tiveram média de 14 nos exames e notas internas entre 14 e 16 [numa escola de 0 a 20] com outras onde apenas 1% dos estudantes está nesta situação, o que provoca uma distorção da realidade”, critica António Amaral, administrador do Colégio D. Diogo de Sousa, que ocupa o 8.º lugar no ranking deste ano e é uma das 15 escolas que o ministério aponta como tendo os desvios mais fortes para cima nos últimos cinco anos. O administrador deste colégio de Braga diz mesmo que o Indicador de Alinhamento foi criado com uma “intenção deliberada”: “Serve para desvirtuar os rankings – quase todos os colégios que estão no topo destas listas são apresentadas como as que mais desalinham para cima”.
No agrupamento de Escolas João de Deus, em Faro, cuja secundária figura também entre as 15 com maiores desvios de notas para cima, começaram já adoptar medidas para reverter a situação, garante seu director, Carlos Luís, acrescentando que estas alterações iniciaram-se depois de ter entrado em funções, há dois anos, e reforçaram-se depois da uma inspecção de que foi alvo em Abril passado precisamente por causa dos desalinhamentos verificados.
“O objectivo é reduzir a diferença, mas não eliminá-la. Não vou entrar numa caça às bruxas desenfreada porque nem seria bom para a escola, nem considero que seja deste modo que se consegue mudar práticas lectivas. Há escolas que entraram por esse caminho e que se encontram agora pelas ruas da amargura, com muito poucos alunos e muitos professores a concorrerem para sair de lá”, diz.
Nas conclusões da acção desenvolvida pela Inspecção-Geral da Educação, indica-se que em 2013/2014 a diferença entre a classificação interna e a de exame em cinco disciplinas oscilou entre 6,3 valores em Matemática e 2,1 a Português, mas que, por comparação, ao ano anterior tinha já ocorrido uma redução desta diferença em quatro das cinco disciplinas em causa. No relatório indica-se, por exemplo, “que a análise dos documentos de registo das classificações atribuídas pelos docentes no final de 2013/14 permite constatar que, em todas as disciplinas em apreço, os docentes não se limitam a atribuir uma classificação final em função do resultado estrito da aplicação dos critérios de avaliação, pois em muitos casos é atribuída uma ‘bonificação casuística, que varia entre uma décima e os dois valores”. Acrescenta-se no relatório que os docentes defendem esta prática [que não é seguida por todos] “com o fundamento de que avaliação não é traduzível numa grelha de Excel, uma vez que os docentes detêm um conhecimento muito próprio sobre cada um dos seus alunos”.
No seu relatório, a inspecção dá conta de que toda esta situação foi motivo de reflexão na escola e que, entre outras medidas, foram já alterados os critérios gerais de avaliação, passando a componente de conhecimento e capacidades a valer 95% e a de atitudes e valores apenas 5%. Nas escolas, em geral, estas componentes tinham, em média, um peso na nota final, respectivamente, de 70% e 30%, mas em muitas também já foi reforçada a proporção atribuída à primeira componente.
O director do agrupamento de Escolas Ovar Sul, cuja escola-sede, a Secundária Júlio Dinis, também figura entre os maiores desvios de notas para cima, considera que os dados do ministério são uma “óptima oportunidade de reflexão por serem um instrumento de análise comparativa”, embora lamente que tenham dado origem a “generalizações/interpretações pelos meios de comunicação social, que são quase todas de índole negativista e altamente depreciativa”.
“Não se pode pedir às escolas que construam o seu projecto educativo com recurso aos conceitos de autonomia e de proximidade à sua comunidade educativa e depois se pretenda implementar um valor médio de referência de classificação interna onde se catalogam as escolas com base em dados parcelares e onde não se cruzam outras variáveis tão importantes como são a escolaridade dos pais e os dados socioeconómicos dos alunos envolvidos”, critica Nuno Gomes
Desvios para baixo
E o que passa com as escolas que, segundo o ministério, dão sistematicamente notas mais baixas aos seus alunos do que as de outros alunos do país que tiveram resultados semelhantes nos exames nacionais? Dos Salesianos do Estoril, que figuram no grupo das 13 escolas que sempre o fizeram nos últimos cinco anos, vem uma manifestação de “apreensão” face a esta categorização, por lhes parecer “exagerada, senão mesmo falaciosa”, já que só em três das 11 disciplinas sujeitas a exame se verificou “um desalinhamento significativo”, esclarece a directora pedagógica do colégio, Paula Baptista.
Matemática A foi um destes casos e a razão de tal ter acontecido (as notas do exame foram mais altas do que as dadas pelos professores), explica esta responsável, prende-se com o facto de o exame da disciplina funcionar para “a esmagadora maioria dos nossos alunos como prova específica de ingresso no ensino superior, o que leva a um maior investimento em apoios extras por parte dos alunos e encarregados de educação” e também da própria escola, que, “a um mês do exame, faz um investimento intensivo” na preparação deste exame.
A Escola Secundária do Restelo, que figura habitualmente entre as escolas com melhores médias de exame, também está encaixada neste grupo. O seu director, Júlio Santos, é peremptório: “O problema é com quem nos estão a comparar. Se nos comparam com escolas que estão a inflacionar as notas, então estaremos sempre nesta posição porque nós não o fazemos. Só podemos ser comparados com essas escolas com outros critérios ou se elas deixarem de inflacionar as notas. É por essa razão que há alguma maldade na forma como este resultado é apresentado, como se estivéssemos a prejudicar os alunos, e isso não é verdade. Aliás, se só se comparar a classificação interna da escola com as notas de exames, pode-se constatar que a primeira é superior à segunda”.
“Atrair clientes”
Os resultados do Indicador de Alinhamento vêm confirmar que “as escolas públicas estão sobre- representadas entre as que mais deflacionam e as privadas sobre-representadas entre as que mais inflacionam”, comenta o investigador da Universidade do Porto Tiago Neves. “A nossa explicação principal é que as escolas privadas têm mais incentivos para inflacionar porque, estando inseridas num mercado educativo, precisam de atrair clientes. A inflação é um fenómeno atractor”, adianta.
Tiago Neves lembra também, a este respeito, que “o Ministério da Educação já implementou incentivos para as escolas públicas não inflacionarem as notas (é um dos critérios para a atribuição dos crédito horários), mas não criou incentivos paralelos para as escolas privadas, que, em boa verdade, são aquelas que mais precisam porque são aquelas que mais inflacionam”. “À excepção de algumas acções inspectivas que o ministério anunciou, mas das quais não sabemos quaisquer resultados, nada foi feito”, corrobora Gil Nata.
Este investigador remete para as conclusões a que chegaram numa análise aos “impactos que variações de 0,5 e um valores na nota de candidatura ao ensino superior tinham na posição relativa dos candidatos”. Resultado: “Os dados mostram que nos cursos mais competitivos um acréscimo de meio valor permite passar à frente de mais de metade dos candidatos que foram colocados acima e com um valor ultrapassa-se mais de 80%.”. Como há escolas que “sistematicamente inflacionam acima de dois valores e que representam milhares de exames nacionais, o resultado é um sistema de seriação de alunos para acesso ao ensino superior grosseiramente distorcido e passível de manipulação por parte de quem pode pagar escolas que foram sempre conhecidas por inflacionarem notas”, alerta Gil Nata.
O que também dizem os directores
“De acordo com a legislação em vigor, os critérios de avaliação de determinadas disciplinas contemplam uma componente prática com um peso mínimo de 30%. A escola tem vindo a desenvolver um trabalho rigoroso e aprofundado a este nível, permitindo aos alunos desenvolver competências práticas neste domínio. Em disciplinas, como, por exemplo, Português, a oralidade, que tem um peso de 25%, é trabalhada de forma intensiva, permitindo aos alunos obter bons resultados a esse nível [componentes que não são avaliadas nos exames].
No Projecto Educativo do agrupamento temos contemplado como objectivo específico a melhoria dos resultados escolares, mas também o desenvolvimento integral do aluno, sendo proporcionado aos alunos um conjunto de outras actividades e projectos diversificados além das aprendizagens formais obrigatórias para o sucesso nos exames.
O agrupamento, num espírito de serviço público e inclusivo, tem vindo a trabalhar de forma a apoiar e possibilitar não só aos melhores alunos, mas também aos alunos com mais dificuldades, a conclusão da escolaridade obrigatória com sucesso.”
Ana Gabriel Moreira, directora do agrupamento de Escolas Manuel Laranjeira, em Espinho, cuja secundária figura na lista dos maiores “desvios” de notas para cima.
“No Colégio D. Duarte considera-se a avaliação externa a determinadas disciplinas do currículo como importante indicador de trabalho, mas na avaliação e na formação do aluno estão contempladas todas as vertentes previstas na legislação e as que resultam do nosso projecto educativo. Preocupamo-nos com a motivação do aluno para a aprendizagem, com a promoção do gosto pela escola enquanto lugar de aprendizagem e realização pessoal. Não é feita qualquer selecção de alunos à entrada no colégio pelas suas classificações. A direcção do colégio está perfeitamente consciente da ‘penalização daí decorrente ao nível dos resultados dos rankings [num conjunto de 584 secundárias, está em 484.º lugar este ano], mas esta determinação tem-se mantido como afirmação da pluralidade e do humanismo.”
Ana Veiga, directora pedagógica do Colégio D. Duarte, Braga, também na lista das 15 que mais “desalinham” as notas para cima
“No Colégio D. Diogo de Sousa, a Classificação Interna Final do ensino secundário resulta, em média, da conjugação da classificação dos conhecimentos das matérias disciplinares (90%) e da classificação das práticas de estudo, aplicação e progresso das referidas matérias (10%). Os exames nacionais do ensino secundário avaliam exclusivamente os conhecimentos das matérias disciplinares.
O colégio considera que os princípios de 'alinhamento' e 'desvio' de índole estatística, independentemente da sua correcção em termos de cálculo interno, assentam em critérios educacionais parcelares e/ou desapropriados e, por conseguinte, não podem ser associados de modo banalizado às ideias de 'inflação' e/ou 'deflação' em matéria de Classificação Interna Final;
As ideias de 'inflação' e/ou 'deflação' em matéria de Classificação Interna Final carecem de enquadramento científico necessário e suficiente, uma vez que os relatórios anuais sobre o Estado da Educação do Conselho Nacional de Educação (CNE) não apresentam quaisquer definições científicas dessas noções, nem quaiquer procedimentos científicos para poder associar os princípios de 'alinhamento' e 'desvio' de índole estatística às referidas noções.
Importa também sublinhar que as instâncias ministeriais competentes em matéria de Educação nunca atribuíram ao Colégio D. Diogo de Sousa quaisquer práticas de 'inflação' ou 'deflação' no plano das classificações internas finais no ensino secundário.”
António Araújo, administrador do Colégio D. Diogo de Sousa, Braga, na lista das 15 escolas com maiores desvios de notas para cima
“Há muitas variáveis que podem justificar estas diferenças. Menos rigor na vigilância dos testes ou na sua elaboração, variação dos grau de dificuldade das provas. Tem tudo muito a ver com a prestação dos professores e com as práticas pedagógicas que estavam instituídas. Desde há um ano já adoptámos uma série de medidas para melhorar a prestação da escola e reduzir as diferenças. Eis algumas:
— Nas turmas em que há 40% ou mais de negativas, no final do período, os professores são obrigados a apresentar um relatório em que apontam as causas para tal e onde estabelecem um plano de acção para o futuro.
— Os nossos alunos voltaram a realizar provas globais e para que haja um maior grau de transparência foi decidido que são elaboradas por professores que não sejam os das suas turmas e corrigidas por vários docentes.
— Criámos grupos de desenvolvimento e progressão para os alunos do 7.º ao 12.º ano, com apoios suplementares de 45 minutos suplementares destinados a alunos de topo e a outros que são considerados medianos, mas aos quais são reconhecidas capacidades de grande progressão.
— E passámos a fazer análise dos resultados no final de cada período, o que não se fazia antes.”
Carlos Luís, director do Agrupamento de Escolas João de Deus, Faro, que tem a escola secundária no grupo das 15 que mais sobem as notas.
“Esta categorização da nossa escola no nível referido [entre as 13 com maiores desvios das notas para baixo] parece-nos, além de injusta, corresponder a uma visão muito redutora de todo o processo, colocando-nos, ainda, numa posição algo desconfortável relativamente aos nosso alunos e respectivos encarregados de educação que, não estando na posse de todos os dados, o que assimilam é precisamente o que vêem espelhado nas conclusões apresentadas pelos órgãos de comunicação social, em resultado dos dados estatísticos que recebem do Ministério da Educação. Naturalmente que, enquanto directora pedagógica desta escola, me sentiria muito mais desagradada e desconfortável caso a nossa escola fosse um dos reiterados exemplos do desalinhamento oposto, o que nunca se verificou”.
Paula Baptista, directora pedagógica dos Salesianos do Estoril