Jihad e o apocalipse em Dabiq
Quando se fala em jihad normalmente assume-se o sentido mais exterior de guerra santa contra os inimigos do Islão. Mas a jihad também contempla o esforço interior do crente muçulmano de autodisciplina e domínio de si. Esta ficou conhecida como a jihad maior, mas na revelação corânica da Sura 4,95 encontramos a primeira – a chamada jihad menor. Foi esta que prevaleceu na Hadith, pois mesmo esta tradição consiste numa contextualização interpretativa centrada a partir da fonte corânica. É a esta fonte que quis regressar o wahabismo – um movimento religioso e político do Islão sunita salafista. Este movimento teve origem em Muhammad ibn Abd al-Wahhab (1703-1792) a partir do centro da Arábia Saudita, com uma leitura integrista e fundamentalista, coligado com a família de Muhammad bin Saud, sem sequer ter em conta o trabalho e o contributo da Hadith.
O que é que ficou? A profecia de Sahih Muslim na Hadith segundo a qual o próprio Jesus virá no fim dos tempos, no apocalipse, mas já convertido ao Islão, para ajudar na batalha final contra os novos cruzados, contra os novos inimigos do Islão, até que Constantinopla volte a ser reconquistada. Como diz a Sura, o profeta promete a recompensa a todos aqueles que não se importarem de derramar o seu sangue nessa batalha final. Como vemos, estamos ainda na Idade Média…
A jihad não é exclusiva do Daesh, mas radicalizou-se, fundamentalizou-se ainda mais do que na tradição xiita, graças à leitura wahabista. Mas o que é que Dabiq tem a ver com o jihadismo promovido pelos seus seguidores que se dizem islamitas? Dabiq, significativamente o nome de um lugar apocalíptico para o jihadismo dado à famosa newsletter dos fiéis do Daesh a partir de 2014, é uma pequena vila cerca de 40km a nordeste de Aleppo na Síria, apenas a 10km da fronteira com a Turquia. Foi aí que o império otomano derrotou em 1516 o sultanato mamluk. A sua importância não é tanto estratégica, mas simbólica: ela é o ícone da batalha final, é o lugar apocalíptico para os jihadistas onde se realizará a referida profecia de Sahih Muslim. Por isso, quando a conquistaram em agosto de 2014 destruíram o mausoléu (mazaar) do califa Suleiman ibn Abd al-Malik para significar o início do seu movimento escatológico de restauração, de regresso à pureza da revelação maometana do Al-Quran. Esse foi para eles o início da vitória final.
Nem sequer perdemos tempo a avaliar qual o jihadismo mais radical. No caso presente, é impossível qualquer diálogo racional, porque do outro lado só existe a mais abjeta irracionalidade. Ora, a animalidade só tem um tratamento possível, neste caso duplo: a defesa organizada pela via da força para atacar e decepar a cabeça da serpente (para usarmos uma terminologia apocalíptica) conquistando Dabiq (e assim destruir uma das mais fortes motivações impulsionadoras do Daesh), e uma denúncia da lavagem ao cérebro que esta leitura radical apocalíptica representa na sua difusão (quer geograficamente naquele médio oriente quer online na rede quer politicamente na hipocrisia da diplomacia internacional) e no seu argumentário.
Por detrás da jihad (a menor) está uma hermenêutica que nunca se confrontou com a modernidade e que, por isso, nunca o conseguirá. E porquê? Porque a apocalíptica tem muitas variantes, mas uma das mais frequentes e mais trágicas consiste na total identificação do significante com o significado. Isto sempre deu origem ao longo da história a leituras (hermenêuticas) esgotantes. Este é mais um exemplo. Sempre que o acesso à realidade e à transcendência é feito sem a mediação da razão não só deixa de ser possível adorar o verdadeiro Deus como nascem protestos mais ou menos inflamados, mais ou menos armados em sinal de desespero, que atira para o fim dos tempos a impossibilidade de habitar o mundo e de reler a realidade. Daqui a uns anos o mundo será muito diferente quando os poços de petróleo da Arábia Saudita e de vários países do Golfo deixarem de alimentar esta máquina de guerra, quando já não puderem expandir esta jihad. Nessa altura, provavelmente o tempo já dos meus bisnetos, estamos convencidos que vai continuar a prevalecer a racionalidade do Ocidente.
José Carlos Carvalho
Docente da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, no Porto. O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico.