"O que é que eles pensam sobre mim, gostam de mim, são indiferentes, odeiam-me?!
Cruzam-se, como sempre, nas bancas do mercado de Belleville. Como todas as terças e sextas-feiras. Mas sente-se a tensão numa cidade que ainda está a sangrar.
O Boulevard de Belleville é uma amálgama: pelo facto de ter uma mesquita quase em frente de uma sinagoga, ao lado de igrejas, há quem o compare a Jerusalém. Os templos convivem com centenas de cafés e restaurantes, que anunciam delícias turcas e magrebinas, especialidades orientais e formules du jour tipicamente franceses, a preços que ninguém encontra nas grandes avenidas chiques da zona ocidental. Está tudo aberto, as esplanadas repletas, e a vida parece realmente normal — se não fossem os ligeiros sobressaltos, os olhares nervosos ou furtivos e uma tensão que se sente à flor da pele, ligeira como a neblina cinzenta que cobriu Paris.
Como “todas as terças e as sextas-feiras, das seis da manhã às duas da tarde, sem falhar”, o mercado de Belleville encheu-se de gente, vendedores e compradores, que mais ou menos gritam uns por cima dos outros em várias línguas. Com o ruído e a confusão, até aqueles que falam francês soam estrangeiros. Esticado ao longo do boulevard, entre as duas “aldeias” de Belleville e Ménilmontant, o mercado é uma réplica em legumes, frutas, carnes e peixes, especiarias, perfumes, tecidos, lenços, e tudo o que sejam objectos de plástico a funcionar a pilhas, da diversidade da região leste de Paris — a Paris popular, de bairros operários e constantes vagas de imigração, de europeus, asiáticos, judeus e árabes, que se sentem especialmente tocados pelos atentados da passada sexta-feira neste mesmo 11º bairro (arrondissement), a poucas centenas de metros daqui.
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A envolvente dos locais atingidos pelos terroristas está repleta de polícia, mas o mercado decorre sem vigilância. “A vida continua, tudo normal”, reage o vendedor que escuta a conversa entabulada à sua frente com a freguesa Fátima. Ela nem estava certa se havia mercado, porque os do fim-de-semana foram suspensos ao abrigo do estado de emergência. “Todas as terças e sextas-feiras”, repete o senhor. “Temos de olhar em frente, não podemos desistir, não há mais nada a fazer”, acrescenta, tornando claro que a conversa não vai prosseguir.
Como grande parte dos vendedores, o senhor da hortaliça, que prefere não dizer o nome, é árabe; tal como Fátima, pertence a uma família argelina. Entre eles, falam em árabe, mas é em francês que lança bem alto o seu pregão que anuncia “dois quilos a um euro, tudo o que está nesta mesa”: cebola, batata, tomate, couve-flor, cenoura, rabanetes, courgette… Nenhum dos dois está muito interessado em perguntas sobre estes últimos dias extraordinários em Paris, depois dos atentados, e muito menos sobre muçulmanos, terrorismo, islão. “Olhe à volta, tantas pessoas diferentes. Aqui não temos problemas, damo-nos todos bem”, assegura.
As respostas meio bruscas, educadas mas despachadas, repetem-se a cada abordagem. Nas ruas menos movimentadas do bairro, onde de repente se encontram soldados de metralhadora em riste e patrulhas de gendarmes, quase ninguém quer saber de perguntas, especialmente os homens parados em frente da mesquita Omar Ibn Khattab, na esquina da Rue Jean-Pierre Timbaud, em plena praça dos metalúrgicos — do outro lado do passeio fica a “Maison des Métallos”, antiga fábrica transformada em “estabelecimento cultural de Paris”, e a União Fraternal dos Metalúrgicos. O templo muçulmano é rotineiramente vigiado pela polícia, e tem reputação de radical; as mudanças de imam são frequentes. “Nada a dizer”, dizem, “rien, rien de tout”.
A hostilidade não causa estranheza a quem vive e frequenta o bairro, onde determinados cafés aparentemente financiam a luta armada no Médio Oriente e onde se diz que é tão fácil comprar haxixe e outras drogas como kalashnikovs e outras armas automáticas. A dois quarteirões, duas amigas, Elodie e Myriem almoçam num restaurante hipster, Muxu, da Rue Deguerry: o 11eme está repleto de estúdios de artistas e profissionais liberais, que apreciam a pluralidade e a mescla de culturas do bairro, mas se preocupam com a evolução, num sentido menos heterogéneo, a que têm assistido.
“Não sei como dizer isto sem parecer que sou intolerante e racista, mas a verdade é que agora tenho medo quando passo por lugares onde estão muitos homens sentados”, confessa Élodie, que é o protótipo da parisiense vestida de preto. A referência aos “homens” não carece de tradução — são os muçulmanos, os árabes, que vivem no bairro e frequentam a mesquita local. “Incomoda-me que olhem para mim porque não sei o que eles estão a pensar. O que é que eles pensam sobre mim, gostam de mim, são indiferentes, odeiam-me? Não sei, e isso deixa-me ansiosa”, prossegue, explicando que tem o mesmo sentimento com as mulheres que lhe falam por detrás de um véu. “É muito esquisito que não possas ver os olhos da pessoa que te está a dirigir a palavra. Ou pelo menos para mim é”, personaliza Élodie, mas Myriem concorda, e informa que tem visto cada vez mais mulheres mais tapadas. “Já não é só o lenço, ou o véu, muitas andam de burka”, observa. “Oh sim, neste bairro sempre houve um monte de lojas a vender burkas”, completa a amiga.
A Rachida Kabbouri também é o olhar que incomoda: “E eu senti a mudança nos meus concidadãos franceses, desde sábado, quando olham para mim”. Nascida em Marrocos mas criada em França desde os cinco anos de idade, Rachida, agora com 39 anos e três filhos, foi até à Place de la Republique como tantos outros parisienses, porque quis deixar uma mensagem aos franceses e outra aos terroristas, para que “este ataque não seja inconsequente”. “Queria dizer que o Estado Islâmico é um estado terrorista que não representa o islão e os muçulmanos”, começa. “O que aconteceu aqui em Paris foi um crime contra a humanidade, e eu como francesa muçulmana faço parte da unidade nacional que sofre com estes actos abomináveis”, prossegue, mas é interrompida por um homem de meia-idade que parou para a ouvir. “Queres falar, tira o véu”, exige. “Se não respeitas os valores republicanos, não esperes que não te olhem de lado”, atira, e vai embora irritado.
Rachida não tira o véu e defende o seu uso. “O que é isto? É um pedaço de pano. Aquele senhor leva um chapéu na cabeça e ninguém lhe grita”, aponta. “Eu percebo que, depois do que se passou, as pessoas olhem para mim e tenham as suas interrogações. O que me choca é que se politize tudo neste momento. Não posso andar na rua em França e ter medo por mim, medo pelos meus filhos, por ser muçulmana e usar um véu. Respeito e comungo dos valores da República, prezo a diversidade e a educação”, garante. “A religião é uma questão privada. Cada um é livre de praticar a sua, é isso que faz a França livre”, considera.
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