O debate que importa
Considero mais adequado ao interesse nacional a existência de uma solução governativa em que a direita fique dependente das posições do PS a uma outra em que o PS se torne refém dos humores, caprichos, estratégias e tacticismos dos partidos da extrema-esquerda.
Sempre que ouço falar no fim do centro político regresso a Norberto Bobbio. Como já aqui várias vezes referi, este filósofo político italiano, reconhecendo embora a pertinência teórica e analítica da díade esquerda/direita, atribui contudo análoga importância à oposição entre a moderação e o extremismo. Na sua conhecida obra que se intitula justamente Direita e Esquerda, o eminente professor da Universidade de Turim afirma o seguinte: “Numa primeira abordagem, vê-se que a díade extremismo/moderantismo tem muito pouco a ver com a natureza das ideias professadas, e que antes se refere à sua radicalização e, consequentemente, às diversas estratégias para as fazer valer na prática. A ciência explica porque é que revolucionários (de esquerda) e contrarrevolucionários (de direita) podem ter certos autores em comum: têm-nos não enquanto de direita ou de esquerda mas enquanto extremistas, respectivamente de direita e de esquerda que, como tal, se distinguem dos moderados de direita e de esquerda. O facto de o critério que estabelece a distinção entre direita e esquerda ser diferente do que estabelece a distinção entre extremistas e moderados implica que ideologias opostas possam encontrar pontos de convergência e de acordo nas suas franjas extremas, embora permaneçam bem distintas quanto aos seus programas e aos seus objectivos últimos, de que depende apenas a sua colocação numa das partes da díade ou na outra” (Direita e Esquerda: Razões e Significados de uma Distinção Política, Lisboa, Editorial Presença, 1995, p. 44). Estas palavras remetem-nos para um aspecto essencial do debate político contemporâneo e ajudam-nos a interpretar a presente circunstância histórica europeia. Bobbio não identifica a extrema-esquerda com a extrema-direita do ponto de vista doutrinário, mas antes aponta com precisão o motivo pelo qual não raras vezes essas duas orientações convergem no plano da política concreta. Esse motivo radica num fundo comum de natureza antiliberal e até mesmo antidemocrático. Para os extremistas, a moderação, enquanto exercício da prudência, do reformismo e do gradualismo, constitui sempre uma forma de traição e uma manifestação de mediocridade.
Quando, no Parlamento Europeu, os deputados da Frente Nacional de Marine Le Pen e os deputados da extrema-esquerda coincidem nas suas votações é isso mesmo que está em causa. Claro que eu não confundo uma deputada como Marisa Matias - por quem tenho genuína admiração - com os próceres da extrema-direita europeia. Tudo os afasta no domínio da representação do mundo, da concepção antropológica e do modelo de sociedade. A razão pela qual convergem demasiado amiúde nas suas votações resulta precisamente desse extremismo fundado na já referida desconfiança face à dimensão liberal da democracia. Se no domínio europeu tudo isto se torna mais evidente é justamente porque este projecto representa, como nenhum outro na história, a consagração dos princípios e valores inspiradores do regime demo-liberal.
O perigo maior que neste momento se coloca no horizonte da União Europeia é o da possibilidade do triunfo do extremismo face àquilo que Bobbio designou por moderantismo. Esse perigo é infelizmente bem real. Qual a sua verdadeira origem? Na minha opinião são duas as fontes de que promana tal ameaça: por um lado, a parcial dissolução do Estado-Providência em resultado da abertura ao fenómeno da globalização; por outro, a crescente infantilização das sociedades democráticas com a consequente degradação do princípio da responsabilidade individual. Curiosamente, um e outro motivo vão a par e contribuem para o surgimento de um niilismo que fomenta o sucesso das posições extremistas.
Perante tal situação, que nada augura de bom, impõe-se a necessidade de reconstrução do centro político, quer na sua vertente de esquerda, quer na sua vertente de direita. Não é tarefa fácil e há vários sistemas políticos e eleitorais, como é o caso do francês, que em nada favorecem a consecução de tal desiderato. Tudo o que remeta para uma sobrevalorização da dicotomia esquerda/direita em relação à dicotomia extremismo/moderantismo prejudica a obtenção dos compromissos indispensáveis à consolidação do património fundador das democracias ocidentais. Infelizmente é isso que tem vindo a suceder em diversas situações.
Atentemos no caso português. Os mais inteligentes defensores de uma solução governativa alicerçada num entendimento parlamentar entre o PS e os partidos de extrema-esquerda justificam a bondade de tal opção pela necessidade de responder à radicalização da direita e de assegurar a defesa do Estado-Providência. A sua tese é simples e clara: a direita caminhou em direcção a uma posição extremista e a extrema-esquerda começa a manifestar disponibilidade para uma convivência útil com o centro-esquerda. A tese tem um único defeito: é manifestamente panglossiana. Isto é, enferma de uma notória insuficiência que radica num misto de inocência e crendice. Nem a direita portuguesa se tornou subitamente toda ela extremista, nem a extrema-esquerda se converteu subitamente num modelo de pragmatismo aberto à moderação. Bem sei que no nosso mundo de referências cristãs abundam por aí boas almas sempre dispostas a acreditar no milagre da Estrada de Damasco. A realidade é porém ligeiramente diferente e nessa diferença reside a chave para a compreensão do tempo presente.
A questão formula-se de uma forma muito simples: será mais fácil atrair a direita, em nome do consenso europeu baseado na economia social de mercado, para posições consentâneas com a defesa do Estado-Providência, ou sensibilizar a extrema-esquerda para os méritos de um paradigma baseado na conciliação entre o mercado, a democracia representativa e um Estado-Social promotor da dignidade mas que não desresponsabilize o esforço individual? É aqui que verdadeiramente se separam as águas. Parece-me óbvio que aquilo que aproxima o centro-esquerda do centro-direita é bem mais vasto do que aquilo que aproxima o centro-esquerda da extrema-esquerda. Quem pensa desta forma não pode senão ter uma posição crítica em relação à possibilidade de concretização de um acordo parlamentar entre o PS, o BE e o PCP. Quem pensa o contrário tenderá naturalmente a rejubilar com tal entendimento.
Nessa perspectiva, e tendo em consideração os resultados eleitorais verificados a 4 de Outubro e a decorrente composição do Parlamento, considero mais adequado ao interesse nacional a existência de uma solução governativa em que a direita fique dependente das posições do PS a uma outra em que o PS se torne refém dos humores, caprichos, estratégias e tacticismos dos partidos da extrema-esquerda. Esta é que é a verdadeira questão e é em relação a ela que nos devemos pronunciar. Pela minha parte, não deixarei de comparecer a este debate que reputo da maior importância para o futuro do país e do PS.