Há dez anos, Bill Cosby admitiu usar sedativos para sexo com mulheres
Testemunho em tribunal agora tornado público continua a reescrever história. Mais de 20 mulheres acusam o comediante de abuso sexual.
“Quando obteve os Quaaludes [sedativos e hipnóticos dependentes de receita médica também populares na década de 1970 como droga recreativa], tinha em mente que iria usá-los com jovens mulheres com quem queria ter sexo?”, perguntou a advogada Dolores Troiani em 2005 a Bill Cosby sobre os fármacos que o comediante admitira já, no mesmo interrogatório em tribunal, ter adquirido. O comediante respondeu: “Sim”. O interrogatório prosseguiria com a mesma advogada a perguntar ao acusado se alguma vez tinha usado os comprimidos em alguma jovem sem o seu conhecimento, mas os advogados de Cosby objectaram a pergunta e esta ficou sem resposta.
Estes detalhes, que fazem parte do processo movido por Andrea Costand, funcionária da Universidade de Temple, foram noticiados segunda-feira depois de a agência de notícias Associated Press ter solicitado em tribunal o acesso a novos documentos de um conjunto que já tinha sido parcialmente revelado pelo New York Times em Novembro de 2014 – mas então mais centrados num acordo entre Bill Cosby e o tablóide americano National Enquirer. Esse acordo, admitiu Cosby em 2005, resultou numa entrevista do comediante ao jornal americano em troca do cancelamento de uma entrevista de uma outra alegada vítima sua, Beth Ferrier, que o acusava de a ter drogado e abusado dela sexualmente em meados da década de 1980.
Todos os documentos fazem parte da acusação de Costand, que dizia ter sido violada por Cosby em sua casa em Filadélfia, e parte deles tornou-se passível de consulta em meados do ano passado depois de vários pedidos da imprensa americana. Até hoje, Bill Cosby não foi acusado ou condenado por qualquer crime. O Tribunal Federal do Distrito de Filadélfia disponibilizou registos nos quais Cosby, quando questionado sobre se tinha pensado que se a história de Ferrier fosse publicada “o público acharia que Andrea [Costand] também estava a dizer a verdade”, surge a responder “exactamente”. O caso Costand, que era directora do programa de basquetebol feminino da universidade, foi resolvido em 2006 através de um acordo e as suas condições não são públicas. Sabe-se ainda assim que várias outras mulheres testemunharam no caso.
Quanto aos dados agora conhecidos, a numerosa equipa legal do comediante contestava a sua revelação por considerar que embaraçariam o seu cliente e que este não é alguém que cultive uma presença pública.
Neles, Cosby admitia sob juramento que deu a Costand três metades de Benadryl. Trata-se do nome comercial de um medicamento anti-histamínico conhecido pelos seus efeitos potenciadores do sono, apesar de a advogada de acusação manifestar dúvidas sobre se teria sido esse o fármaco usado. Duas outras alegadas vítimas testemunharam no mesmo caso e disseram terem sido drogadas com Quaaludes. A Variety cita ainda a admissão de Cosby de ter tido relações sexuais com uma rapariga de 19 anos sob a influência de Quaaludes. “Ela foi ter comigo aos bastidores. Dei-lhe Quaaludes. Depois tivemos sexo”, disse, falando ainda sobre as suas dúvidas sobre a rapariga e a sua “personalidade passiva”.
A maioria dos alegados crimes em causa já não é passível de acusação criminal por ter já prescrito, mas estes registos judiciais voltam a ensombrar a reputação do comediante. E põem irreversivelmente na sua voz, sob testemunho ajuramentado, a admissão da intenção de perpetrar actos que perfilam grande parte das acusações que sobre ele pendem. E que nega. Os advogados de Cosby ainda não reagiram a estes novos dados, sendo que se opunham à sua vinda a público também por considerarem que podiam condicionar o júri de um outro caso – três mulheres que dizem ter sido violadas pelo comediante acusam-no, por seu turno, por difamação por este negar a veracidade das suas versões. “Por que é que ele ficaria embaraçado pela sua própria versão dos factos”, perguntou-se há um mês o juiz Eduardo Robreno, que viria a decidir pela abertura dos testemunhos que esta semana vieram a público.
O mesmo magistrado argumentou, citado pela revista especializada Hollywood Reporter, que Cosby, hoje com 77 anos, “tem envergado o manto de moralista público e trepado ao proverbial púlpito electrónico ou impresso para oferecer as suas opiniões sobre, entre outras coisas, educação infantil, vida familiar, educação e crime”. Por isso, considerou o juiz Eduardo Robreno, “estreitou voluntariamente a zona de privacidade que tem o direito de reclamar”.
Bill Cosby protagonizou e deu nome a uma das mais memoráveis séries de comédia protagonizadas por negros da América – The Cosby Show (1984-92) fez dele uma figura familiar nos lares americanos e em vários países do mundo sob a imagem de um chefe de família bonacheirão de uma família de classe média alta afro-americana. Depois de, no final de 2014, os casos que pontualmente iam surgindo na imprensa se terem avolumado com um número crescente de alegadas vítimas, conhecidas ou anónimas, a tornarem públicas as suas acusações, continuou a dar espectáculos de comédia mas viu o projecto de uma nova série de TV cancelado e as repetições da sua sitcom retiradas do ar.
Algo que voltou a acontecer agora, numa altura em que, segundo a CNN, os advogados de algumas das queixosas estimam que algumas destas admissões possam ser ainda usadas em casos de alegados abusos em vítimas menores (existem excepções legais à prescrição em alguns estados americanos nestes casos). Outras mulheres que acusam Cosby reagiram também manifestando esperança em que estas declarações possam mudar a forma como este escândalo se tem desenrolado.