Ivo Ferreira filma as cartas de amor do alferes Lobo Antunes

D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da Guerra compila as cartas que um alferes de 28 anos, destacado para Angola, escreveu à mulher. A voz de um namorado, pai e escritor em construção, hoje o autor António Lobo Antunes, tornada personagem colectiva num filme em rodagem.

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“Cartas da Guerra”, um filme de Ivo M. Ferreira Ivo Ferreira

Esses dois homens existem, o mise-en-abyme não é pura ficção. São Ivo Ferreira, realizador, e António Lobo Antunes, escritor. O primeiro, que na tal noite entrou em casa e ouviu a mulher a ler ao bebé por nascer páginas de D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da Guerra, volta – isto é, se pensarmos numa longa-metragem anterior, Águas Mil (2009) – a deixar a sua vida ser interceptada pelas biografias dos outros como quem tacteia fantasmas, segredos da História recente de Portugal, seguindo o fluxo das histórias contadas de pais para filhos e destes para os seus filhos. O segundo, o autor das cartas, um jovem médico com sonhos de escritor mas atirado para a guerra, refugiando-se nas cartas à mulher que o esperava em Lisboa, é hoje o autor António Lobo Antunes mas era ali, no livro e no filme que Ivo adapta e que por estes dias termina a rodagem, um autor, um pai, um marido em construção – personagem interpretada pelo actor Miguel Nunes.

“O filme tem a ver com coisas que me interessam, um país a agonizar no fascismo, mas nesse cenário algo que tem a ver com crescimento”, diz Ivo Ferreira, “o crescimento de um autor, de um pensador, alguém que caminha para ser melhor, como namorado, como marido, como pai” – foram as filhas do escritor, Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes, que publicaram em 2007 a edição de D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da Guerra por vontade expressa da mãe de ambas que morreu em 2004.
“Embora eu não tenha tido qualquer experiência biográfica, família em África ou pai que foi para a guerra, a verdade é que a guerra vive comigo há uma vida, até pela opção política dos meus pais, pelo exílio”, continua o realizador. “E parece que continuamos com pudor em filmar isso. Eu próprio, quando miúdo, achava que aqueles homens tinham ido para a guerra porque eram pessoas más, quando afinal tinham sido empurrados. O que me interessa é saber como é que um país pode atirar os seus homens para uma situação que não faz sentido.”

Com mais de quatro dezenas de personagens, esta produção O Som e a Fúria, a partir de um argumento de Ferreira e de Edgar Medina, teve uma primeira rodagem em Abril e Maio na província do Kuando Kubango, em Angola (“numa pequena aldeia onde não havia água, não havia nada, foi uma rodagem com acidentes, doenças e tragédias”) e está agora aquartelada no campo de tiro de Alcochete para a última semana de filmagens.
É um projecto que se afigura cheio de singularidades e delicadezas: é a adaptação de uma obra, constitui o passado biográfico de quem não só ainda pertence ao mundo dos vivos como se agigantou na esfera pública e, claro, tudo isso é material de que o realizador se quis apropriar. “Também é um filme sobre a forma como as cabras num monte dão lugar às girafas na selva.” E como filmar as cartas, como evitar a reiteração pelas imagens do que uma voz-off “escreve”?

“As cartas são a nossa estrela polar”, responde Ivo Ferreira – “nossa” porque é autor, com Edgar Medina, do argumento resultante de um trabalho de investigação histórica, de entrevistas a antigos combatentes, de recolha documental, iconográfica e musical do período. “Mas fomos buscar coisas aos primeiros livros [de Lobo Antunes, Memória de Elefante e Os Cus de Judas], porque há temas recorrentes. As cartas ajudam a estruturar a narrativa. Mas não é um filme com muita voz-off, e é uma voz colectiva. As cartas são um refúgio. Escreve-se pelo amor, é pelo amor que se sobrevive. As cartas de amor surgem aqui quando o presente não pode ser vivido.”

A delicadeza do projecto está, afinal, na possibilidade de negociação entre uma história que é património dos seus protagonistas e o desejo de apropriação de um realizador. “Sei que estava a pegar numa história de pessoas que eu conhecia e que falava das suas vidas, da história de amor entre o pai e a mãe. Só quereria fazer o filme se houvesse [da parte de Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes] desejo disso, mas simultaneamente se me deixassem livre. Tive uma primeira conversa com elas, imediatamente desenhei o filme, e a partir daí foi trabalhar no argumento. E ver até que ponto continuava o interesse delas. Estou consciente do imenso compromisso e da imensa responsabilidade de não trair a confiança que me foi depositada.”
 

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