Contra a barbárie do Boko Haram, o Exército semeou o terror

Exército nigeriano executou e prendeu em circunstâncias desumanas milhares de pessoas nos últimos dois anos, revela a Amnistia Internacional.

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Exército nigeriano é acusado de ter cometido crimes de guerra durante combate ao Boko Haram Pius Utomi Ekpei / AFP

A Amnistia Internacional traça um retrato perturbador da campanha militar nigeriana para neutralizar o Boko Haram. As forças armadas nigerianas executaram de forma sumária mais de mil pessoas, detiveram arbitrariamente 20 mil e cometeram “inúmeros” actos de tortura, revela um relatório da organização não-governamental, divulgado esta quarta-feira.

O relatório dá conta de execuções em massa feitas pelo Exército, por vezes em conjunto com milícias civis que apoiavam a luta contra o Boko Haram. Um dos casos mais impressionantes foi o da execução de 640 homens e rapazes em Giwa, um centro de detenção em Maiduguri, em Março de 2014. O centro tinha sido atacado pelo Boko Haram, que deu a escolher aos detidos a opção de se juntarem ao grupo ou abandonarem o local. Depois de retomado o controlo, o Exército e as milícias perseguiram os detidos que escaparam, acabando por executá-los de forma sumária.

A AI estima que tenham sido mortas às mãos do Exército pelo menos 1200 pessoas nos estados de Adamawa, Borno e Yobe, mas o número verdadeiro deverá ser superior. “O número exacto de execuções extrajudiciais é impossível de verificar devido à falta de arquivos, esforços de encobrimento por parte do exército e dificuldade em contactar testemunhas nas zonas onde os crimes foram cometidos”, explicam os autores.

À medida que se tornava mais urgente neutralizar o Boko Haram, os poderes das Forças Armadas foram ampliados – desde 2013 o estado de emergência foi declarado em duas ocasiões nas regiões mais afectadas –, contribuindo para um clima de impunidade dentro da hierarquia militar e que proporcionou abusos como os descritos pela AI. Por vezes, o comportamento dos militares assemelhava-se à brutalidade normalmente associada aos seus adversários. Em Abril de 2013, foram executados 64 detidos num centro em Damatura, no estado de Yobe, escolhidos de forma aleatória. Os responsáveis tinham regressado de uma operação em que dois soldados morreram e a execução foi encarada como uma “vingança”, de acordo com fontes ouvidas pela AI.

Mas quando não eram os próprios militares a executarem directamente os detidos, as péssimas condições dos centros de detenção acabavam por fazê-lo. Desde 2011, terão morrido pelo menos sete mil pessoas sob custódia das forças de segurança nigerianas. Entre as causas estão a falta de água, ar e comida, doenças espalhadas em prisões sobrelotadas, falta de cuidados médicos e a utilização de químicos para fumigar insectos em celas sem ventilação.

Saleh Jega, nome fictício de um carpinteiro de 25 anos, fornece um relato do ambiente vivido numa das células de detenção: “Sempre que nos era negada água durante dois dias, 300 pessoas morriam. Por vezes bebíamos urina de pessoas, mas mesmo a urina às vezes não era suficiente. Todos os dias morriam pessoas e, sempre que alguém morria, nós [os outros detidos] ficávamos contentes por causa do espaço extra.”

Perto de situações como estas, outros abusos denunciados pela AI parecem assumir uma dimensão menor, tal como as 20 mil detenções arbitrárias nos últimos quatro anos, “baseadas apenas na palavra duvidosa de um informador”. “Fontes militares disseram repetidamente à AI que os informadores eram desonestos e muitas vezes forneciam informações falsas para serem pagos”, lê-se no relatório Stars on their shoulders, blood on their hands: War crimes commited by the Nigerian military (“Divisas de estrelas nos ombros. Sangue nas mãos: Crimes de guerra cometidos pelo Exército nigeriano”).

“Estas provas repugnantes expõem como milhares de homens jovens e rapazes foram arbitrariamente detidos e deliberadamente mortos ou abandonados à morte sob detenção nas condições mais atrozes”, disse o secretário-geral da AI, Salil Shetty, através de um comunicado. A organização pede a abertura de investigações profundas e imparciais para apurar a responsabilidade dos comandantes militares e fornece mesmo uma lista de nomes de altas patentes a quem poderão ser imputados crimes de guerra.

O trabalho dos investigadores da AI foi desenvolvido desde 2013, com seis visitas ao terreno, mais de 400 entrevistas, mas também através da análise de provas documentais, como fotografias, vídeos e imagens de satélite, e ainda entrevistas a “oito fontes militares independentes, incluindo altas patentes, (…) que tinham conhecimento detalhado sobre as operações militares”.

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