O espectáculo da natureza humana
Varanda panorâmica para o silêncio imponente da natureza. E para o esbracejar ruidoso dos humanos a falharem os seus papéis.
Estão no YouTube, a plataforma que certifica o show da natureza (humana). Não podemos argumentar depois, quando do YouTube passamos ao cinema, que somos inocentes do espectáculo. Não nos podemos chocar com a curiosidade clínica ou com o voyeurismo no grande ecrã como se eles não nos habitassem quotidianamente no computador ou telemóvel. Não nos podemos queixar de Força Maior, filme sobre uma família sueca de férias num hotel dos Alpes franceses, onde encontramos aquelas “sequências” de susto reconstituídas para os efeitos de uma ficção. O que nos diz algo sobre a inspiração e sobre o trabalho do sueco Ruben Östlund, sobre aquilo que escolhe para matéria dos filmes: nós, o que construímos, o que vemos.
Reformulando: sim, talvez nos possamos queixar de Força Maior, como nos queixamos daquela “escola” que parece objectificar-nos com tanto cinismo, a de Ulrich Seidl, o homem de Na Cave (estreia a 21 de Maio), ou a de Michael Haneke – os austríacos. O cinema põe-se a olhar para nós e põe-nos a ver-nos a ver, e dessa forma encontramo-nos nele com uma nitidez que agride. Há uma aprendizagem a fazer do lado de cá, portanto; Seidl, por exemplo, talvez até seja um humanista.
Agora "googlem" "Best Cry Ever? Worst cry ever?": o desconforto do desarranjo emocional e do espectáculo sonoro de um homem a pedir desculpa estão replicados na sequência de Força Maior em que uma personagem, Tomas (Johannes Kuhnke), confessa o seu falhanço como marido e como pai, papéis que não esteve à altura de representar.
Tomas sente-se apanhado em falso, e foi-o, por uma avalanche que colocou em pânico os turistas da estação dos Alpes onde passa férias com a família. Teve medo. O instinto levou-o a desaparecer rapidamente da varanda panorâmica onde comia com a família quando viu a neve aproximar-se. Deixou para trás mulher e filhos. Só voltou quando a névoa branca assentou e a paisagem pacificou.
Tomas nega que tenha fugido, argumenta que não se consegue correr com botas de ski. Mas o telemóvel gravou tudo: a mulher Ebba (Lisa Loven Kongsli) tem a prova da fuga, e vai brandir isso até encontrar narrativa que a sossegue, que reforce a convenção estabelecida sobre a coragem de um pai de família.
Força Maior é uma varanda panorâmica sobre os gestos ruidosos dos homens a falharem os seus papéis. Sobre a marcha em direcção à recomposição: a ordem parece ser estabelecida de cada vez que um pai/marido conquista posição, mas até uma nova queda – e repare-se como o grito de desespero de Tomas é o mesmo daquela outra cena, ritualística, em que homens, com a ajuda de álcool e música, reforçam o que se espera deles, o triunfo da sua masculinidade...
É uma gigantesca maquinação, o mundo como modelo controlado. Östlund constrói cada sequência como uma paisagem de potencialidades virtuais. Cabe às personagens dissolverem-se ali, sem rupturas, sem excessos de expressividade (os rostos, os capacetes, os planos na neve, quase utópicos). Os planos oferecem-se como miniaturas deslumbrantes, ao som, tonitruante ironia, do Concerto Verão das Quatro Estações de Vivaldi (se por causa dos corredores do hotel nos lembramos do Shining, a engrenagem, o maquinismo de uma ordem totalitária que impõe papéis são de facto temas kubrickianos.) Se passar despercebido, e nem sequer ser “assunto”, o facto de no final de Força Maior caber a Ebba, a mulher, protagonizar o momento em que o instinto de sobrevivência se sobrepõe às regras sociais, abandonando marido e filhos no autocarro que desce a montanha, sem que se lhe aponte a “cobardia”, sem que o susto agora ameace a ordem, é porque dentro e fora do filme, no ecrã e na sala, somos cúmplices de uma distribuição de papéis. Mas Força Maior é também uma varanda panorâmica para o silêncio imponente da neve: a natureza a mostrar que é possível sempre apagar esta família, este modelo, da imagem.