Há uns dias, por velhos impulsos e novas necessidades, encheu-se o anfiteatro 1 da Faculdade de Letras de Lisboa para discutir a malfadada questão do chamado acordo ortográfico. Mas esta crónica vai, como se verá, para além dele. É que, a dada altura, embora toda a gente falasse de ortografia, na verdade falávamos (porque lá estive, como convidado) essencialmente de fonética. Os episódios mais bizarros ali relatados acabavam, sempre, relacionados com os “sons” da escrita. Por isso, façamos uma pequena viagem ao maravilhoso mundo da fonética e, já agora, dos sons em geral.
Comecemos pela música. No Ocidente, sete notas (que conhecemos por dó, ré, mi, fá, só, lá, si) são suficientes para criar desde a mais básica balada à mais elaborada sinfonia. Mas, se valessem só por si, nunca o seu poder criativo iria tão longe. Sem as mínimas e semínimas, breves e semibreves, fusas e semifusas, colcheias e semicolcheias, sem uma sinalética própria das pautas musicais e que permite gerar os mais variados compassos, ritmos, melodias e harmonias, as sete notas definhariam.
Com as línguas passa-se o mesmo. Da primordial fala à sua expressão gráfica, há uma “pauta” que se desenvolve e expande para lá dos traços básicos do alfabeto. Numa das suas Charlas Linguísticas na RTP, em 1958 (editadas em livro nos anos 60), o filólogo Raul Machado criticava professores ou pais que, em tom autoritário, diziam a crianças com dificuldade de ler uma frase num livro: “Menino, leia o que lá está!” Como se dissessem: “O menino é parvo! O menino não sabe ler!” E dava como exemplo esta frase: “Os homens sentem e pensam.” Uma frase simples, que toda a gente lerá sem dificuldade. Toda a gente? Sim, toda a gente que já domina, mesmo que de forma inconsciente, as regras do código vocálico do português europeu. Se uma criança lesse mesmo “o que lá está”, com base no que aprendera no alfabeto, leria (dizia então o filólogo): Óss hóménnss sénntémm é pénnsamm. Ou, “em grafia sónica, a seguinte algaraviada: Óç hóménç çéntéme é pénçame”. Em vez disso, qualquer pessoa lerá “Uz ómãix sêntãi i pênsão”. No entanto, escrevemos “Os homens sentem e pensam”…
Isto, que assim dito dará cabo da cabeça a muita gente, pode ser apreensível de forma simples. Mas é mais simples ainda do que parece. Vejam-se as seguintes palavras: telegrama, telefone, televisão, merecer, delegado. Escrevemo-las assim, mas, na fala corrente, “limpamos” as primeiras vogais e dizemos (sem pensarmos nisso) tlgrama, tlfone, tlvisão, mrcer, dlgado. É esta natural erosão, própria da fala, que alimenta nos cultores da pretensa escrita “fonética” a teimosa vontade de tirar letras a palavras que delas necessitam para, no seu conjunto, soarem (quando lidas) de determinada forma. É isso que alimenta as anedotas a propósito do acordo ortográfico, e que levou, por exemplo, na Faculdade de Letras, Pedro Mexia a referir-se às jovens “arqui têtas” (a palavra arquitectas sem o “c” diacrítico) ou Ricardo Araújo Pereira a ironizar com “adeke” (adeqúe, sem o acento diacrítico).
Porém, se na língua portuguesa uma mesmíssima letra (vogal ou consoante) pode assumir vários sons, dependendo da palavra ou frase em que se insira, há idiomas em que se passa o contrário. O francês, por exemplo. Um fonema muito simples, que em português soa como “é” (o é aberto do português, como em pé ou peço), tem múltiplas formas gráficas neste idioma. Há, e citamos ainda Raul Machado, “pelo menos vinte e tal maneiras de grafar este fonema em francês: e (chef); é (fève); egs (legs); ei (reine); eil (soleil); eille (oreille); er (fer); es (tu es); ès (progrès); ect (project); êt (forêt); eis (regreis); est (il est); ai (aime); aî (maître); aie (monnaie); aient (chantaient); ais (jamais); ait (lait); aît (paraît); aits (faits); aix (paix); ay (châtenay)”.
Há quem veja nestas combinações maravilhas, e tire prazer da fala e da leitura; e há quem veja nelas apenas armadilhas monstruosas, que é necessário desmontar. É contra esses que pacientemente combatemos, para que fonéticas e grafias mantenham a harmonia e o prazer que lhes pertencem.