“Já dissemos a doentes com cancro que há medicamentos que não estão disponíveis”
Nova presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia considera que falta dinheiro para tratar o cancro em Portugal. Para Gabriela Sousa só a dedicação dos profissionais de saúde ajuda a que os resultados não sejam piores.
A especialista, que se dedica ao estudo e tratamento de doenças da mama e do aparelho ginecológico e urinário, sendo ainda responsável pela consulta de risco familiar de cancro da mama/ovário, considera que nos próximos anos o papel da SPO passará, sobretudo, por assegurar melhor formação para os mais novos, por batalhar pela qualidade de vida dos doentes, mas também pela saúde dos médicos. “Quando estamos no limite a possibilidade de errar é cada vez maior”, alerta, defendendo que a suborçamentação impede resultados melhores.
Começou agora um mandato de três anos à frente da SPO. Quais as prioridades?
A nossa prioridade é unirmo-nos para elevar a qualidade da oncologia em Portugal. Apesar de termos profissionais excelentes, existem algumas barreiras que nos limitam no tratamento do cancro. A SPO é uma sociedade científica, em que o objectivo maior é a formação e a educação médica contínua, sobretudo dos mais novos. A nossa sociedade tem também algumas particularidades, porque o tratamento do cancro é multidisciplinar e cada vez mais profissionais têm de estar envolvidos. A especialidade de oncologia é relativamente recente e temos muitos oncologistas que vêm da medicina interna. Agregamos ainda a radioterapia, a cirurgia, além de outras especialidades.
Uma das suas preocupações são os jovens especialistas?
O dia-a-dia de quem trabalha com cancro é extremamente difícil, desgastante muitas vezes. Temos um volume de trabalho muito grande e estamos a trabalhar numa doença que leva as pessoas ao seu limite, emocional, social, familiar... É uma profissão com elevado risco de as pessoas desistirem. Quando foi criada a especialidade, em 1995, de início houve vários internos que mudaram a sua área. A nossa preocupação enquanto SPO é apoiar os jovens neste percurso difícil e extremamente competitivo. Queremos dar-lhes mais ferramentas com a formação e em áreas que as pessoas normalmente não apanham no seu percurso formativo, como epidemiologia, estatística, sexologia ou oncofertilidade.
Mas está preocupada com a saída de profissionais do Serviço Nacional de Saúde? Noutras especialidades a saída de quadros mais velhos tem comprometido a formação dos internos.
Isso é transversal. Assistimos de facto a um fluxo de saídas. Hoje a tolerância dos profissionais é zero e as pessoas, quando têm possibilidade de reforma, optam por sair. Pouco os agarra à vida profissional e nesse sentido claro que a formação fica um pouco comprometida. Tem havido a preocupação de formar mais pessoas e os serviços ficam cheios, têm muitos internos.
Também há problemas nos medicamentos inovadores. Com a hepatite C ganhou maior expressão o debate sobre o preço. Como estão as coisas na área do cancro?
Tem que haver uma discussão alargada, com envolvimento da sociedade civil e das entidades pagadoras, para se perceber qual vai ser o modelo de financiamento. Hoje discute-se muito o que é inovação e isso pode gerar alguma polémica. No cancro o que é inovador é diferente do que acontece em algumas doenças infecciosas como a hepatite C, em que o medicamento tem uma taxa de cura. No cancro quando falamos em inovação é em termos de qualidade de vida ou de aumento do tempo de sobrevivência. Muitas vezes é questionado se acrescentar mais dois ou três meses de sobrevivência é suficiente pelo custo. Tem de se encontrar um modelo que funcione para que os medicamentos cheguem aos doentes em tempo útil. Muitas vezes quando o medicamento fica disponível já não vai ser útil. É uma doença em que o tempo é fundamental. Estes medicamentos vêm normalmente para situações de doença avançada em que o doente se degrada rapidamente. Nós, oncologistas, somos treinados diariamente para definir esse timing. Não se trata de dar ao doente um medicamento a qualquer custo, é numa perspectiva de lhe garantir qualidade de vida.
O final do mandato da anterior direcção ficou marcado pela denúncia de problemas como a falta de camas nos IPO, que estaria a atrasar cirurgias.
Não estamos a falar só do tratamento cirúrgico, ainda que esse ganhe mais importância, uma vez que muitas vezes é o tratamento curativo. Estamos a falar da quimioterapia, o tratamento hormonal, sistémico e a própria radioterapia. Não podemos falar num atraso mas em dificuldade em reunir uma equipa multidisciplinar.
O cancro é a segunda doença que mais mata em Portugal e estamos aquém das médias europeias. O que está a falhar?
O investimento nestas áreas é proporcional à sobrevivência. Estamos aqui perante um subfinanciamento do cancro, como já temos alertado. O gasto no cancro ronda os 53 euros per capita, metade da média da OCDE, e isto plasma o que podem ser os nossos resultados. Mesmo assim as instituições e os profissionais têm um enorme mérito. Diariamente vemos muito mais doentes do que está padronizado. Trabalhamos numa sobrecarga muito grande e queremos alertar para a exaustão dos profissionais. Temos de garantir a qualidade do serviço que se presta ao doente, mas também temos de pugnar pela saúde dos profissionais.
Sem esse esforço adicional o que teria acontecido com esta crise?
Os timings dos tratamentos seriam claramente comprometidos e o tempo é muito importante nesta doença.
Mas disse que a tolerância já é zero… que riscos corremos?
Há o risco de saturar ainda mais o sistema. Os profissionais estão em tolerância zero. Todos os dias tentamos que não haja riscos para os doentes e que não se cometam erros, mas quando estamos no limite do que podemos fazer a possibilidade de errar é cada vez maior e isso tem de ser salvaguardado.
Os doentes têm hoje mais informação. Já foi confrontada com tratamentos importantes que o SNS não pode dar?
O doente tem direito a ter toda essa informação e os médicos devem dizer o que há disponível e onde. Já todos tivemos de dizer a alguns doentes que há medicamentos que não estão disponíveis, porque estão em contexto de ensaio clínico ou porque ainda não estão aprovados.
E que relação há com as terapias alternativas?
Estamos a colaborar com o Observatório de Interacções Planta-Medicamento da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra. Temos problemas com muitos doentes. Há interacções gravíssimas que nos fazem suspender o tratamento por sintomas que põem em risco a vida do doente - que muitas vezes esconde o que toma e é pressionado pela família e amigos a tomar outras coisas. Nas nossas salas de esperam comercializam-se estas medicinas alternativas e isto é gravíssimo. Mesmo um desvio alimentar pode interagir com alguns fármacos, como as toranjas e laranjas em excesso que as pessoas consomem por acharem que faz bem.
Por outro lado, temos cada vez mais sobreviventes. Como está a ser garantido o acompanhamento destas pessoas?
Quem passa por uma experiencia destas vê a sua vida transformada. É preciso que a sociedade volte a integrar estas pessoas, que muitas vezes têm algumas limitações. Temos de estar preparados para esta população crescente, que são os sobreviventes de cancro. É importante reforçar as equipas e a ligação do hospital que trata o doente com o centro de saúde para esse apoio ser um apoio em rede.
Os doentes ainda chegam maioritariamente pelo médico de família ou há muita gente que vem com o diagnóstico feito no privado?
A grande referenciação que chega aos hospitais ainda é a partir do médico de medicina geral e familiar e de seguida pela urgência, onde o doente chega com uma queixa e é-lhe diagnosticada uma neoplasia. Muitas vezes é já um diagnóstico tardio - o que é mais frequente no cancro do pâncreas, cólon e bexiga.
Ainda há muito a ideia de que o cancro é uma doença do idoso. Nos doentes mais novos já há uma consciência da importância de preservar a fertilidade?
Temos feito bastante trabalho com a Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, a definir recomendações de preservação da fertilidade. Mas no terreno é preciso melhorar a capacidade de cada unidade de oncologia saber para onde referenciar os doentes.
No IPO dedica-se sobretudo às patologias da mulher. Como estão estas doenças? A queda na adesão aos rastreios está a levar a diagnósticos mais tardios?
Os programas de rastreio não têm uma cobertura de 100%. A cobertura quer no cancro da mama quer no colo do útero ronda os 70% e a adesão é ainda mais baixa. Há sempre o diagnóstico de quem não é apanhado pelo rastreio, às vezes em fases mais avançadas da doença. A relação da curabilidade dos tumores depende muitas vezes do estadio em que são apanhados. Quanto mais precocemente maior a taxa de cura. No útero contamos neste momento com a utilização da vacina para o HPV, que está no plano nacional de vacinação, pelo que acredito que daqui uns anos seja uma patologia cada vez mais rara.
No cancro há sempre receio em usar a palavra cura. Isso tem mudado?
Há tumores com elevada probabilidade de cura. Há uma elevada percentagem de sucesso, mas claro que gerir as expectativas não é fácil. Temos de utilizar as palavras correctas na altura certa. Já tenho dito quando estou perante uma doença avançada que não há uma expectativa de cura mas de controlo. Podemos ter doença avançada controlada durante muitos anos.
Está também à frente da consulta de risco familiar da mama e do ovário. Recentemente as cirurgias de Angelina Jolie trouxeram as intervenções preventivas para o debate.
A Angelina Jolie teve esse mérito de gerar alguma discussão. Tivemos um volume acrescido de dúvidas e solicitações. Mas as consultas de risco familiar que funcionam em Portugal têm critérios bem definidos. A chave para perceber quem deve aceder ou não é a história familiar, e aqui também é muito importante o médico de família. Em cima da mesa estão varias opções: a vigilância activa, caso seja esse o objectivo da pessoa, ou a realização de cirurgias profilácticas. Não é preciso ser tudo ou nada. Mas a ovariectomia retira 50% da probabilidade de vir a ter cancro da mama.
Os hospitais privados têm vindo a ganhar peso na área do cancro. A qualidade está garantida?
A qualidade mantém-se assegurada. Muitas vezes os profissionais que estão no público são os que estão no privado. Mas sinto que a maior parte das pessoas manifestam uma grande confiança no sistema público quando são confrontadas com um cancro.
A rede de referenciação continua atrasada. O que era essencial avançar?
A rede está finalmente em andamento. Faz sentido organizar o tratamento do cancro em áreas de patologia nos hospitais mais diferenciados, mas é muito importante o contributo das unidades que oferecem cuidados de proximidade. Era vantajoso estarmos organizados numa rede regional. A rede tem de ter dois sentidos, não pode ser só um. Não pode ser uma rede de referenciação para cuidados diferenciados, temos de devolver o sobrevivente e o doente paliativo, quando não precisa dos nossos cuidados.
Essa organização deveria contemplar também a fase dos cuidados paliativos, onde existem muitas falhas
Os doentes ocupam camas das unidades mais diferenciadas quando podiam estar em unidades mais de rectaguarda. A rede de cuidados ao doente oncológico tem de evoluir, concretamente a rede de cuidados paliativos. Era muito importante podermos oferecer mais cuidados domiciliários, porque o que eu sinto no terreno é que o doente quer estar em casa nessa fase.
A falha no apoio final não compromete a visão que se tem do cancro?
Esse sofrimento que as pessoas associam ao cancro, nomeadamente a dor física, é algo que hoje se consegue perfeitamente tratar. As pessoas podem morrer dignamente com equipas treinadas e capacidade de resposta.
Está há vários anos no terreno. O que lhe dizia a palavra cancro quando começou e o que diz agora?
Não mudou a forma como olho para o cancro. O que é hoje é o que era na altura, apesar de eu ter assistido a grandes progressos com enorme satisfação. Estou na oncologia porque acredito que trabalhamos todos os dias para melhorar a qualidade de vida dos nossos doentes. É com essa vontade que vou trabalhar e isso é igual.