Tikrit resgatada aos islamistas tornou-se cidade sem lei

A forma como Bagdad lidar com desacatos das milícias será um teste à sua capacidade para ultrapassar divisões entre xiitas e sunitas. E para o apoio à campanha contra o Estado Islâmico

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Membro de uma milícia xiita bate num alegado membro do Estado Islâmico em Tikrit Alaa Al-Marjani/REUTERS
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O primeiro-ministro Haidar al-Abadi, quando visitou Tikrit, a 1 de Abril REUTERS
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Milícia xiita com uma bandeira do Estado Islâmico, após terem reconquistado Tikrit Thaier Al-Sudani/REUTERS

O assassínio, presenciado na quarta-feira por dois correspondentes da Reuters, não identificados por razões de segurança, está a ser investigado, segundo o porta-voz do Ministério do Interior iraquiano. Mas não foi caso único de violência sectária nos últimos dias. Os repórteres viram também, igualmente na quarta-feira, uma carrinha de caixa aberta de paramilitares xiitas – que participaram na reconquista ao lado das forças governamentais – arrastar pelas ruas o cadáver de um islamista morto em combate.

Episódios de violência, pilhagens e incêndios de casas marcaram os primeiros dias pós-reconquista de Tikrit. Responsáveis das forças de segurança iraquianas disseram, sob anonimato, que milicianos xiitas incendiaram dezenas de casas e saquearam lojas. Mais tarde, o presidente do conselho da província de Salahuddin, Ahmed al-Kraim, afirmou que foram “centenas” as casas incendiadas, lojas e edifícios públicos saqueados. Há relatos de carrinhas de caixa aberta a transportarem frigoríficos, aparelhos de ar condicionado, impressoras e mobiliário.

Kraim afirmou à Reuters que as forças de segurança governamentais receavam enfrentar as multidões. E acabou, ele próprio, por deixar a cidade, ao final de sexta-feira, dois dias após a expulsão pela força dos radicais sunitas do Estado Islâmico, que tinham tomado Tikrit em Junho do ano passado. “A nossa cidade foi queimada à frente dos nossos olhos. Não podemos controlar o que está a acontecer.”

Na quarta, um dia depois de forças pró-governamentais terem “limpo” o coração da cidade, pondo termo a uma batalha de um mês, os tiros esporádicos no centro eram em grande parte comemorativos da mais importante vitória do Governo do Iraque sobre o autoproclamado Estado Islâmico – escreveu a repórter Loveday Morris, num trabalho para o Washington Post.

As bandeiras negras dos extremistas do autoproclamado “califado”, que até há poucos dias estavam hasteadas nos edifícios públicos, tinham sido substituídas pelas do Iraque e das milícias xiitas, que integram parte significativa do contingente que expulsou os islamistas. Ao longo de um percurso de pouco mais de três quilómetros através de Tikrit, desde o lado ocidental da cidade até ao palácio junto ao Tigre, a repórter não encontrou sinais de resistência à ofensiva das forças terrestres de Bagdad. No centro não se viam civis e as casas estavam em grande medida intactas.

Ordem para prender
O principal receio era então o de ajustes de contas, por parte de grupos armados participantes na reconquista da terra natal do antigo ditador, Saddam Hussein, quase 180 Km a Norte de Bagdad. O primeiro-ministro Haider al-Abadi, tido como xiita moderado, tinha já apelado à contenção. O ministro do Interior, Mohammed al-Ghaban, que foi a Tikrit logo depois da reocupação, disse: “Não queremos vingança. Queremos libertar o povo e a terra”.

Ghaban falou junto ao local de uma das maiores atrocidades do Estado Islâmico – a matança, que o Governo estima de pelo menos 1700 soldados da base militar de Camp Speicher, nos arredores de cidade, no ano passado. “Foi derramado aqui sangue inocente”, disse, nas imediações do lugar onde, segundo o Post, marcas de sangue seco podem ainda ser vistas ao longo de muros junto ao rio Tigre, para onde foram atirados soldados sumariamente executados.

O que aconteceu nos últimos dias em Tikrit não deixa de ser grave e igualmente preocupante para a causa da guerra contra o Estado Islâmico. Na opinião de deputados sunitas que visitaram a cidade, os episódios de violência, pilhagens e incêndios seriam uma tentativa de paramilitares xiitas para mancharem uma importante vitória militar do Governo. Um deles, Mutashar al-Samarrai disse, citado pela Reuters, que o Executivo procurou fazer uma entrada suave e em Tikrit e que aquilo a que se vem assistindo é a “uma luta entre os paramilitares e o Governo”.  

A forma como o poder de Bagdad conseguir, ou não, controlar a situação em Tikrit, no coração sunita do Iraque, será um teste à sua capacidade para ultrapassar as divisões entre a maioria xiita do país, agora no poder, e a minoria sunita, dominante no tempo de Saddam. Não menos importante permitirá perceber até que ponto o Governo controla as milícias xiitas apoiadas pelo Irão.

Os grupos paramilitares xiitas foram fundamentais para sustentar o poder formal iraquiano quando, no ano passado, o avanço do Estado Islâmico desbaratou o exército, e também para a resposta militar dos últimos meses. Mas essas milícias são temidas pelos sunitas, que as acusam de abusos e execuções sumárias. A forma como os acontecimentos na Tikrit libertada forem encarados pelos sunitas moderados não deixará de se reflectir na sua atitude face ao esforço de guerra contra o Estado Islâmico, sunita radical, num momento em que as forças governamentais preparam o avanço sobre Mossul, principal cidade do Norte.

Consciente da delicadeza do assunto, o primeiro-ministro Abadi, que na quarta-feira também esteve em Tikrit, emitiu na sexta um comunicado em que pede às forças de segurança para prenderem qualquer pessoa que viole a lei. Mas nas horas seguintes não surgiram indicações de que a situação se tivesse alterado substantivamente. Ao fim da tarde de sábado, após um encontro entre o chefe do Governo e responsáveis provinciais, Ahmed al-Kraim anunciou que os paramilitares iam deixar a cidade, para se instalarem em áreas limítrofes. "O saque e o vandalismo contra a propriedade dos residentes acabou hoje e as coisas vão melhorar", disse.

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