A proeza? A delicadeza

Ter acompanhado, em favor da ficção, o crescimento e envelhecimento dos actores, colocou Linklater perante um desafio: a delicadeza. É essa a proeza.

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Boyhood

é esse projecto de cápsula de tempo, agora em filme: 12 anos da vida de um miúdo e da sua família, da vida da América, Bush, o Iraque, Britney Spears, o facebook e o iPod, Obama e Lady Gaga, a caçadeira e a Bíblia. (Portanto, a vida de todos nós a desfilar perante nós.) Em três horas, filmadas de forma esporádica entre 2002 e 2013: alguns dias por ano, o equivalente a 39, de encontro com os actores, actualizando o crescimento, o envelhecimento, o “agora” a ser o resultado de rasura, desgaste, aquilo de que o tempo se aproveitou. Ellar, o miúdo, começou a ser filmado aos seis anos. Quando acabou a rodagem era adolescente, tinha 18.

É em Jogo Duplo/Double Play, o documentário de Gabe Klinger sobre o encontro e as conversas e as surpreendentes afinidades entre Richard Linklater e James Benning (está também nas salas), que o realizador de Boyhood assume uma linhagem “kubrickiana” na forma autodidacta como se iniciou no cinema: comprou câmaras e começou a filmar. O que é muito bonito em Boyhood, desde logo, é a forma como o filme se mostra: como se se apagasse, como se apagasse os sinais de acontecimento, de filme-conceptual, que corre o risco de criar – o espectador poderá, por exemplo, sussurrar a sua emoção à medida que se vai dando conta dos corpos que aparecem no lugar dos corpos de Patricia Arquette, Ellar Coltrane, Ethan Hawke ou Lorelei Linklater (eles próprios, progressivamente mais velhos) mas não apontará o dedo em êxtase para a proeza.

É, portanto, uma experiência anti-kubrickiana. E se é em Boyhood que Linklater exprime um corolário filosófico que serve à sua obra (acrescentando, por isso, um suplemento de gravitas, talvez mesmo de angústia, à trilogia Before Sunrise/Sunset/Midnight, que, ele assume, foi mais produto das circunstâncias do que gesto planeado), o olhar totalizante está arredado.

Há talvez um plano programático, a querer significar: a personagem de Ellar Coltrane a indagar os restos em decomposição de um pássaro. Há o diálogo final, Ellar de novo, mas mais velho, a filosofar: não aproveitamos o momento, o momento é que nos apanha e damos por isso quando uma parte de nós já é memória. Mas são pontuações, talvez alertas; não são “espectáculos” em si mesmos.

Todo o filme se decide naquilo que não se vê, no que se apaga, no que se perdeu, no que se deixa para trás. Está logo na primeira sequência de mudança de casa, o limpar das marcas nas paredes de uma existência; ainda, a forma como “desaparece” do filme uma família, os irmãos por afinidade de Ellar – o “desaparecimento” dos maridos da mãe de Ellar é instalado sempre de forma prodigiosa; por exemplo, e isto acontece mesmo depois de uma revisão de Boyhood, os sinais de uma conjugalidade a ser corroída (o álcool e o marido de Arquette...) permanecem imprescrutáveis, serão sempre “lidos”, a cada visão, sem sentimentos de redundância.

Ter acompanhado, em favor da ficção, o crescimento e envelhecimento dos actores, colocou Linklater perante um desafio: a delicadeza. É essa a proeza. O filme é (também) um documentário sobre eles, e mais do que isso, é um documentário que vai ficar para eles. O filme pertence-lhes. You can’t go home again? Não, não se pode regressar a casa. E, com as imagens deles, Patricia, Ellar, Lorelei, Ethan, you can’t flashback again.

 

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