Há 55 anos, Lisboa festejava o seu grande hotel de luxo
Com baile, banquete e festa até de madrugada, inaugurou há 55 anos o histórico Hotel Ritz de Lisboa, projecto do arquitecto Pardal Monteiro, decidido por vontade de Salazar, para um país que, no pós-guerra, se queria modernizar e abrir ao turismo.
“Era uma coluna de suporte, e o que o arquitecto pensou foi em disfarçá-la”, conta, satisfeito por este regresso inesperado. “Está num sítio muito visível, quem entra no salão [na parte de baixo do hotel] passa pela coluna”. Já não se recorda exactamente desses dias em 1959 que terá passado aqui a trabalhar. Sabe que havia vários outros artistas a circular pelo hotel – uma das características do Ritz é precisamente o facto de, como salienta a arquitecta Ana Magalhães, que nos acompanha nesta visita, ser uma espécie de “museu” tal a quantidade de obras de arte que alberga.
“Este foi o hotel que naquela época mais decoração teve”, confirma Querubim Lapa. “E acho que mesmo depois nunca se fez um hotel com tanta colaboração de artistas tão diversos. Aqui a decoração nasce com a própria construção do hotel.” Mas desse rodopio de artistas não se recorda bem. Estava concentrado no trabalho na sua coluna, explica enquanto atravessamos o Salão Almada, com as grandes tapeçarias de Almada Negreiros. Saímos por um momento para o exterior, a ampla varanda de onde se vê o Parque Eduardo VIII, em frente, e, mais à direita, a rotunda do Marquês de Pombal.
“Este hotel é um compromisso entre a modernidade e a tradição. É um edifício moderno, mas é um moderno tardio”, explica Ana Magalhães. “Naquela altura não havia nenhum grande hotel em Lisboa, havia um de luxo, o Hotel Aviz, mas era de pequenas dimensões. Desde há muito tempo que havia este desejo de fazer um grande hotel de luxo, e esta era a zona de crescimento da cidade.”
A ideia partiu de um construtor civil, Casimiro Antunes Paulo, que, através do Secretariado Nacional de Informação (SNI), começa a pedir apoio ao Governo. “Manda uma série de cartas, mas numa primeira fase ninguém lhe liga nenhuma, até que a determinada altura a proposta chega aos ouvidos de Salazar. E de repente passa a ser um tema interessante.”
Projecto Casa do Império
Já na altura da Exposição do Mundo Português, em 1940, em plena II Guerra Mundial, o Governo pensara na necessidade de ter um hotel para receber os eventuais turistas. “A ideia era chamar-lhe Casa do Império, mas acabou por nunca se concretizar”, recorda a arquitecta, que fez uma tese sobre o Hotel Ritz.
Mas terminada a guerra, e com a Europa em recuperação, “o turismo era uma actividade económica em expansão”. Salazar adere, portanto, à ideia. Forma-se um consórcio de capitalistas (em que se destacam as famílias Espírito Santo e Queiroz Pereira), e o projecto é entregue ao arquitecto Porfírio Pardal Monteiro, autor, entre outros, da Biblioteca Nacional, ou da Cidade Universitária. “Era o arquitecto óbvio para uma obra como esta”. Mas morrerá em 1957, antes de a ver terminada. Conta, no entanto, com uma equipa de arquitectos mais jovens que terá um papel fundamental, entre os quais se destaca Jorge Ferreira Chaves, que o acompanha desde os estudos iniciais e até à conclusão do edifício, depois da sua morte, e Frederico Santana, figuras cuja importância o próprio Pardal Monteiro reconhecerá.
Estão reunidas as condições para avançar para o projecto ao qual inicialmente se pensou chamar Palácio da Rotunda. Em primeiro lugar, a localização: o terreno escolhido era ideal, “era uma escolha que fazia todo o sentido, o Marquês de Pombal ia ser o novo centro empresarial da cidade, e além disso o terreno ficava próximo da recém-construída auto-estrada em direcção a Cascais, e não muito longe do aeroporto de Lisboa, dois pontos importantes para o turismo.”
Querubim Lapa também se lembra da impressão que causou. “As pessoas aderiram logo, o que é curioso. É um volume enorme, dá muito nas vistas, quando passávamos no Marquês víamos logo o Ritz, o grande hotel.”
Depois, o Governo criou condições excepcionais. Ana Magalhães recorda: “Ficou assegurado que durante vinte anos não se pagavam impostos sobre o terreno, e os construtores estavam também isentos dos direitos alfandegários sobre tudo o que importavam, desde os mármores que vieram da Escandinávia, aos pianos, ao mobiliário.”
E, por fim, havia os artistas. Para além do extraordinário trabalho de decoração feito pela Fundação Ricardo Espírito Santo, havia a arte encomendada especialmente para o local. O que, aliás, não foi completamente pacífico. “O movimento moderno falava da obra global, da integração das artes”, conta a arquitecta. “E o facto de aqui a intervenção artística ser mais decorativa, ser mais uma justaposição do que uma integração, levou a que surgissem críticas da geração mais jovem. O [pintor] Nikias Skapinakis chamou-lhe mesmo uma ‘manta de retalhos’”.
Para a inauguração do Ritz foi organizado um baile de gala para dois mil convidados. “O país vibrou, as grandes lojas de alta costura encheram-se, jóias há muito esquecidas foram retiradas dos seus estojos. Mais de uma centena de estrangeiros chegaram dos mais variados países para essa noite de festa. Uma ceia memorável, concebida por Pierre Gachet, foi servida com os pratos mais sofisticados. As baixelas vindas de Paris brilharam em uníssono com os cristais desenhados especialmente para o hotel num décor memorável”, escreve Helder Carita no livro Ritz – quatro décadas de Lisboa, editado para assinalar os 40 anos.
O contrato de exploração foi assinado com George Marquet, presidente da sociedade Les Grands Hotels Européens, que, segundo Carita, se empenha em ajudar a conceber o “hotel perfeito”. Havia boutiques, uma barbearia, restaurantes e até uma boite com duas orquestras, a Carrossel, que encerrou em 1974. “Opulento de grandeza, o Hotel Ritz”, foi o título da notícia do jornal O Século a propósito da inauguração. E, três anos depois, o Ritz era capa da revista Life num artigo sobre os novos hotéis de luxo no mundo.
Continuamos a percorrer os espaços, passamos em frente à sala de refeições com duas paredes-janelas abrindo-se ao exterior, atravessamos um longo corredor do qual se vê, à nossa direita e em baixo, o Salão Nobre, encontramos uma parede com um cartão de Pedro Leitão e lacagem de António Louro de Almeida, descemos a escadaria cheia de efeito cénico, e chegamos finalmente à coluna do mestre ceramista. Querubim observa-a atentamente, acha-a bem preservada, e diz que, apesar de não a ver há muito tempo, se lembrava perfeitamente dela.
“Este rosto, talvez a luz”, diz, referindo-se a umas das figuras da coluna, “está voltado para quem desce as escadas, o outro rosto está voltado para a grande sala. É uma coluna que pode ser vista por diversos ângulos. É uma composição fragmentada. E porquê? Porque é vista de passagem e por isso nunca temos a noção da totalidade dela. Tem um ar de totem. Não temos a sensação de que está ali para esconder uma coluna”. Confessa que essa foi a sua principal preocupação. Mas, passado meio século, continua a achar que foi um trabalho conseguido – o seu e o dos outros artistas. “Havia a necessidade de encontrar uma decoração para que estes espaços não vivessem silenciosos. Porque elas falam… a obra de arte fala connosco, faz-nos parar. Uma das virtudes da obra de arte é essa, podemos parar, olhar e pensar.”
E no caso do Ritz faz todo o sentido falar nesta ideia de um percurso pontuado por obras de arte, que nos vão acompanhando, distraindo, surpreendendo. Voltamos a ouvir Ana Magalhães: “É muito evidente aqui a ideia de percurso, que podemos associar ao [arquitecto franco-suíço] Le Corbusier e à sua promenade architecturale que no fundo é o que fazemos aqui quando percorremos estes espaços. É um percurso que se vai descobrindo pela arquitectura.”
Um dos espaços em que melhor percebemos isso, e de uma forma surpreendentemente discreta, é nas escadas de serviço junto à zona dos quartos, que quase ninguém utiliza porque geralmente os hóspedes usam o elevador. É até aí que Ana Magalhães nos leva para mostrar como as janelas rasgadas na parede exterior nos vão revelando, de diferentes ângulos e conforme o ponto de onde olhamos, a cidade lá fora.
Depois, há o facto de a entrada não ser evidente. “O terreno tem uma certa inclinação, e a entrada principal do hotel é feita pela Rodrigo da Fonseca, uma rua secundária que foi escolhida por ser mais resguardada e ter menos trânsito. Pela Rua Castilho faz-se apenas a entrada para o salão de festas, que está dois pisos abaixo.” O que temos, no projecto do Ritz, é um paralelepípedo levantado sobre pilotis, o que dá a impressão de leveza a um edifício muito grande.
“O grande problema deste terreno era a exposição aos ventos”, conta Ana Magalhães. “Pardal Monteiro cria estas varandas, em vez de abrir as janelas na fachada, criando assim um espaço de recuo que protege os quartos do vento. Mas isto era uma justificação, porque o que resulta é a imagem do edifício com estas caixas e este claro-escuro que se vê na fachada do Ritz.” É destas varandas dos quartos, visto de cima, que o jardim elevado, voltado para a Rua Castilho, frente ao Parque Eduardo VII, ganha a sua maior expressão. “Foi desenhado precisamente para ser visto de cima”.
Subimos ainda até à cobertura, à zona onde posteriormente foi instalado o spa, e, saindo para o exterior, descobrimos, olhando para cima, e agora muito perto de nós, as grandes letras com a palavra RITZ.
Uma última coisa, que não é visível para a maioria das pessoas, mas que é fundamental para se perceber o Ritz, é “a quantidade de espaços que não se vêem, que estão nos bastidores e que garantem a qualidade do serviço”, diz Ana Magalhães. Há, por exemplo, 16 elevadores, quatro para os hóspedes, e 12 de serviço, há sete entradas, das quais apenas duas dos hóspedes, há toda uma estrutura escondida que permite o funcionamento de tudo.
O edifício do Ritz é um museu, mas é também uma eficaz “máquina de habitar”. Moderna há mais de meio século.