Atrás das barricadas
Quem ousa fechar ruas semanas a fio, desafiando o Partido Comunista Chinês? O que lhes dá mais força? O sonho com o direito de eleger e ser eleito ou o pesadelo com Hong Kong a tornar-se uma cidade igual a qualquer outra da República Popular da China? Até aonde estão dispostos a ir?
O rosto cansado apoiado nos cotovelos enegrecidos. Já passa da meia-noite e William Chan ainda está entre amigos, em torno de uma mesa de vidro, junto aos serviços centrais do governo, em Admiralty, Hong Kong. Quando partirem, mergulhará no seu silêncio, na sua solidão, ainda que envolto nos sons do acampamento, e deitar-se-á no chão, enrolado num cobertor.
Há-de despertar às 5h45. Mora em Ho Man Tin, na península de Kowloon, a norte da ilha de Hong Kong. Faz uma viagem de metro e caminha uma meia hora até casa, montanha acima. Àquela hora encontra o pai, motorista de táxi, com a mãe, doméstica, e os irmãos, ainda pequenos. Toma um banho, veste-se, come qualquer coisa e corre para a escola. Tem de lá estar antes das 8h.
Dorme ao relento desde 28 de Setembro. Primeiro, deitava-se numa paragem de autocarro desactivada. Adormecia a ver e a ouvir falar outros. Sabia lá quanto tempo mais teria para os ver e ouvir. Supunha que dias. Volvida uma semana e meia, até um corpo de 16 anos implora descanso. Procurou sossego. E encontrou-o ali, junto ao edifício governamental, na esplanada abrigada do café.
Naquele dia 28 de Setembro, estava em casa. Era domingo. Parou em frente ao televisor, indignado: estudantes da sua idade ou mais velhos, entre nuvens de fumo, usavam guarda-chuvas como escudo. A polícia lançava gás lacrimogéneo. Na véspera, já usara gás pimenta e detivera alguns dos estudantes que, no culminar de uma semana de greve, ali tinham ido reclamar “verdadeiro” sufrágio universal. Aquela luta também era sua. “Eu quero ter o direito de escolher o meu governo.”
Pequim prometeu que Hong Kong poderia eleger o chefe executivo por sufrágio universal em 2017. A 31 de Agosto, decidiu que o comité de nomeação terá de pré-aprovar os candidatos — dois ou três — e que o Governo da República Popular da China terá a última palavra a dizer sobre o eleito.
Precipitou-se para o epicentro dos protestos. O movimento cívico Occupy Hong Kong with Peace and Love, inspirado no Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, aliara-se aos estudantes e antecipara a campanha de desobediência civil que planeara para dia 1, o Dia Nacional. Em vez de dispersar, amedrontada com o gás lacrimogéneo, avolumava-se a multidão. De todo o lado parecia vir gente.
Depois daquele dia, nem a chuva, nem a ventania afugenta William. Muito lhe pedem amigos que durma numa das mais de mil tendas que, entretanto, foram montadas em frente, atrás e ao lado do Governo e do Conselho Legislativo, mas ele só por duas vezes cedeu — estava adoentado, se piorasse, teria de ficar em casa. Leva isto tudo muito a sério. Para ele, luta é sacrifício. Nem traz a guitarra de que tanto gosta. “Isto não é um recreio, é um espaço de debate sobre o que deve ser Hong Kong.”
William estava quase a nascer quando Hong Kong passou para a China, após 156 anos de administração colonial britânica. Sob o princípio “um país, dois sistemas”, foi-lhe atribuído elevado nível de autonomia — só as relações diplomáticas e a defesa nacional ficaram por conta do governo central. Tornou-se uma região administrativa especial. Deram-lhe 50 anos para se ajustar. Faltam 33.
O rapaz não se sente representado pelo chefe executivo, Leung Chun-ying, eleito com 689 votos por um comité composto por 1200 elementos de sectores-chave, como a indústria, o comércio e as finanças. “Por mais ricas e poderosas que sejam, essas 1200 pessoas não representam Hong Kong.” Leung parece-lhe demasiado próximo de Pequim. E essa intimidade assusta-o. É um susto partilhado nas ruas tomadas pelos manifestantes. Chamam-lhe 689. Desenham-lhe dentes de vampiro, chifres de diabo, nariz de Pinóquio, bigode de Adolf Hitler. Representam-no como uma marioneta, uma escultura de estilo soviético ou um lobo com a farda do exército vermelho.
Não quer que Hong Kong seja como qualquer parte da República Popular da China. “Se fosse, não havia este movimento [o ‘movimento dos guarda-chuvas’]. É por sermos relativamente livres que podemos protestar. Tenho medo de que essa liberdade desapareça. E por isso estou aqui todas as noites. Levanto-me, se não por um futuro brilhante, pelo menos, por um futuro não sombrio.”
Há muito quem, como Ho Lok Sang, director do Centro de Estudos de Política Pública da Universidade Lingnan, pense que William e outros estão a ir longe de mais. “Eles decidiram que certas ruas devem estar sem trânsito. Quem lhes deu esse direito? O valor central da democracia, pela qual dizem estar a lutar, é o respeito pela lei, o respeito pelos outros.” Gasta-se mais tempo na estrada. Ho tem uma filha deficiente e ela gasta mais meia hora entre a casa e o centro de actividades ocupacionais.
A cidade pergunta-se, num murmúrio ou num rugido, até quando aquela forma de protesto se arrastará. Quem saberá responder? As posições parecem irreconciliáveis.
Ho e outros académicos pró-Pequim tentaram pontos intermédios. Cada candidato tem de ser aprovado por pelo menos metade do comité de nomeação. Alargando a composição do comité e reduzindo o grau de aprovação exigido, até os pró-democratas teriam hipótese de entrar na corrida. Pequim disse que não. Ho ficou desiludido, mas resignado: “Pequim quer ter a certeza de que quem exerce o cargo de chefe executivo não se opõe ao Partido Comunista, porque isso é importante para a estabilidade da China.”
A utopia
Esqueça a Hong Kong veloz, frenética, orientada para o dinheiro. A cidade interrompe-se em Admiralty. Naquele quarteirão, a realidade dá lugar à utopia. Basta olhar para as paredes, sobretudo para uma pejada de post it a que chamam “Lennon Wall” — acompanha as escadas que dão para uma ponte da qual cai uma faixa gigante com um verso do músico britânico: “Podes dizer que eu sou um sonhador, mas não sou o único.”
No princípio, a ocupação era um conjunto de barricadas levantadas à pressa, com guarda-chuvas e outros materiais trazidos pelo improviso. Dias depois, já se tinha transformado num acampamento com wifi, geradores para alimentar candeeiros e amplificadores, carregar computadores e telemóveis, degraus atapetados com setas pintadas para um lado e para outro.
Voluntários revezam-se em turnos de manhã, tarde e noite. Há vários postos de primeiros socorros. Uma “equipa de defesa”, equipada com walkie-talkies e apitos, patrulha a zona. Sabe quantos policiais estão no perímetro e onde. E está atenta a qualquer sinal de manifestantes antiocupação.
De poucos em poucos metros, “postos de comando” atolados com doações protegidas por sacas de serapilheira. Formaram-se equipas para emprestar tendas, sacos-cama ou cobertores; equipas para recolher lixo, separá-lo, depositá-lo em locais próprios; equipas para armazenar e distribuir água, frutas, bolachas e outros alimentos. Nada a faltar nas casas de banho públicas — dentífricos, desodorizantes, hidratantes para mãos, rosto, corpo, protectores solares, toalhetes, tampões, pensos higiénicos, à serventia.
Os produtos vão sendo oferecidos, sobretudo, por particulares que apoiam a ocupação mas não podem fazer parte dela. Quem integra a logística vale-se das redes sociais para anunciar o que está a esgotar. E tanto se vê um adolescente ou um adulto entregar duas garrafas de água como duas caixas.
O discurso oficial aponta para uma conspiração financiada pelo Ocidente. Caminhando entre tendas, tudo cheira a automotivação, iniciativa própria, autogestão.
Em qualquer lado se faz um discurso. Aqui e ali, gente sentada no chão a conversar, a ver passar ou a tentar fazer arte — desenham os protestos, criam cartazes, constroem guarda-chuvas de papel, pintam capacetes ou fazem qualquer outra coisa que lhes ocorra. Nada desobriga os deveres escolares, nem sequer os debates sobre o que fazer, caso a polícia entre em força.
A “sala de estudo”, estrutura de ferro e cobertura de lona montada na rua em frente aos serviços do Governo, tem a forma de uma língua comprida. Podem lá sentar-se 200 estudantes. Alguns ficam noite dentro. Uns até adormecem debruçados nas secretárias, agarrados a algum caderno, livro, tablet ou smartphone. Mais de cem licenciados rodam no papel de “tutores”.
Wing-fai Chan, antigo gerente de uma fábrica têxtil, sempre gostou de trabalhos de madeira. Começou por fazer degraus para ajudar a ultrapassar as barreiras rodoviárias e virou-se para as secretárias e para os bancos. Levanta-se cedo, procura restos de madeira num refugo perto de sua casa, em Lai King. Está ali quase todos os dias, muitas vezes até às 23h. Ensina muitos a fazer peças, que entram logo em uso. Outras pessoas trazem mesas e cadeiras e entregam-nas aos tutores.
As tarefas assumidas por cada um podem ser muito pessoais, invisíveis até. A designer Betty Lau e quatro amigos decidiram olhar por William. Ninguém lhes pediu. Admiram-lhe a solidez, a determinação, o estoicismo. E preocupa-os que passe muito tempo sozinho, que possa ter frio ou fome.
William pouco fala, mas ouve muito e observa ainda mais. E é por tanto ouvir e observar que não sobrevaloriza os líderes estudantis que fazem as capas dos jornais e das revistas. “O que faz com que isto esteja a acontecer há tanto tempo é a dedicação de milhares de anónimos. É o poder colectivo.”
É como se, na cidade vertical, uma das mais densamente povoadas do mundo, se (re)descobrisse o espírito comunitário. É atrás dessa sensação que Athena HoYi Leong, uma miúda de 14 anos aspirante a repórter, sai do colégio e, em vez de ir para o centro de apoio ao estudo como a mãe manda, apanha o metro para Admiralty. E foi ao percebê-la que Winky Chow, técnica de marketing digital de 35 anos, recuperou o gosto por uma cidade que julgava materialista e fútil.
“Antes as pessoas estavam tão ocupadas”, comentava Betty, uma noite, eram quase duas da manhã, num tom de voz que era quase um sussurro. Repousava já muita gente dentro de tendas de todas as cores, alinhadas, a formar ruas, como se um arquitecto ali estivesse a dizer onde cada um podia montar a sua. E ela estava sentada dentro de uma delas, em posição de lótus.
A cidade pergunta-se, num murmúrio ou num rugido, até quando aquela forma de protesto se arrastará. Quem saberá responder? Sentem-se tão bem os jovens acampados no quarteirão governamental.
Na azáfama do dia-a-dia, Betty mal via os amigos. “Éramos muito próximos, criámos um grupo de chat e falávamos todos os dias, mas podíamos estar semanas ou mesmo meses nem nos vermos. Desde que isto começou, encontramo-nos todas as noites aqui.” Partem antes dela. Moram longe. Não se podem dar ao luxo de apanhar táxi, como nos primeiros dias. Desaparecem antes do fecho do metro. Só ao fim-de-semana, dispensados do trabalhar, dobram a noite ali.
Conflito geracional
No dia 28 de Setembro, também Betty correu para Admiralty. Desconfiada, a irmã, Rita, ligou-lhe. Repreendeu-a. Tudo aquilo lhe parecia demasiado perigoso. Tinha medo que algo lhe acontecesse. Ordenou-lhe que regressasse a casa de imediato. Como ela se recusou a obedecer-lhe, ameaçou telefonar à mãe, que está na China, onde a família tem uma fábrica de malas. “Oh, não! Eu tenho 32 anos, tenho liberdade de ir para onde quiser”, reagiu, desligando o telemóvel. Minutos depois, o aparelho tocou. Era a mãe. “O que estás aí a fazer? Já não amas a tua mãe?”
A sociedade está polarizada. A utopia acaba mal se salta do acampamento para casa de algum manifestante.
Rita assume-se como democrata antiocupação. Assinou a petição da Aliança para a Paz e Democracia contra a campanha de desobediência civil — 1,8 milhões tê-la-ão assinado. Irrita-a a diabolização da polícia. E irrita-a mais ainda que não tenha sido acatada a ordem judicial para desocupar as ruas. “Estão a desrespeitar o sistema judicial. Em que se tornará Hong Kong, se as pessoas desrespeitarem a lei?”
Não falam sobre os protestos dentro do apartamento que partilham, na zona de Western, no Norte da ilha, na zona onde cresceram. Mesmo assim, pegam-se. Trabalham juntas na empresa da família. Rita reclama por Betty perder tempo nas redes sociais. Diz-lhe que isso a desconcentra, a torna menos produtiva. Para a calar, Betty mudou as definições. Não consegue deixar de ler as notícias sobre os protestos. Agora, a irmã não vê as que ela partilha. “Eu sei que é mau mas foi para a proteger. Eu não a quero incomodar, eu não quero que ela fique maluca.”
Vá lá que está fora do alcance do pai. O homem, de 67 anos, acha que as pessoas deviam ser impedidas de ocupar a rua. O transtorno que causam parece-lhe excessivo. E não vê qualquer inconveniente em fazer um sufrágio com candidatos pré-aprovados pelo comité. “Quem garante que as pessoas que a população escolheria seriam melhores do que as designadas pelo comité?”
O empresário tem uma teoria sobre o que leva pessoas como a filha a barricar ruas e expõe-na, por telefone, com ela a fazer de intérprete: “Quando Hong Kong foi reintegrado na China, não houve um esforço para criar ou fortalecer o espírito patriótico. Hong Kong é parte da China, mas os hongkongers não amam a China o suficiente.” Quando o Governo tentou introduzir aulas obrigatórias de “educação patriótica”, os protestos foram tantos e tão altos que acabou por recuar. Não rebate o pai, Betty. Fala quando ele já não a pode ouvir, no conforto do acampamento, com o vento a abanar as tendas e a empurrar as nuvens para norte. Reconhece-lhe um orgulho na China — até pela evolução recente, pelo peso internacional — que ela não consegue partilhar. “Como podemos amar a China? Sabemos o que está a acontecer. As pessoas não têm liberdade para falar, não podem ver as notícias, não podem fazer o que querem na Internet...”
Identidade
Não, Hong Kong não é uma cidade qualquer. “Hong Kong é uma cidade de refugiados”, lembra Sai-Leung Lau, 50 anos, professor da Universidade Politécnica de Hong Kong. Refugiados da guerra civil, da revolução cultural, da pobreza. “A minha geração é de transição. Os nossos pais levavam-nos à China. Íamos ver os nossos familiares e levávamos arroz seco, nos bolsos, porque eles eram muito pobres, passavam fome. Para mim, somos parte da China, não discuto isso, reconheço que sou chinês, chinês de Hong Kong, mas a nova geração não se identifica com a China.”
Sucessivos inquéritos mostram que os jovens entre os 18 e os 29 anos têm mais propensão para se definirem como “pessoas de Hong Kong” do que como “chineses de Hong Kong”. E é sobretudo gente dessa idade que Sai-Leung Lau vê em Admiralty, onde está todas as noites com a mulher, decidido a proteger os alunos, atormentado pela memória do massacre de Praça de Tiananmen — esteve lá, em 1989, saiu dias antes de o exército avançar sobre os manifestantes.
O contacto disparou desde 2003. Na sequência de um surto de síndrome respiratória aguda grave (SARS), Hong Kong mergulhou numa crise e a China saiu em seu socorro, dando-lhe acesso preferencial ao seu mercado e permitindo que mais chineses do continente visitassem o território.
Quando terminou os estudos no Japão e tornou a casa, em 2010, Janet Lui teve a sensação de que a cidade tinha encolhido. Em todo o lado, via chineses do continente. Não era só ela. As reacções, epidérmicas, propagam-se das conversas mais íntimas até às ruas. Organizaram-se protestos, a defender, por exemplo, que só os “imigrantes decentes” deviam ser autorizados a entrar e que aos nascituros originários do continente devia ser negado o direito à identidade de Hong Kong.
Tudo se tornou claro. Durante o regime colonial britânico, na cidade desenvolveu-se um sentimento de superioridade. As pessoas de Hong Kong aprenderam a ver-se como educadas, eficientes, de bom gosto. E a pensar nos chineses do continente como ignorantes, rudes e barulhentos. E isso enforma o estereótipo dos migrantes pobres, que “entopem os serviços públicos”, e dos turistas ricos, que “compram tudo”.
Janet teve vontade de deixar a cidade, de recomeçar a vida noutro sítio. Estava formada, tinha 28 anos, não casara nem tivera filhos. Recuperou vontade de ficar ao conviver com estudantes bem mais novos do que ela. “Eu nasci em 1982. Quando encontro alunos sete ou oito anos mais novos do que eu, vejo que pensam de maneira diferente. Têm um modo novo de acreditar em tudo. Têm uma forma mais independente de perceber as coisas. Quis juntar-me a eles.” Se para os mais velhos a política era um tabu, para os mais novos é uma moda, avalia Sai-Leung Lau. Nas zonas ocupadas, há sempre gente a tirar selfies. Alguns usam um pequeno manopé, a chamada “vara do narcisismo”. Nunca parecem cansar-se de dizer: “Estou aqui.” Janet não os censura. Quer é que participem, se informem, debatam. E por isso dedica parte do seu tempo livre ao movimento dos guarda-chuvas — faz parte da equipa que cruza factos para que os líderes não se guiem por rumores.
Geração pós-80
Desde a entrega de Hong Kong que os protestos são uma constante. A chamada “geração pós-80”, os nascidos entre 1978 e 1989, não se tem coibido de fazer a defesa do que considera serem “os valores fundamentais de Hong Kong”, como a justiça social, o alívio da pobreza e a democracia.
No livro New trends of political participation in Hong Kong, coordenado por Joseph Y.S. Cheung, professor de Ciência Política da Cidade Universitária de Hong Kong, acerca das novas tendências de participação política, sobram referências a essa geração que se destaca por repudiar a suposta falta de credibilidade do Governo, o seu alegado conluio com os negócios, o alargamento do fosso entre ricos e pobres, a falta de políticas públicas destinadas a promover a ascensão social dos mais jovens.
A vida já foi bem mais linear em Hong Kong. A indústria desenvolveu-se muito nos anos 50 e 60. A geração de Cheung, que já completou 65 anos, suportou infâncias difíceis, mas cavalgou o boom económico, que fez da ilha uma das mais prósperas da Ásia. Sentiu-se recompensada. “Os jovens tiveram infâncias mais confortáveis, investiram muito nos estudos, mas sentem-se frustrados, porque trabalham muito, mas têm expectativas de mobilidade social limitadas”, diz.
Frustra-os os baixos salários, a falta de perspectivas de carreira, a fraca protecção social, o preço das casas. O preços das casas, que forçam tantos a viver com familiares ou a subdividir apartamentos em espaços minúsculos, é tema frequente nas três áreas ocupadas - Admiralty, Causeway Bay ou Mong Kok.
Julian Li tem 37 anos e mora com a mãe, viúva. “É comum um homem de 30 e tal anos viver em casa dos pais num pequeno apartamento. É muito difícil as pessoas normais arranjarem um sítio decente para viver a um preço razoável.” Culpa o Governo e os especuladores chineses.
Já não pode ouvir dizer que Hong Kong tem uma das mais baixas taxas de natalidade do mundo. “Claro! Nem conseguimos arranjar um quarto!” E uma das mais altas taxas de envelhecimento. “A solução que encontram é mandar mais chineses para Hong Kong. Isso só piora as coisas. Querem extinguir-nos!” Todas as manhãs, um sobressalto: um idoso aproxima-se da grade, que separa o passeio da faixa ocupada, e grita-lhe que ele não é patriota, que ele não ama a China. Julian levanta-se e olha-o em silêncio. Não pode responder no mesmo tom. Pratica budismo tibetano. Está ali a guardar o altar de Guan Yu, guerreiro da China Antiga — “uma ironia, já que, por tradição, cada esquadra tem uma figura daquelas para lembrar aos polícias que devem ser íntegros, proteger os fracos”.
Mong Kok não é a utopia. Mong Kok é a realidade. A polícia já retirou barricadas e os manifestantes construíram outras. Foram perdendo terreno, é certo. Estão confinados a parte de duas ruas, a Nathan e a Argyle. Nas margens, os comerciantes ou empregados vão à porta a tentar atrair e servir a respectiva clientela.
A polícia não arreda pé do cruzamento. Está apostada em garantir que os manifestantes não avançam, que o trânsito circula naquele que é um importante ponto de escoamento. Por vezes, de um dos prédios altíssimos alguém atira qualquer coisa assustadora ou fedorenta, como uma ratazana ou um monte de fezes. Acontece haver confronto físico. Várias vezes ao dia, ecoam gritos discordantes.
Muito barafusta a mãe de Julian: “Nem sabes cuidar da tua vida, não te devias meter nos assuntos dos outros!” Ele faz de conta que nada ouve e sai porta fora. Às vezes, pergunta-se se não deviam fazer mais do que ficar ali sentados, “como patos”, à espera que venha um grupo pró-Pequim ou a polícia.
A cidade pergunta-se, num murmúrio ou num rugido, até quando aquela forma de protesto se arrastará. E ninguém sabe responder. O movimento, lançado por académicos e estudantes, é uma cacofonia. Não há uma liderança, uma voz que todos ouçam, que possa aceitar uma proposta do Governo chinês ou simplesmente anunciar que está na hora de desmontar a tenda. E as reivindicações estão a escalar. Nas ruas, já não se ouve apenas pedir nomeação cívica, isto é, “verdadeiro” sufrágio universal. Já se pede a demissão de Leung Chun-ying e de outros membros do Governo.
Na penúltima semana, Benny Tai, o professor de Direito da Universidade de Hong Kong que co-fundou o Occupy Hong Kong, já revelava cansaço. O movimento, disse, deixou há muito de ser um breve acto de desobediência civil e tornou-se uma ocupação prolongada que se arrisca a perder o apoio dos indecisos. “Os ocupantes têm de considerar qual é a relação entre a praça dos guarda-chuvas e o movimento dos guarda-chuvas. Devemos reduzir o olhar à praça dos guarda-chuvas? Que relação existe entre o movimento dos guarda-chuvas e o movimento democrático? O movimento dos guarda-chuvas é uma parte muito importante do movimento democrático, mas não é a única.”
A mais recente pesquisa mostra que cada vez mais residentes em Hong Kong acham que está na hora de os manifestantes irem para casa. O problema, suspira Joseph Y.S. Cheung, é encontrar uma saída honrosa. “A ocupação não pode durar para sempre e o Governo não dá sinal de ceder.”
O professor de Ciência Política acha que o inimaginável já aconteceu: toda uma geração despertou para a política, unida pela defesa da identidade de Hong Kong e, no seu jeito ordeiro, conseguiu captar a atenção do mundo exterior. “Acho que esta vai ser uma luta de longo prazo. Acho que haverá mais campanhas de desobediência civil. Enquanto as pessoas não tiverem democracia, irão lutar. Enquanto pensarem que não perderam, podem manter os princípios, a dignidade.”