Acerca da autonomia de arquivos e museus

Arquivos e museus, todos eles e por mor razão os de estatuto nacional (classificação que começou no século XIX por ser competência exclusiva do Parlamento e ainda hoje obriga a parecer vinculativo de organismos consultivos superiores, que deveriam maioritariamente ser constituídos por representantes da chama “sociedade civil”), constituem legados de memória onde se corporizam contratos intergeracionais de longo curso. A sua duração mede-se em décadas e séculos, não em legislaturas, muito menos em governos. Os seus acervos não pertencem, nem jurídica, nem moralmente, à minoria dos que em cada momento vivemos, menos ainda aos que detêm fugazes responsabilidades sobre a coisa pública; são sobretudo propriedade do especto fecundo e imenso dos já partiram (e os produziram, na maior parte) e da aurora insondável, mas prenhe, dos que hão-de vir. Vistos a esta luz, são como que as casas dos gigantes sobre os ombros dos quais caminhamos. E, sendo assim, melhor se percebe como se afiguram pequenos os homúnculos que, vegetando no presente, usam as pequenas migalhas do seu venal poder para os apoucar, retirando-lhes as condições essenciais da sua existência.

Ora, é exactamente este crime de lesa memória que se tem passado nos últimos anos com os arquivos e museus nacionais portugueses, nisto juntando as últimas governações ditas socialistas com as actuais ditas sociais-democratas e centristas. E não falamos aqui da redução de orçamentos de muito pouco, convertidos em quase nada. Não falamos sequer do hiato geracional provocado por um ermamento que apenas aguarda o primeiro escândalo de perda irreversível de algum acervo para então tocar a rebate e colocar no banco dos réus técnicos e políticos. Falamos de algo muito mais profundo e solene, o respeito devido aos outros, que deveria seria também respeito por nós próprios.

Após décadas de construção de um edifício democrático na área dos arquivos e dos museus, foram os últimos anos consumidos no desmantelamento do que antes porfiadamente se lograra alcançar. No caso dos museus, em maior número e mais ampla disseminação territorial, e onde os sentimentos de pertença comunitária são mais fortes, a Assembleia da República chegou a aprovar por unanimidade (como convém a este tipo de matérias), uma Lei-Quadro, instrumento de direito reforçado, para-constitucional, que formalmente ainda está em vigor, mas que na prática já não existe nos seus pressupostos mais essenciais. Com efeito, os museus sob tutela da Cultura (que nem departamento próprio possui no actual Governo, posto que pressurosamente nos recordam a cada passo que o que existe é somente uma espécie da gabinete do secretário de Estado) deixaram de possuir quadros de pessoal e orçamentos próprios. Nalguns casos deixaram até de possuir direcção plena, a tempo inteiro.

Pior ainda: deixaram de possuir verdadeira personalidade administrativa, sendo a autonomia de projecto reduzida também a níveis tão degradantes, que nem o centralismo do Estado Novo ousou praticar. Salvo por delegação de competências, sempre aleatória ou casuística, não podem celebrar protocolos. Não podem ser parceiros plenos em projectos interdepartamentais e internacionais. Não podem arrecadar e gerir receitas. Não podem receber doações, as quais requerem o ámen central e, sendo pecuniárias, entram no respectivo “saco sem fundo”, de onde retornam, quando retornam, tarde e frequentemente amputadas. Voltámos, em toda a força, aos tempos do “à consideração superior” ou do “porém, vosselência decidirá” – e não causa espanto que nem toda a gente esteja disposta a tal menoridade, sobretudo quando o exercício de uma chefia não constitui motivo de vida.

Compreendem-se assim bem, no actual quadro, as reservas de muitos potenciais mecenas e coleccionadores em concretizarem o depósito ou doação dos seus bens a arquivos e museus nacionais. Haverá recursos humanos e verbas para acautelar a sua perenidade? Serão os meios oferecidos postos à disposição daqueles a que se pretendem destinar? Servirão para quê, em instituições convertidas em “quintal das traseiras” dos políticos de turno? Poderão atingir directamente os cidadãos, sem a obrigatória intermediação de “políticas de espírito”? Beneficiarão as comunidades de investigadores, com a isenção a que obrigam os códigos deontológicos dos profissionais de arquivos e museus? Cumprirão, enfim, a função cívica que deles se espera? Tudo isto pode realmente ser algo duvidoso no curto prazo, mercê da miopia e da falta de sentido de Estado em que estamos imersos.

Mas farão mal, segundo cremos, todos os que podendo fortalecer, desistam dos seus, nossos também, arquivos e museus, porque desistem afinal do país. Apesar de tudo, dificilmente se vê como possa um qualquer tartufo extinguir o Arquivo da Torre do Tombo ou o Museu de Arte Antiga. E, como nos provam as últimas semanas, nenhum dos “donos disto tudo” há-de durar tanto quanto as instituições que tão maltratam. Os acervos ficarão, assim, como a memória de quem os tenha produzido, coleccionado e posto a bom recato, Quanto aos outros, os que o tempo rapidamente esquecerá, apenas podemos lamentar que já cá não estejam quando chegar a hora de visitar os muitos juízos-finais que em arquivos e museus se guardam, os quais conservam do Além principalmente a força vital da interpelação indignante neste Aquém. Arqueólogo

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