Oito “negros e amargurados” dias durou o cerco

No final de Novembro de 1916, a ambição de conquistar território colonial alemão desfez-se em pó após a dramática fuga do forte de Nevala. Desfeita a Coluna de Masasi, os alemães lançam uma contra-ofensiva que devasta bases em Moçambique e chega a ameaçar Palma. Um couraçado britânico e as chuvas de Dezembro salvariam os destroços da maior expedição enviada para África.

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A saga dessa noite dava matéria suficiente para um sem número de ensaios, de novelas e de filmes. Por horas viveu-se a angústia do medo e a euforia da libertação, o desejo de abandonar o forte e a ansiedade sobre o que se esconderia pelo caminho, a necessidade de matar a fome e o risco de entrar num território desconhecido onde nada houvesse para comer. Do forte de Nevala avista-se, ao longe, o vale do rio Rovuma, onde haveria água e, na margem sul, bases do exército português onde se poderia sobreviver. Mas para os soldados habituados a três meses de caminhadas pela selva esse cenário estava longe de ser uma garantia e ainda menos um conforto. O manto verde e impenetrável que se estende por detrás do forte, a selva dura de África, é tão belo como enigmático, tão exuberantemente colorido como ameaçador.

Para o que restava da Coluna de Masasi, porém, não havia escolha possível. Há oito dias que estava isolada, com a primeira linha de trincheiras alemãs a apenas 200 metros do posto avançado. Pelo lado do ligeiro declive que fica em frente ao forte, a fuga teria de romper essas linhas, uma missão irrealizável por uma tropa desmoralizada e faminta. Restava a descida da escarpa íngreme voltada para o sul, a primeira escada de um caminho que levaria até à selva e, com sorte, ao Rovuma. Os sitiantes, que faziam parte dos destacamentos Heinrichs, Sprockhooff e Rothe seriam uns 500, cerca de metade da força portuguesa, e tinham deixado os rijos combates no Norte contra os britânicos e sul-africanos para acabar com as veleidades portuguesas. Mas podiam ser abastecidos. E por volta do dia 27 soube-se que tinham instalado a cinco quilómetros o temível canhão do Konigsberg, um couraçado afundado em Julho de 1915 em Dar-es-Salam, após cinco horas de bombardeamento inglês, e entretanto arrastado pelo mato por milhares de carregadores indígenas, capaz de efectuar disparos até 13 km de distância.

Quando a noite caiu sobre o forte, começaram os preparativos. Tudo o que não pudesse ser transportado seria destruído. Atónitos, os soldados famintos vêem entrar no rol vinho, latas de conserva, leite em pó ou tabaco francês, que tinham estado reservados aos oficiais, apesar da fome devastar a tropa. “Enquanto, sob seu mando, um arsenal cerrado de comestíveis especiais e colunas de Milk das melhores firmas da Holanda dormiam nas pilhas soberbas dos depósitos, os miseráveis que no frio lamacento das trincheiras velavam pelo nome e glória da pátria emborcavam copos de urina salgada e mastigavam, aflitos, folhas tisnadas de vegetais”, lamentaria, revoltado, António de Cértima, um dos alferes sitiados em Nevala.

Às dez da noite de 29, colocam-se mantas em paus nas balaustradas do forte para simular a presença de sentinelas. A grande fuga estava para começar. Em silêncio, cerca de mil homens reúnem o que podem, amparam-se e embrenham-se na noite escura. “Saltando à escarpa da vertente a coluna de retirada por aí se esgueirou, na treva da noite, esfarrapando-se nos galhos agudos do mato, rasgando as carnes, as mãos e as faces, caminhando agachada, sem norte, sem bússola, ao acaso, em demanda das areias claras do rio”, recordaria Carlos Selvagem na sua memória Tropa d’ África. Poucas horas mais tarde, uma companhia do Regimento 21, comandada por Francisco Curado, é a última a deixar o forte. Portugal tinha perdido o seu mais valioso troféu da campanha africana. E, com ele, ficaria esgotada a fina flor da sua mais importante expedição a Moçambique.

Objectivo: Masasi

Quem visse esses homens poucas semanas antes não teria dificuldades em imaginar o que os esperava. Um mês de marchas forçadas pela selva desde que, a 19 de Setembro, tinham atravessado o Rovuma e pisado o solo da colónia alemã da África Oriental, que na altura abrangia a região dos Grandes Lagos e o Tanganica, tinham arrasado as tropas. Uma semana depois de terem dominado o forte, que tacticamente fora abandonado pelos alemães, as baixas por doença assumiram uma proporção assustadora. Sete dias bastaram para que todos os oficiais do Estado-Maior tivessem de retirar para a base, em Palma, com problemas de saúde, deixando o comando temporariamente entregue a Torre do Vale. António de Cértima notava que “os contingentes tinham-se reduzido assombrosamente. A infantaria branca apresentava um efectivo de 22 espingardas; a negra de 300, aproximadamente”.

A 4 Novembro, o general Ferreira Gil, comandante da expedição, envia um telegrama para Lisboa avisando que “o estado de saúde das tropas é péssimo”, pelo que as “operações terão de interromper-se em fins de Novembro”. Em Lisboa, porém, as prioridades militares do momento colocavam a frente do Rovuma numa linha remota de prioridades. A preparação dos primeiros embarques do Corpo Expedicionário Português para as trincheiras da Flandres, que aconteceriam daí a dois meses (a 30 de Janeiro de 1917), era nesse momento o foco das atenções do Governo e das altas patentes de Lisboa. Não haveria reforços tão cedo. A 15 de Novembro, é o próprio comandante Ferreira Gil a avisar o Ministério da Guerra que “junta de saúde dá como incapaz de continuar ao serviço das colónias, devendo recolher à metrópole”.

A recusa, ou incapacidade, de Lisboa em enviar novos contingentes nesse momento em que o exército português tinha conseguido estabelecer uma ponte no coração do território inimigo seria mais tarde vista como um atestado de incompetência do Governo. “Foi a falta deste reforço de homens válidos que o general Gil insistentemente pedira para entrar em Palma nos princípios de Novembro que fez com que as forças cercadas em Nevala não pudessem ser socorridas com força suficiente e se desse o escorraçar de todos os postos que tínhamos em território alemão”, protestaria meio ano mais tarde o deputado oposicionista Vasconcelos e Sá, médico, capitão-de-mar-e-guerra e republicano moderado. “Então para França calcula-se e convenciona-se com a Inglaterra o envio mensal de 4000 homens para manter os efectivos no nosso sector e para África não se manda sequer um soldado para substituir os doentes e ordenam-se avanços loucos de profundidade de centenas de quilómetros?”, acrescentaria em tom inquisitório o deputado nas suas invectivas contra o Governo.

Em Palma, Gil ia gerindo a situação como podia. A 2 de Novembro sai para Nevala um novo contingente comandado pelo capitão José Maria Pereira. Vão de camião, por estradas entretanto abertas. Seis dias depois, porém, ainda estavam a caminho. Chegaram a Mahuta e souberam que os alemães rondavam o forte. O substituto do capitão Liberato Pinto tinha entretanto sido nomeado, no que foi uma das poucas boas notícias para os soldados e oficiais nesse interminável compasso de espera de um mês em Nevala. Leopoldo da Silva, major, chegou ao forte e impressionou os soldados “com o seu aspecto viril e inquieto, com o seu séquito de artilheiros todos rútilos e altivos nas fardas vistosas”, na descrição de António de Cértima. Era “a mais pura alma de soldado que pisara aquelas areias hostis”, na avaliação de Carlos Selvagem.

Com o novo comandante não seguiram apenas reforços, mas um pesado caderno de encargos. Pela moderna estação de TSF, instalada a uns 400 metros do forte, chegavam ordens reiteradas de Palma para que a Coluna de Masasi regressasse à ofensiva e ocupasse a cidade homónima, a uns 70km no noroeste de Nevala. Ferreira Gil era impotente para conter a megalomania de Lisboa. Limitava-se a pedir o que lhe exigiam, cada vez com menos resistência – a sua saúde deteriorava-se e as más-línguas diziam que passava os dias entretido em partidas de bridge com os seus oficiais, em Palma. No ponto terminal da cadeia de comando, Leopoldo da Silva era quem tinha de suportar as consequências do delírio da guerra pensada nos gabinetes.

O capitão Francisco Curado, que na altura era já o mais respeitado oficial de todo o exército português em Moçambique, tenta chamá-lo à razão. Dá-lhe conta das dificuldades em criar uma força capaz de avançar no terreno difícil da actual Tanzânia. Lembrou-o que o Inverno estava à porta e que, após as chuvas, Nevala ficaria isolada, entregue à sua sorte, impossibilitada de receber o que quer que fosse de Palma. As memórias dos que participaram nesse dilema garantem que o major não dormiu nessa noite. Mas as ordens são para cumprir e a 8 de Novembro, por volta das quatro da manhã, pouco antes do nascer do sol na África tropical, a coluna parte para Masasi. Seriam uns 23 oficiais, 347 praças europeias e 399 indígenas, com 330 carregadores, 486 espingardas, quatro metralhadoras e duas peças de artilharia. “Um punhado de maltrapilhos agarrados na véspera ao acaso, sem discussão, sem recusas e, cegos pela vontade férrea do chefe, electrizados pela sua grande alma, acompanhando-o como escravos”, na descrição sempre cínica de António de Cértima.

A meio da manhã estão em Lulindi, a Quivambo que figura entre os lugares do heroísmo português na gigantesca estátua dedicada aos soldados que morreram na Primeira Guerra Mundial em Moçambique que ainda hoje se encontra em Maputo, mesmo em frente à velha estação de caminhos-de-ferro. Se seguiram a mesma estrada que hoje liga Nevala a Masasi tiveram de subir e descer montes sinuosos, entre o mato ou por trilhos poeirentos, nos primeiros quilómetros do percurso. À frente iam o capitão Melo e o alferes Craveiro Lopes, futuro presidente da República. Lopes é o primeiro a detectar o inimigo. O pavor de uma emboscada como a de Mahuta, um mês antes, instala-se com a troca dos primeiros tiros. À ordem dos comandantes, os soldados organizam-se em posições defensivas. Como quase nunca acontecera até então, parecem um exército moderno e competente.

Logo depois, o impensável acontece. Leopoldo da Silva tenta uma manobra de envolvimento. As munições começam a faltar. O major chega-se à linha da frente, acompanhado por soldados que transportavam cunhetes de pólvora. “Duas balas certeiras atingem-no logo em cheio, uma sobre o ventre, outra sobre o ombro”, recordaria Carlos Selvagem - além de Leopoldo da Silva, um outro soldado português foi vítima das balas alemãs. Sem comandante, quem deveria comandar era o oficial mais antigo, o capitão Baptista, que recusa, “alegando sei lá que pessoalíssimas razões”, como ironicamente assinalaria António de Cértima. Ainda assim, os soldados resistem e ripostam com energia. Seis horas depois, o combate prosseguia e os refrigeradores das metralhadoras tinham de ser enchidos com urina. É então que os alemães do comando Sprockhooff se retiram por falta de munições

Ao longe avistava-se Masasi. Mas faltava tudo para prosseguir. À uma da manhã, a coluna regressa a Nevala. “Sorrateiramente, solenemente, o bivaque levantava para Nevala, em ordem, sem deixar uma correia ou fivela de bornal. Era a primeira retirada”, diria António de Cértima. Quando chegaram, Carlos Selvagem viu uma fila de homens “exaustos e trôpegos”, mas que guardavam “por consolação única a memória de uma tarde gloriosa em que gente portuguesa soubera ainda ter a alma dos antigos soldados, soubera ainda bater-se e morrer”.

O assalto ao forte

O consolo, porém, era pouco. Sabia-se que os alemães estavam cada vez mais perto do forte. No mesmo dia da emboscada de Quivambo, tinham atacado o posto de Mahuta, onde uma forte resistência lhes causou 17 baixas, entre as quais dois soldados europeus. A proximidade era prova que o limite da missão da Coluna de Masasi tinha ficado circunscrito a Nevala. Por enquanto, ao menos. Von Lettow-Vorbeck, o genial comandante alemão, investe tempo a recompor as suas tropas, perdidas em destacamentos algures no interior planáltico do Tanganica. As suas sucessivas missões de reconhecimento traçam um retrato do poder de fogo dos portugueses. De acordo com as memórias de guerra dos alemães, haveria 500 homens em Mahuta, entre 300 e 400 no interior do forte, 800 junto à ribeira de Nevala, onde havia também artilharia, calculavam os seus espiões.  

No dia 19, o novo comandante da coluna, o major Aristides Cunha, está em Quivambo e apercebe-se que, do lado alemão, algo de importante está para acontecer. Regressa célere a Nevala e prepara-se para o pior. Na madrugada do dia 22, os alemães estão nas imediações do forte. “O círculo fechou-se num anel de fogo, crepitante, raivoso, feroz. Enfim, estávamos cercados”, constataria António de Cértima. Para começar, os alemães deram o mesmo passo que os portugueses um mês antes: atacaram a Ribeira de Nevala, o ponto estratégico que dava acesso a água potável. Após 12 horas de combate, que chegou a envolver luta corpo-a-corpo e assaltos com baioneta, os portugueses tiveram de retirar por falta de munições. O alferes Pires de Matos tombou no combate. O tenente que comandava a força foi derrubado com uma coronhada e ficou preso.

Onze soldados escapam da chacina, improvisaram uma bandeira branca e correram até à escarpa. Foram recebidos de braços abertos, como “pobres foragidos”, diria António de Cértima. Agora, só um milagre vindo de Palma capaz de romper o cerco poderia salvar a coluna que se amontoava em volta do forte e nas trincheiras do pequeno planalto que lhe é sobranceiro, onde hoje se situa o bairro dos polícias de Nevala. Desesperado, Ferreira Gil, que adiara o seu regresso por baixa a Lisboa, avisa o Governo a 25 do que se estava a passar. Diz que “os alemães têm concentrado forças contra Nevala tendo cortado comunicações”. Pede que digam a data do embarque da expedição de 1917, “com o fim de reanimar tropas”. De Lisboa, uma vez mais, o silêncio.

Com o passar dos dias do cerco, a situação agrava-se. A água começa a faltar, a estação da TSF, colocada a 400 metros do forte, estava a ser alvo de ataques do inimigo. Por desgraça, a chuva não caía. Em Palma, Ferreira Gil pede voluntários para uma “Coluna de Socorro a Nevala”. Azambuja Martins e Viriato de Lacerda, outro oficial do escasso rol de heróis da Primeira Guerra em Moçambique, que viria a morrer na ofensiva alemã de 1917 em Mecula, oferecem-se. Há mais dois sargentos e um cabo que dão um passo em frente. No essencial, porém, Palma não passava de um imenso hospital. Os escassos homens preparados para combater que sobravam da terceira expedição estavam encurralados em Nevala.

O comandante recorre então a medidas extremas. Considera válidos todos os homens em convalescença. Consegue assim formar uma força de 11 oficiais e 252 praças que correm para Nevala. Era uma “coluna de inválidos”, diria Américo Pires de Lima, oficial médico que assistiu a toda a angústia desse final de Novembro em Palma. A missão de socorro ainda chegou a Mahuta, onde trava um combate feroz com os alemães. Mas não consegue passar. Ao longe, os sitiados ouviam as descargas. Sem esperança. “Pouca confiança púnhamos já no resultado da luta”, recordaria António de Cértima.

Dentro do perímetro cercado, a situação chegava ao limite. A proximidade das linhas da frente dos alemães impedia qualquer movimento. “A infantaria dormia, comia, vivia todas as suas horas alapada nas trincheiras, sem poder quase deitar a cabeça, um braço, de fora”, escreveria Carlos Selvagem. O pior, porém, era a sede. “Logo aos primeiros dias a falta de água começou a toldar das suas tintas de tragédia a vida da pobre gente sitiada. E esgotados os cantis, os sacos de lona, todos os recursos, foi à água suspeita de duas cisternas da fortaleza (em que ninguém havia tocado até então pela certeza de estarem envenenadas) que se recorreu”, continua o alferes. Foi necessário colocar uma sentinela nas cisternas para travar o desespero.

Exaustos, os soldados deixavam-se cair no fundo das trincheiras, e “por mais pontapés, por mais ameaças que se lhes fizesse de pistola em punho, os míseros a nada se moviam e acabavam por encolher os ombros, insensíveis a tudo, numa voz já moribunda: ‘Pode o meu alferes matar-me, porque eu já não posso mexer-me’”, lembraria Carlos Selvagem. “Às vezes, quando era preciso ir de uma trincheira a outra, tinha-se a impressão de caminhar entre náufragos: dezenas de mãos fincavam-se como garras às nossas pernas, segurando-nos, detendo-nos, enquanto um elegíaco clamor de catacumba se entornava em lágrimas, a pedir água, suplicando água… pelo amor de Deus, pela Santíssima paixão do Senhor! E entontecidos, com a piedade rota numa asfixia de angústia, nós fugíamos, fugíamos, apavorados”, escreveria António de Cértima.

Ao sétimo dia, o comando percebera que o tempo de espera e a capacidade de resistência dos soldados tinha acabado. Uma granada tinha destruído a estação de TSF, tornando o cerco ainda mais doloroso. “Os negros morriam, atulhando as trincheiras da esplanada, aonde por fim se tropeçava indiferentemente nos seus cadáveres amontoados”, lembraria Carlos Selvagem. A falta de água, agravada pelo calor de Novembro, propagava ataques de loucura. De noite, os que tinham alguma réstia de energia saltavam das trincheiras para molhar os lábios com as gotas de orvalho na folhagem das árvores. No dia 27, fica decidido que os sobreviventes partiriam no dia seguinte.

Para todos os efeitos, a ousadia de romper o cerco descendo a escarpa sinuosa que fica nas traseiras do forte foi um sucesso. A maioria salvou-se, da morte ou da prisão, mas o custo foi elevado. A viagem pela selva de uma multidão de homens cambaleando fez-se com actos de solidariedade, mas muitas vezes impôs-se o mais elementar sentido de sobrevivência. Os homens tentam agarrar no dólman do que segue em frente, para não se perderem no matagal. Na pressa da fuga, porém, nem sempre havia lugar para a compaixão com os feridos. “Transportados em machila por carregadores negros, lá acompanharam a coluna. Esta, porém, por motivo da escuridão e pelas dificuldades do terreno, desorganizou-se a breve trecho. Os carregadores, livres de vigilância dos brancos, deram largas ao instinto da própria conservação, abandonando alguns desgraçados a uma morte lenta e horrível no meio da floresta virgem”, escreveria Américo Pires de Lima nas suas memórias.

Alguns conseguiriam chegar às margens do Rovuma nessa madrugada. Estavam salvos. “Foram minutos, foram sofreguidões que não se esquecem mais”, recordaria Carlos Selvagem quando mergulhou, “louco de alegria”, nas águas quentes do rio. Francisco Curado chega ao Rovuma às duas da tarde. Mas António de Cértima perde-se, dá uma volta na escuridão e de madrugada apercebe-se que tinha regressado a Nevala. No dia 30 à noite podia finalmente matar a sede nas águas duvidosas do rio, ainda hoje um foco permanente de disenteria que causa vítimas entre a população ribeirinha.

O pânico em Palma

No dia seguinte à fuga, pela madrugada, os alemães começaram a bombardear o forte com o canhão do Konigsberg e surpreenderam-se com a ausência de reacções. Quando se apercebem da fuga, lançam a perseguição aos foragidos. Primeiro procuram-nos nas imediações, mas constatam que levavam várias horas de vantagem. Em Mahuta encontram os destroços fumegantes do posto abandonado. Os portugueses tinham regressado ao seu território. Seria lá que os destacamentos de von Lettow-Vorbeck os iriam procurar e combater. A ousadia da invasão teria um preço para os portugueses. Altíssimo.

Em Nangade, o posto onde a maioria dos fugitivos chegou dois dias depois da fuga, vivia-se o caos. “Havia uma única tenda Tortoise com uma lotação máxima de 15 camas, que teve de alojar levas de 50 a 100 homens”, lembraria ao Governo, em jeito de vexame, o deputado Vasconcelos e Sá. É para lá que os alemães se dirigem. Durante 48 horas, os carregadores negros arrastam pela selva o canhão do Konigsberg e no primeiro dia de Dezembro estão em condições para cumprir a vingança. Da outra margem, disparam com tal precisão que logo Azambuja Martins suspeitou que “o adversário estava perto” e que “o combate iria ser travado em desfavoráveis circunstâncias para nós, pelo esgotamento das nossas forças e pela acção de surpresa que sofríamos”.

“Ao segundo tiro, uma granada de grosso calibre”, recordaria Carlos Selvagem, “arrasa desde logo todo e qualquer propósito de reorganização”. O pânico instala-se e a ordem possível no aquartelamento só pode ser restaurada com a ameaça de armas. Muitos fogem para a base de Alto da Serra. “Ficaram apenas, com meia dúzia de soldados mais fiéis ou mais dignos, os oficiais, alguns médicos, um ou outro sargento, os enfermeiros da ambulância”, recordaria Carlos Selvagem. Nangade desfazia-se. “Pela noite dentro, moleques e carregadores macuas trepavam as fragas do posto a cair de bêbados, numa grita de selva, vomitando à farta a vasa infecta de vinho que horas antes não quiseram distribuir à tropa branca. E nos crepes da treva estrelar, lá em baixo, uma coluna de fogo subia, orgíaca, para o céu, como taça de festim que se partisse e incendiasse no espaço, rubra e azul… Era Nangade a arder”, descreveria António de Cértima.

Num ápice, o boato de que os alemães já tinham atravessado o rio propaga-se. De novo em fuga, desta vez descontrolada, o que restava da coluna de Nevala dirige-se agora para Matchemba, a 35 kms, por ordem de Azambuja Martins, que descreve esse êxodo: “Uns iam rotos, outros descalços, outros ainda com algum retalho de saco a servir de tanga, à maneira indígena, e todos mais ou menos com uma infinidade de objectos, colhidos nos cestos das ambulâncias, pendendo dos equipamentos”. Chegam a 2 de Dezembro e descobrem um campo desolado, sem defesas preparadas, sem lugar para acolher os soldados exaustos. Ficam aí cinco dias, até que o alarme de que os alemães estavam a sete quilómetros levam a coluna a fugir uma vez mais, uns para Pundanhar, a única base que restava antes de Palma, outros para Mocímboa da Praia, uns 100 quilómetros mais a sul.

Na base que albergava o comando olham-se com estupefacção os soldados que iam chegando em grupos dispersos. Pires de Lima recebeu 400 desses homens deprimidos pela derrota e gastos pela odisseia da fuga. “É indescritível o estado de miséria em que chegaram; fardas esfarrapadas, o capacete amolgado, com os pés a saírem pelos buracos das botas, faces chupadas e macilentas, olhos brilhantes de febre, infundiam piedade aos mais empedernidos”. Um grande número deles, inquiridos sobre a sua doença, respondia apenas: “É só fome, senhor doutor”. Três meses depois de saírem de Palma, os soldados estavam de regresso em jeito de “turba em debandada”, carregada de “andrajos e de opróbrio”, diria Carlos Selvagem.

A chegada aflitiva do que restava do exército prenunciava o pior. Um ataque alemão a Palma seria tão fácil como fatal. “Viveram-se horas amargas em Palma nos dias que se seguiram à retirada de Nevala. Praticamente não havia soldados válidos, de modo que pareceu irrisório cavar alguns quilómetros de trincheiras, que pobres doentes, a tiritar de febre, ocupavam durante a noite”, escreveu Pires de Lima. Como notaria Carlos Selvagem, a base “encontrava-se justamente à mercê do inimigo, entregue à mão de Deus, com os seus barracões, os seus depósitos, todo o seu precioso recheio”. Em desespero, o comando lança mão de todos os meios para a defender. O vapor Moçâmedes, que largara Palma carregado de feridos e doentes rumo a Lourenço Marques, é mandado regressar. Todos os que pudessem andar foram mobilizados para o que se esperava ser o combate definitivo. Conseguem-se 500 soldados, entre os doentes menos graves. Os que se tinham em pé.

Mas, onde andariam os alemães? Em Nangade, em Pundanhar, em Matchemba? Com a rede de postos laboriosamente montada nos dois últimos anos destruída, ninguém sabia ao certo, ninguém podia saber. Inventa-se então um ardil para se tirarem as dúvidas. Envia-se uma delegação, comandada pelo capitão de artilharia Ferreira da Silva, com bandeira branca e intérprete para “dessa forma astuta e fácil, sem se trocar um tiro, reconhecer a situação, efectivo e intenções do boche”, contaria Carlos Selvagem. O pretexto seria enviar roupas e medicamentos para os feridos e prisioneiros e obter o cofre com o testamento do infeliz major Leopoldo da Silva.

A operação parece correr bem. Mas no regresso de Sicumbiriro, já de noite, quando o Buick da delegação cruzava o posto de Matchemba, é alvo de um ataque alemão, dirigido pelos mesmos oficiais que a recebera. Ferreira da Silva é abatido. Câmara Leme, o intérprete, salva-se depois de gritar as suas credenciais aos oficiais alemães, que suspendem o fogo e o libertam – os relatos não nos permitem saber se o ataque foi um acidente ou uma acção deliberada.

A presença alemã em Matchemba, a menos de 100 km de Palma, agrava o pânico no alto comando. “Na lividez da manhã, Palma acorda mais lívida na ansiedade do que acontecerá esse dia, de como findará esse dia”, diria Carlos Selvagem. Ferreira Gil envia um telegrama para Lisboa no qual avisa “que pediu ao general Smuts [comandante das tropas britânicas] algumas companhias das tropas inglesas para reforço e defesa de Palma”. Os alemães, avisava ele, “dispunham de uma força de 1000 indígenas, ocupam os nossos postos de Nangade e Matchemba, ameaçam atacar o de Pundanhar, manifestando ter por objectivo Palma.” Para salvar o que fosse possível, anuncia ao Governo que tentaria embarcar “a bordo do Chinde e do Moçâmedes a máxima quantidade de material de guerra, víveres e munições” Repetindo a sua permanente receita, acrescentava ainda que “o moral e saúde das nossas tropas são péssimos”.

Ernesto Vilhena, ministro das Colónias, argumentaria na sessão secreta do Parlamento da República, a 17 de Julho de 1917, que Ferreira Gil manifestou “incompetência e temor” porque, segundo informações do War Office, a força dos alemães seria constituída por “apenas 300 espingardas”. Talvez esta previsão fosse a mais correcta. Mas, mesmo sabendo que as forças portuguesas seriam facilmente batidas apesar do seu número, os alemães não atacaram. Por dificuldade de recursos, mas também pela exaustão de um exército que andava há dois anos a vaguear pelo coração do continente, em permanente combate com belgas, ingleses, sul-africanos e portugueses. Quando o couraçado britânico Princess e mais dois navios de guerra fundeiam na baía de Tungue, era improvável que um exército que que sempre preferiu a guerrilha ao embate frontal ousasse atacar.

A 17 de Janeiro de 1917, uma nota da Presidência do Ministério, publicada no Diário do Governo, notava que “num desses fluxos e refluxos que tem sido a característica da guerra actual”, os portugueses foram forçados a “ceder momentaneamente algum terreno” na colónia alemã. Mas com o mesmo tom de irrealismo e propaganda de sempre, o ministério da União Sagrada garantia que, “em breve, as nossas tropas recuperarão todo o terreno que tiveram de abandonar por um incidente de campanha, e farão novos avanços, batendo completamente os alemães no seu próprio território, e hasteando ali, definitivamente vitoriosa, a bandeira de Portugal”.  

Contrariando esta visão idílica, em Palma dão-se graças pela presença dos ingleses e fazem-se preces pela bondade da chuva. O inverno torrencial dos trópicos em breve tornaria o Rovuma inultrapassável e as estradas em rios de lama intransitável. A expedição estava salva. Ou o que restava dela. “Frangalhos de sete a oito mil homens, mil contos de material de guerra abandonado ao inimigo, a certeza melancólica de decisivos reveses”, na descrição de Carlos Selvagem, era tudo o que poderia levar na memória quando chegasse a hora de partir.

Próximo artigo: Os soldados privados do eterno descanso
 

 
 

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A Quivambo figura entre os lugares do heroísmo português na gigantesca estátua dedicada aos soldados que morreram na Primeira Guerra Mundial em Moçambique que ainda hoje se encontra em Maputo, mesmo em frente à velha estação de caminhos-de-ferro
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Travessia do Rovuma
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A floresta na escarpa em frente ao forte de Nevala
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Rio Rovuma
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Interior do forte de Nevala
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Carregadores de mercadoria em Kilambo, na Tanzânia
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Carlos Selvagem, em 1916, no norte de Moçambique DR
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