Quando Django (Jamie Foxx) liberta a sua Broomhilda von Shaft (Kerry Washington), cumprindo o destino de ser um Siegfried negro que lhe profetiza um dentista alemão (mas retirado: Christoph Waltz é um caçador de prémios em carroça desengonçada pelo Oeste), os dois, Djano e Broomhilda, transformam-se em Clark Gable e Vivien Leigh em E Tudo o Vento Levou: fantasmas, silhuetas desenhada na parede, o beijo, os ícones Rhett Butler e Scarlet O''Hara profanados. E reinventados. Já o colete de Django nas cenas finais de apoteose podia ter sido usurpado ao Gable de Band of Angels, filme de Raoul Walsh de 1957.
E é assim que périplo de vingança de Django Libertado vai profanando as imagens com que uma nação, Hollywood, a América, foi nascendo, e assim conquista o seu lugar na versão oficial - um património de filmes quase sempre conservadores, alguns intrinsecamente racistas, sobre um Sul perdedor e nostálgico povoado por southern belles, masters paternalistas, escravos obedientes e leais (o filme de Walsh, já agora, é uma obra-prima). Antes, Tarantino enfrentara já, abraçando a euforia mas logo necessitando de a espantar com a paródia para reduzir o horror, O Nascimento de uma Nação (1915), de Griffith: Ku Klux Klan, cavaleiros épicos desgovernados com o desconforto dos seus capuzes.
Agora que se vai confirmando que o fascínio por Tarantino pode sinalizar um mal entendido, porque superficialmente ancorado no jogo de citações, no hype, na iconoclastia (culpa toda nossa, de espectadores), e visto que Django Libertado tanto está a ser acusado de ser mais do mesmo (Tarantino) e de não ser suficientemente o mesmo (Tarantino), pode-se deixar escapar a gravidade do filme. Que é um divertimento, que é um gesto de guerrilha, e que é mais do que a n-word - Quentin usou e abusou dela em todos os filmes, ninguém contou antes?
Django Libertado não é mero jogo de citações. É diálogo contraditório, fascinado e indignado com a História e os seus fantasmas - se o género “filme de denúncia” não fosse, quase sempre, esteticamente irrelevante e, em território Tarantino, algo de alienígena, este seria o “filme de denúncia” que ele (não) quererá fazer. Tarantino vai dizendo: esta é a minha História. No caso dele isso quer dizer também “este é o meu Cinema”. Talvez nunca antes a charada, o tom que escolheu desde Cães Danados (1992), mascarasse tanto uma catarse.
Jogo: eis o que, momentaneamente, se suspende aqui, apesar das aparências. Tem-se ido atrás, ao Sacanas sem Lei (2009), ao seu desejo fantasioso de reescrever a História (os judeus a matarem todos os alemães e a matarem Hitler), para encontrar o filme fundador do qual Django Libertado seria apenas uma variação: aqui a fantasia de um escravo negro, matar os esclavagistas brancos - mas não só: o duelo Jamie Foxx/Samuel L. Jackson é um acerto de contas com a traição, com a submissão.
Variação pode ser, mas a comparação serve para Django Libertado se diferenciar. Podemos começar por Christoph Waltz, num papel escrito para a sua “persona”. Ultrapassada a sensação de redundância nesta presença, já que cumpre as expectativas que o nazi poliglota Hans Landa de Inglorious Basterds deixara, a aproximação é um estratagema para aproximar a escravatura do Holocausto. Uma contaminação que pode ser um statement certeiro para brutalizar o conservadorismo de um espectador norte-americano, mas a aventura pelo terreno de brumas da ambivalência moral cria insegurança em qualquer um. Já que tem à sua frente um europeu a conduzir um escravo negro para a sua libertação, a construir-lhe mitologia inclusivamente, mas que é alguém tão amoral (pelo menos isso) como o nazi do filme anterior - é a mesma persona para além de ser a mesma pessoa.
Outras aproximações servem para acrescentar, não para reduzir: parecendo algumas sequências de Django Libertado versões de sequências do filme anterior (a explosão da infernal plantação do Mississipi tem a raiva fílmica da explosão da sala de cinema em Sacanas sem Lei), o que se passava ali era um jogo - a sequência decisiva desse filme era um jogo -, coisa benigna, confortável. Um património de vilões e de vítimas estabilizado, em suma.
Aqui não, a carroça-fantasma conduzida pelo dentista Shultz vai aos solavancos do princípio ao fim, numa dança expressionista e paroxística. Vai assim do princípio ao fim.
O que se acrescenta, ou o que Tarantino acrescenta ao seu cinema, é uma relação em profundidade com as personagens. Que costumam ser como os seus filmes e quase sempre como os genéricos, de fontes tipográficas diferentes, dos seus filmes: energia a querer expandir-se, porque um filme de Tarantino quer ser vários e constrói-se em blocos fazendo das personagens suas emanações. Elas nascem, morrem e renascem de cada vez que se passa de um bloco a outro; não existem nos intervalos da escrita.
Django Libertado, que é “um” filme do princípio ao fim, propõe outra coisa. Alguns dirão que propõe uma relação mais “convencional” ou mais “narrativa”. É, antes, a aproximação ao fôlego de um fresco. Impondo as personagens mesmo entre os intervalos.
Na progressão linear que se desenha, puxada por uma carroça de fantasmas, Django Libertado aproxima-se das chamas do inferno. Chama-se Candyland. O diabo é Calvin Candie/Leonardo Di Caprio - há muito que não o víamos assim, nem no cinema de Scorsese, e há muito que não se deixava ver assim. Fazendo o inventário dos morceaux de bravoure do cinema de Tarantino, é preciso lá colocar agora a sequência do jantar na plantação do Mississipi e, antes dela, a apresentação da personagem de Calvin com os seus “mandingos”. O que se apalpa aí, a malignidade, os segredos que as personagens encobrem, a promiscuidade, tem uma densidade extraordinariamente viscosa. É um crepúsculo que apenas julgávamos interior à mise-en-scène decadentista do senhor Luchino Visconti. Ora, isso não é para todos.