Peter Mullan, actor escocês (mas aqui ele chega como o realizador de "As Irmãs de Maria Madalena"), não se vai esquecer de uma monja irlandesa que conheceu em Londres - chegavam ao fim os anos 70 -, quando ele, católico e animado do espírito de "jovem socialista", estava disposto a colocar os seus serviços em favor da comunidade. Foi nessa altura que deu de caras com um sorriso de querubim (que rezava piedosamente numa sala com o "poster" de Mussolini pendurado na parede). "Foi a pessoa mais engraçada que conheci", recordava Mullan. E também "a mais cruel". Porquê? "Sintetizava o lado mais negro da Igreja Católica: a ausência de dúvida. Como se tudo o que fizesse fosse sempre bem feito. A Igreja Católica esqueceu-se da compaixão", dizia o realizador aos jornalistas presentes no Festival de Veneza, no ano passado, onde "As Irmãs de Maria Madalena" arrebatou o Leão de Ouro.
O filme fez mais do que isso: a história, irlandesa e trágica, de quatro jovens encerradas, nos anos 60, num convento das Madalenas, instituição gerida pelas irmãs da caridade que "hospedava" "pecadoras" - "pecados" como ser mãe solteira, demasiado bonita (ou demasiado feia), estar à beira da descoberta sexual ou ter sido vítima de violação -, é um olhar feroz sobre os abusos cometidos pelas instituições em nome de uma ideologia ou de um dogma e provocou reacções da imprensa católica e de órgãos próximos do Vaticano. Mullan também não deu tréguas: as freiras do filme, disse, "não andam longe dos taliban, pela sua rigidez ética". Disse mais: "O integrismo perpetua o medo das mulheres, sobretudo das jovens ou adolescentes, e não sabe defender-se a não ser oprimindo-as e exercendo um controlo feroz sobre a sua sexualidade."
Mullan teve ajuda. Perante reacções como a da revista católica "Avvenire", que considerou o filme "ridículo e infame" - "O realizador diz que a Igreja teme os jovens e quer reprimi-los. Evidentemente que não lê os jornais e não sabe nada do Papa, que chamou aos jovens a esperança do mundo" -, a imprensa laica tratou de "responder", trazendo para as páginas testemunhas desse sistema de terror e de humilhação que foram os conventos das Madalenas na Irlanda (instituição que só foi extinta em 1996). Uma dessas sobreviventes esteve mesmo em Veneza, integrando a equipa do filme: uma ex-freira, que hoje abandonou os votos depois de testemunhar a brutalidade numa dessas instituições (tem um pequeno papel no filme).
Estaríamos, portanto, no centro do género "filme de denúncia" - que é sempre bem intencionado, mas raramente levanta grandes voos cinematográficos -, se o caso de Mullan, 44 anos, não fosse singular. Lembramo-nos do sorriso de querubim. Foi ele que inspirou o realizador para construir uma personagem indomável, a irmã Bridget (Geraldine McEwan), tão ternurenta no seu sadismo, tão cruel nas suas emoções. Há uma sequência em que essa personagem, que mostra ter dimensão para chefiar um campo de concentração, é vista a chorar, comovida, perante a imagem de Ingrid Bergman em "The Bells of St. Mary", de Leo McCarey (1945). A irmã Bridget vê-se com a aura ideal da Bergman, e a sua comoção só pode comover o espectador mas é decididamente monstruosa. "As Irmãs de Maria Madalena" (é essa a sua singularidade) vai assim buscar energia a rostos e gestos que não se deixam aprisionar por uma etiqueta, quer seja a de carrasco, quer seja a de vítima. E que fazem vacilar permanentemente o espectador perante uma gama de possibilidades. O cinema de Peter Mullan (esta é a sua segunda longa-metragem, depois de "Orphans", de 1997) mostra isso mesmo: a ferocidade humana, uma espécie de tremor do que é vital e cruel. "Orphans", já agora acrescente-se, foi uma desopilante estreia na realização de Mullan, numa história de irmãos, adultos, separados pelas suas vidas, obrigados a reencontrarem-se para enfrentarem (mal) a sua orfandade. Para um homem que, como intérprete, está ligado ao chamado cinema social britânico (actor de Ken Loach, por exemplo, para quem fez "My Name is Joe", pelo qual recebeu o prémio de interpretação em Cannes, em 1998), "Orphans" exibia de forma temerária a sua indefinição de género (às tantas, o telhado de uma casa era arrancado pelo turbilhão emocional das personagens). Da mesma forma, a termos que classificar "As Irmãs de Maria Madalena", teria que ser como "filme de terror" mais do que o redutor "filme de denúncia". A Igreja Católica - irlandesa - está na sua mira, mas o olhar é mais amplo, são os mecanismos de abuso e de humilhação que se propagam de "carrascos" para "vítimas", elas próprias veículo de violência (correndo o risco de incorrer em blasfémia cinéfila, "As Irmãs..." filma um espaço, físico e mental, onde já não há limites, como o "Saló", de Pasolini - é claro, com diferenças assinaláveis, quer figurativas, quer aquelas que advêm do facto de Mullan ainda acreditar na redenção humana e Pasolini ter filmado de um lugar já sem regresso).
Mas que estamos em abismos mais profundos (pessoais, até) do que os da denúncia, corrobora-o o facto de, para além do tal sorriso de querubim, o realizador ter convocado uma experiência íntima para explicar a génese do filme: a sua condição de filho de pai alcoólico. A sequência inicial, magnífica, é significativa. Sem diálogos, sem indicações precisas a não ser uma data, anos 60, e música incessante: uma festa, um rapaz, uma rapariga, ele força-a, ela cede, mas conta à irmã. Esta conta (só vemos os lábios a mexer) a alguém que conta a alguém, os elos vão-se sucedendo, até que o segredo chega ao cume da autoridade, o padre. Sem diálogos, mas com música. Ainda antes do genérico, a rapariga é enviada para um convento das Madalenas, espaço onde a maior das fragilidades tem o rosto da monstruosidade. É assim, sem mensagem, só corrupio e coreografia.
deus, pai e autoridade. No palco da festa de encerramento de Veneza 2002, Mullan resplandecia de casaco de veludo púrpura e de "kilt" azul-marinho, Leão de Ouro na mão. Dirigindo-se ao público, explicou que o seu filme "não era só sobre a Igreja Católica e a forma como oprime as jovens na Irlanda, tinha a ver com todos os regimes fundamentalistas que oprimem as raparigas em todo o mundo". "É esse o problema da opressão religiosa: faz as pessoas más, faz as pessoas redistribuírem o abuso que receberam dos outros", acrescentou.
A saia escocesa não podia deixar de ser "lida" como afirmação vibrante de identidade - no caso de Mullan, católico, criado nos subúrbios de Glasgow por pai alcoólico e mãe violentada, é um misto de generosidade, determinação, sentido de humor e desespero.
"A minha mãe fez o que todas as mulheres de classe trabalhadora faziam naquele tempo, pensou que aquela vida era o seu destino e a Igreja confirmou-lhe alegremente que assim era: estando ela casada, teria que aguentar o marido. Quando éramos miúdos, só pensávamos: 'Quando é que este homem desaparece?' Desde que me lembro, o meu pai violava-a sistematicamente e ainda se gabava disso a toda a gente. A Igreja foi inútil, mais do que inútil, pior do que inútil. Era uma coisa esquisita para mim, porque estava a crescer com os ensinamentos da verdadeira Igreja Católica e a que estava na minha cabeça, a idealizada, a de Spencer Tracy, James Cagney ou Bing Crosby, que faziam de padres nos leves filmes americanos das tardes de sábado, ou a da Jennifer Jones de 'The Song of Bernadette', que vi quando tinha sete anos - fiquei nas nuvens, a minha irmã queria ser freira logo que viu o filme; muitas pessoas queriam."
Mullan tornou-se actor porque não conseguiu entrar para uma escola de cinema. Começou a sua actividade no teatro, antes da TV e do cinema, antes do encontro com Ken Loach. Foi já depois do seu trabalho com Loach ("Riff-Raff", para além de "My Name is Joe"), que fez a sua estreia como realizador ("Orphans") e mostrou subverter uma herança, a do "realismo britânico", que nesse filme era arrasado por um desvario surrealista. Para "As Irmãs de Maria Madalena", começou por seguir os métodos de Loach na escolha dos actores - o trabalho de "casting" como imersão nas histórias pessoais das intérpretes, impressionantes - e na rodagem em sequência cronológica, para ser fiel aos arcos emocionais do filme. Mas a uma dimensão mais "documental", para manter um olhar justo, para que fossem as personagens a comandar o filme, acrescenta-se uma vibração romanesca e selvagem que está longe das marcas de Loach.
"As Irmãs de Maria Madalena" foi rodado na Escócia, num antigo convento em Dumfries, a uma hora de distância de Glasgow. A produtora Scottish Screen adicionou 150 mil libras ao orçamento de 2,1 milhões de libras, mas a Escócia foi sobretudo escolhida por questões logísticas. "Na Irlanda os conventos ainda estão em uso, enquanto este, usado para o filme, estava vazio." Mullan não esconde que havia também receios de que a rodagem na Irlanda fosse fonte de desestabilização - um jornal irlandês recusou mesmo um anúncio em que a equipa do filme procurava estabelecer contactos com sobreviventes da famigerada instituição. Era preciso, por isso, proteger as inexperientes jovens actrizes da atenção dos "media". Hoje, já se pode dizer que "As Irmãs de Maria Madalena" foi um sucesso na Irlanda.
"Gostaria que o Papa visse este filme e gostaria que o víssemos em conjunto. Os cinemas estão provavelmente cheios de padres e freiras que querem condenar o filme, mas enquanto eles pagarem para vê-lo fico muito feliz", brinca, jogando na impertinência. "Quero que todos eles o vejam, porque se acham que é assim tão simples atacá-lo, então não compreendem o seu objectivo. Se eu quisesse atacar a Igreja Católica, tinha feito uma comédia. Quando se quer atacar alguém, é melhor fazê-lo com humor, é mais eficaz.
"Este filme é uma tentativa para chegar ao coração das obsessões da Igreja com a sexualidade, com a rebeldia dos adolescentes, com as jovens, e tentar descobrir o seu bizarro ataque à natureza humana - é como se estivessem a dizer aos oceanos e às ondas para retrocederem. As raparigas menstruam e, no entanto, eles estavam a fazê-las recusar este facto. É de loucos! Há uma arrogâcia por detrás disto tudo e eu sempre quis fazer um filme que tocasse no fulcro da questão. Não tenho respostas para tudo. Mas tenho muitas perguntas. E quero compreender. E quero que a Igreja Católica encare o seu passado, não quero que diga só 'tenho pena'.
"Para começar quero que pague uma boa indemnização às mulheres vítimas de maus tratos. Quero uma reavaliação da sua posição nas comunidades que tem por todo o mundo, sobre o porquê de estas coisas acontecerem. A Igreja tem um poder incalculável e uma riqueza imensa. Eles são um negócio, uma enorme organização política, e se não reavaliarem a sua posição, vão perder fiéis aos milhões."
Dito assim, parece que a "fase marxista" de Peter Mullan não acabou. Mas aquele que em tempos conheceu uma freira de sorriso de querubim continua católico.