Procuram-se portugueses fortes e rápidos para conduzir um trenó
A competição de bobsleigh em Calgary 1988 ficou mundialmente conhecida pela participação dos jamaicanos, mas poucos recordam a aventura de cinco jovens portugueses emigrantes no Canadá que se propuseram a fazer a descida a mais de 100km/h.
Trinta e seis anos depois da presença pioneira do esquiador Duarte Silva nos Jogos de Oslo em 1952, Portugal voltava a ter uma representação nos Jogos Olímpicos de Inverno. Pela primeira vez, era uma comitiva com mais de um atleta. Eram cinco, todos radicados no Canadá, quatro deles estudantes universitários e apenas dois já tinham entrado num bob, um trenó com lâminas que desliza numa pista de gelo em percurso descendente e que pode atingir velocidades superiores a 150km/h. Nunca Portugal tinha tido uma representação em bobsleigh (e não voltaria a ter), mas estes cinco portugueses expatriados iriam competir com duas equipas de dois (Portugal I e II) e uma de quatro.
A competição de bobsleigh em Calgary ficaria célebre pela participação de uma equipa jamaicana, uma história transposta para cinema na comédia Jamaica Abaixo de Zero (1993). A equipa caribenha roubou o protagonismo mediático às nações favoritas, como a Suíça, a República Democrática Alemã, a Áustria ou a União Soviética, numa competição bastante “colorida”. Para além dos jamaicanos estava, entre outros, o México, com os quatro irmãos Tamés, as Ilhas Virgens britânicas, em que a soma das idades dos quatro tripulantes era 193 anos, ou o Mónaco, que integrava o príncipe Alberto Grimaldi. E os portugueses António Reis, João Poupada, Jorge Magalhães, João Pires e Rogério Bernardes.
A importância do trenó
Para chegar a Calgary, os portugueses tiveram de passar por provas de qualificação. O bilhete para os Jogos só foi garantido numa prova da Taça do Mundo, em Innsbruck, na Áustria, no Verão de 1987, cumprindo a meta estabelecida pelo Comité Olímpico de Portugal (COP). “Fizemos o suficiente”, recorda Jorge Magalhães, hoje um engenheiro a trabalhar na Dinamarca, na altura um estudante de Engenharia em Toronto. Ele tinha sido “arrastado” por António Reis, que, dois anos antes, em Lake Placid, tinha passado no exame de condutor pela federação internacional de bobsleigh.
Em Innsbruck, conta Magalhães, usaram um trenó de boa qualidade alugado em Itália que ajudou ao apuramento, mas já não puderam usar esse trenó em Calgary porque era demasiado caro – esse veículo acabaria por ser comprado pelo príncipe Alberto para usar nos Jogos. Os portugueses contavam os tostões e não foi fácil angariar dinheiro. A comunidade portuguesa em Toronto deu uma ajuda e algumas empresas locais também contribuíram, tal como o COP. Mas, segundo contava António Reis ao Toronto Star em 1988, a equipa portuguesa chegou a Calgary com 12 mil dólares de dívidas e três trenós alugados à Associação de Bobsleigh de Ontário.
Depois do apuramento, a competição olímpica e o convívio com os melhores. “Era esmagador. Eu era um jovem português ao lado dos melhores atletas do mundo. Chegava a questionar-me se tinha direito de lá estar. Era uma mistura de excitação, orgulho e medo. Lembro-me de estar aterrorizado, tinha medo de me despistar ou fazer qualquer coisa estúpida”, recorda Rogério Bernardes, que seria o homem do travão no bob de quatro, acompanhando Reis (o condutor), Pires e Poupada. A pista de Calgary tinha 1450m de comprimento, com a partida a 1250m de altitude e um desnível de 120m em relação à chegada. O quarteto português pagou o preço da inexperiência. Ficou em 25.º em 26.º, apenas com a equipa jamaicana atrás, que seria desqualificada por se ter despistado na terceira descida.
“Queríamos fazer bem, mas competíamos com gente que treinava há muitos anos, que tinha os fundos e a tecnologia. Pensar que chegávamos lá e ficávamos bem classificados era irrealista”, admite Bernardes hoje um professor universitário em Toronto. O bob 4 de Portugal terminou com o tempo de 3m55,50s, mais 1,93s que a Bulgária, mas correspondeu aos desejos de Bernardes e não se despistou, ao contrário do Portugal II de Magalhães e Pires, que tiveram um acidente na terceira descida.
Aconteceu pouco antes dos 40 segundos de prova e dá para ver num vídeo que está disponível do Youtube quase todo o resto do percurso de cabeça para baixo. “Entrámos demasiado tarde na curva e saímos demasiado cedo”, justifica Jorge Magalhães, que competiu com gripe e não podia tomar medicamentos, sofrendo com as limitações do próprio equipamento. O Portugal II não teve classificação final, tal como uma tripulação dos EUA e uma do Japão, enquanto o Portugal I de Reis e Poupada ficou em 34.º em 38 que terminaram, a mais de dez segundos do vencedor, o URSS I.
Podia ter sido o início de alguma coisa, como aconteceu com os jamaicanos, que tiveram equipas em edições posteriores dos Jogos, incluindo os que começam hoje em Sochi, mas não. A equipa portuguesa de bobsleigh não deixou descendência, apesar de ainda ter participado em algumas provas da Taça do Mundo e com recrutas do atletismo português, como Nuno Fernandes, que viria a ser o recordista nacional do salto com vara, o barreirista João Lima ou os velocistas Paulo e Pedro Curvelo. “Numa prova em Calgary, penso que em 1992, ficámos por volta do 30.º lugar”, conta o antigo varista, que ainda foi algumas vezes aos campeonatos de push (empurranço) no Mónaco promovidos por Alberto Grimaldi.
“Não podia ser uma coisa isolada. Tinha de ser um trabalho sustentado, tinha de haver um programa”, observa Rogério Fernandes, cujos sonhos desportivos de infância estavam longe do que a realidade lhe viria a mostrar. Tentou o futebol americano e a luta livre, até que o bobsleigh veio ter com ele: “A vida é estranha. Temos um sonho e o universo está atento, mas o universo tem sentido de humor. Vais aos Jogos Olímpicos, como um bobsleder. Aconteceu, com este pequeno toque de ironia. Foi uma dádiva.”
O acidente do Portugal II na terceira descida