O Presidente da China poderosa e da China instável
A notícia está escondida em textos recentes da Newsweek e da Foreign Affairs. As autoridades chinesas deixaram de publicar as estatísticas dos protestos no seu território porque, antes do final de 2010, estavam contabilizadas 180 mil manifestações, o dobro do ano anterior. Em 2011 terão sido mais, este ano o número voltou a subir. Todos os dias, em algum ponto da China, a população revolta-se. Em menor ou maior número, fala contra as terras contaminadas e os alimentos estragados, o roubo de terras, a demolição de casas, as condições de trabalho.
A China está instável. E se os líderes ignorarem o descontentamento podem “desencadear uma reacção em cadeia que vá da convulsão social à revolução violenta”, advertia um relatório interno e secreto citado por outra revista, a Economist, na semana passada.
Xi Jinping herdou ontem esta China.
Mal o Presidente Hu Jintao renunciou a todos os cargos que acumulava por ser o secretário-geral do Partido Comunista Chinês (chefe das forças armadas, chefe do Politburo, chefe do Comité Permanente, chefe de Estado), Xi ficou entre a espada e a parede. Retroceder, é impossível. E para a frente o caminho é perigoso. Pela primeira vez desde que a China se abriu à mudança económica, os líderes estão preocupados com o “desequilíbrio, a descoordenação e a insustentabilidade” que criaram — palavras do primeiro-ministro que cessou funções, Wei Jiabao.
Por isso, os dez anos de Xi Jinping — na China os chefes de Estado cumprem um mandato longo, mas único — são considerados pelos analistas, dentro e fora da China, ao mesmo tempo perigosos e cruciais. Recebeu a missão de manter o poder nas mãos exclusivas do partido, assegurar o crescimento económico e encontrar uma fórmula para a estabilidade social. Tarefas incompatíveis, dizia a Economist, que questionava: “Terá coragem para perceber que a estabilidade futura depende de ele romper com o passado?”.
Príncipe da aristocracia vermelha
Há 12 anos Xi já se preparava para subir na hierarquia, sonhando em chegar ao topo. Mas se soubesse como iria encontrar a China quando fosse a sua vez de liderar, talvez tivesse moderado o discurso que fez ao dar uma entrevista promocional — foi encomendada pelo partido para dar a conhecê-lo ao público — à revista chinesa Zhonghua Ernü. “Não devemos ter medo das dificuldades e dos desafios quando nos preparámos bem. A política é arriscada e a boa vontade não é um caminho. (...) A receita do sucesso é darmos continuidade ao nosso trabalho. Quando entramos na política, começamos a atravessar um rio. Não interessa quantos obstáculos nos aparecem pelo caminho, só há um caminho: seguir em frente. Eu já me deparei com dificuldades e obstáculos. É inevitável”, disse, na tradução inglesa do Nordic Institute of Asian Studies.
Xi Jinping nasceu no dia 1 de Junho de 1953 e nasceu bem — é um príncipe da aristocracia vermelha. Foi o segundo filho de Xi Zhongxun, um dos fundadores da guerrilha comunista e general de Mao Tsetung durante a revolução que fez nascer a República Popular da China, em 1949. O pai foi chefe do departamento de propaganda do partido e vice-secretário-geral do Congresso Nacional do Povo antes de Mao ter decidido limpar a estrutura dirigente e enviá-lo para trabalhar numa fábrica.
Tinha Xi Jinping 15 anos quando o pai foi preso; estava-se em 1968 e acontecia na China a Revolução Cultural. O rapaz, como milhões de outros, foi deslocado para o campo para se reeducar e adaptou-se. Quando saiu, aos 21 anos, era o chefe de produção do partido no “seu” campo de trabalho agrícola. “Foi muito emocional — disse sobre a experiência à imprensa chinesa —, vivíamos um estado de espírito, e quando se percebeu que os ideais da Revolução Cultural não se podiam concretizar provou-se que era tudo uma ilusão.”
Mal as universidades reabriram, depois da morte de Mao, Xi Jinping inscreveu-se. Queria ter uma educação superior e o pai, de regresso ao aparelho de Pequim, voltava a poder ajudá-lo. Licenciou-se em Engenharia Química (mais tarde, quando a liderança quis apostar na tecnologia e na ciência e enviou estudantes para o estrangeiro, coube-lhe ir aprender como era a agricultura americana no Iowa, nos Estados Unidos da América; tinha 35 anos e passou a gostar de exercício físico e de basquetebol).
A reabilitação do pai deu ao filho a vida privilegiada. Como muitos outros príncipes (os filhos dos revolucionários), quando acabou a formação não foi dirigir fábricas ou quintas, foi ser político. Trabalhou como secretário do secretário-geral da Comissão Militar, Geng Biao. Ambicioso, casou Ke Lingling, filha do embaixador chinês em Londres no início dos anos 1980, e percebeu que se queria uma rampa de lançamento teria que sair de Pequim e ir para as províncias. Em Fujian destacou-se, em Hebei solidificou a ascensão, em Zhejiang (na mediática e influente cidade de Xangai) foi catapultado para o topo. Antes de ser Presidente, era vice-presidente.
Pai para um lado, filho para outro
Ao mesmo tempo que o filho fazia o seu percurso, o velho revolucionário Xi Zhongxun também refazia o dele. Defendeu as reformas económicas e arriscou-se ao defender mudanças políticas, quando condenou a repressão das manifestações pró-democracia na praça Tiananmen, em 1989. Xi Jiping manteve-se neutro e o jornal de Hong Kong (região chinesa onde a imprensa é considerada mais independente) South China Morning Post diz que se manteve fiel à sua ala política (aquela que lhe permitiu ter uma carreira de sucesso), que é o conservadorismo chinês.
É por isso que os analistas (na Foreign Affairs, por exemplo, no artigo Before and After Hu), dizem que não se deve esperar muito do novo Presidente chinês — por convicção ou fidelidade, Xi Jinping é um homem do status quo.
Ainda assim, a revista de relações internacionais pede-lhe que tente ser ousado. Porque a nova sociedade chinesa, cheia de força, iniciativa e descontentamento, lhe pede que rompa com um caminho que foi traçado há muito tempo, quando a China era um país diferente e a liderança ainda falava em igualitarismo. A liderança conservadora segue esse caminho à régua — Deng Xiaoping definiu que só em 2050 a China teria um Governo eleito pelo povo.
A China é, hoje, um país de corrupção, de desigualdades, de crimes ambientais. É um país com uma classe média em ebulição — por enquanto, dizem os analistas, as manifestações são localizadas, cada uma pede uma coisa diferente, e a revolução violenta que muitos temem não está ao virar da esquina.
Mas o “império tem as periferias frágeis e sujeitas às pressões exteriores”, explica Clem Tisdell no número 90 da revista Economic Analysis & Policy. Por isso, precisa de redefinição e Xi tem nas mãos a “última oportunidade” para corrigir o caminho antes do risco aumentar.
Xi disse publicamente que representa as massas. O que as massas querem, no imediato, são decisões concretas: a privatização das terras, o registo da propriedade das casas, a mudança das leis da migração (a assistência de saúde, por exemplo, tem que ser feita na região de origem), um Estado menos asfixiante e uma reforma política que deixe os cidadãos sentirem que participam nas decisões.
Segunda escolha
O South China Morning Post revelou que Xi se reuniu com reformadores nos meses que antecederam a sua ascensão. Mas não é um Presidente com plenos poderes, como era Mao Tsetung há 60 anos. Obedece a um guião redigido pelo Comité Permanente do Politburo — o mais poderoso dos órgãos que governam a China —, que foi reduzido a sete elementos, a maioria deles conservadores. Na China, isto quer em primeiro lugar dizer que o país tem de ser cada vez mais rico, cada vez mais visível no mundo, mas o partido tem de ser a chave única do progresso e da estabilidade. Foi a Comissão Permanente que cessou funções ontem quem escolheu Xi para secretário-geral do partido e Presidente — não por ser o favorito mas por ter sido o que reuniu consenso entre as facções políticas.
Muitas forças se movem na China e Xi tem de lidar com todas elas. Pedigree e capacidade são palavras que pertencem à sua biografia. Fez um bom trabalho por onde passou e, por isso, foi premiado. Pouco mais se pode adiantar.
Não tanto por o novo líder ser uma figura opaca (que também é — pouco se sabe além de que é casado pela segunda vez com uma cantora famosa na China, Peng Liyuan, e ter uma filha a estudar em Harvard com um nome falso). Muito mais por a sua presidência ir ser o que a nova China deixar.
Notícia corrigida: estabilidade, em chinês, é weiwen e não wein wein, como estava inicialmente escrito.