Perfil de Fernando Pimenta: A vida é uma caixa de medalhas
Fernando Pimenta tem autorização para faltar a uma aula de Motricidade para dar uma entrevista, equipar-se e erguer o barco para uma sessão fotográfica. Pode cobiçar um prato de batatas fritas (canoísta não toca) e passar diariamente à porta da discoteca Natura (canoísta não entra). Pode sentar-se à frente da televisão e imaginar que está a devorar um bolo inteiro - receita da mamã. Pode andar "perdido de amores" pela Joana, pode ser o último a chegar à regata, pode ter o barco mais pesado de todos. Ainda assim arrisca-se a vencer.
No ano passado, Fernando Pimenta perdeu para o benfiquista Nélson Évora o título de atleta do ano para a Confederação do Desporto de Portugal, e para o sportinguista João Moutinho na categoria "revelação". O canoísta, então com 18 anos, tinha acabado de sagrar-se campeão europeu de juniores e sub-23 em K1 1000m (e juntou o segundo lugar em K1 500m). Já em 2008 conseguiu bater-se com Emanuel Silva, sétimo nos Jogos Olímpicos de Atenas e o mais sonante canoísta português (Fernando Pimenta perdeu nos 1000m, mas ganhou nos 500m).
Hoje, fala em "brio", em "motivação", em "humildade".
Sublinhe-se "humildade". "Não gosto que digam que tenho a mania. Por isso tento ser o mais humilde possível. O meu pai costuma dizer que, quando eu achar que já ganhei tudo, nunca mais ganho nada", disse à Pública.
Se vivesse no universo Travian - jogo de estratégia em tempo real onde Fernando ocupa algum do "pouco" tempo disponível -, ainda não estaria num patamar "world wonder" com recursos ilimitados, mas já há muito teria ultrapassado a condição de simples operário.
Em 2001 já estava farto de olhar para o Clube Náutico de Ponte de Lima, mas da margem errada do rio. "Era ao domingo de manhã, depois da catequese", recorda. "Via os outros nos barcos e pensava: 'Um dia destes hei-de experimentar'." O tempo passou. O clube tinha à volta de 20 atletas. Hoje são quase 200.
Com oito anos de natação nos ombros, nesse Verão atirou-se aos barcos. Ainda não se treinava regularmente nos dias frios, ainda mantinha a natação.
Com o tempo, deixou-se disso.
Como em qualquer aldeia romana, aprendeu com os erros ("No início virava muitas vezes. Quando era infantil de primeiro ano, em dois quilómetros virei três vezes e fiquei em último") e construiu bases sólidas graças ao apoio do treinador Hélio Lucas. "Entrou num programa de férias e percebeu-se logo que era um pouco descoordenado. Era forte, mas tinha falta de equilíbrio e de coordenação. Não teve resultados rapidamente.
Ao segundo ano, as pessoas diziam: 'Não vai ser nada de especial.' Eu respondia: 'Vamos com calma'." Os outros deram o braço a torcer.
Quando todos preferiam o futebol ou o basquetebol, Fernando Pimenta aperfeiçoou a pagaiada. Às 23h00, com a mãe "doente" com a espera, Fernando não largava o rio.
Em sete anos, pouco mudou: trabalha sete dias por semana, três, quatro horas por dia, natação, ginásio, corrida, rio...
Foi campeão nacional pela primeira vez em 2004, num K2 com Arlindo Malheiro.
Fernando Pimenta conta como tudo se passou: "Dissemos um ao outro: 'Vamos tentar lutar pelo resultado' e... já está feito.
Foi um bocado o abrir de uma porta para o futuro." Seguiu-se um "ano de ouro", em que ganhou quase tudo o que havia para ganhar (inclusive o primeiro lugar em K4 500m no Festival Olímpico da Juventude Europeia). Em casa, guarda a sua vida numa caixa. "Já tive as medalhas separadas por ano, mas com o meu irmão mais novo não é fácil."
Pode dizer-se que 2007 foi o ano zero. Foi a vitória em Belgrado com tempos quase de sénior ("perdi o medo") e foi uma série de pequenos detalhes prioritários. Passou a ter um treinador a tempo inteiro, trocou Coimbra (onde estudava Fisioterapia, mas demasiado afastado do Centro de Estágio de Montemor) por Ponte de Lima (frequenta o curso de Reabilitação Psicomotora na Faculdade Fernando Pessoa), reaproximou-se da família ("é muito mimado pelos pais", garante Hélio Lucas) e juntou o útil ao agradável (a namorada, Joana Sousa, é atleta da selecção nacional). "Andava perdido de amores, não estava tão concentrado. Agora dá para rir, mas na altura foi um problema sério."
Quando se fala em ídolos, Fernando Pimenta responde com "Nuno Barros", atleta do clube. "Chega a treinar duas horas e um quarto sozinho. Qual é o jogador de futebol que faz isso?" Quando se insiste na pergunta... "Ídolo é o meu pai [agora director do clube], o treinador e os colegas que têm paciência e que partilham comigo as vitórias."
Quando se fala em posar para a fotografia, o canoísta veste a camisola dos patrocinadores e escolhe a canoa preta com o nome Zedtech, a primeira marca a apostar forte nas suas capacidades. "Tem um condão especial", aponta o treinador, referindo-se a uma humildade sobrenatural e a uma incrível capacidade de trabalho. "Não tenho tempo para quase nada e estou a deixar de ver noticiários porque as notícias são sempre as mesmas. Sair à noite? Há uma discoteca ao lado do clube, a Natura, onde nunca entrei."
Já ganhou depois de ter chegado atrasado ao aquecimento ("Prefiro não stressar porque nas provas há sempre alguém nervoso. Há quem diga que estar nervoso é bom, mas eu prefiro não experimentar"), já ganhou apesar de o seu barco ter mais um quilo que os restantes, já ganhou depois de muitos treinos no rio Lima, junto ao clube, num plano de água que a construção do açude deixou num estado "miserável" para a prática de canoagem. "Aqui?! Se quiser passar a pé para a vila..." Não pode tocar em batatas fritas, muito menos em papas de sarrabulho. Mas tem aspirações de representar Portugal nos próximos Jogos Olímpicos.
Texto originalmente publica na revista "Pública", a 9 de Novembro de 2008