O dia em que redescobrimos os Radiohead

Os Radiohead apresentaram-se em Portugal sem concessões
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Os Radiohead apresentaram-se em Portugal sem concessões Nuno Ferreira Santos
Allison Mosshart e Jamie Hince (The Kills) já não fazem do concerto uma corte sexual alimentada a blues e rock'n'roll
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Allison Mosshart e Jamie Hince (The Kills) já não fazem do concerto uma corte sexual alimentada a blues e rock'n'roll Nuno Ferreira Santos
Miles Kane, a outra metade que não Alex Turner nos Last Shadow Puppets, rockou como bem rockam os britânicos
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Miles Kane, a outra metade que não Alex Turner nos Last Shadow Puppets, rockou como bem rockam os britânicos Nuno Ferreira Santos
A ver PAUS estiveram tantos quanto os que receberam, no início do festival, os cabeças de cartaz Stone Roses
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A ver PAUS estiveram tantos quanto os que receberam, no início do festival, os cabeças de cartaz Stone Roses Nuno Ferreira Santos
A luz do dia não fez justiça ao festim electro-psicadélico de Caribou
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A luz do dia não fez justiça ao festim electro-psicadélico de Caribou Nuno Ferreira Santos
Os 55 mil bilhetes esgotaram no terceiro e último dia do Optimus Alive
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Os 55 mil bilhetes esgotaram no terceiro e último dia do Optimus Alive Nuno Ferreira Santos

Vivemos um tempo em que a unanimidade quanto à música é inexistente. Não há bandas que congreguem toda uma geração, não há movimentos que levem todos a exibir símbolos de pertença comuns. O mais provável é que sempre tenha sido assim. Mas hoje nota-se mais. O que torna bonito aquilo a que fomos assistindo ontem, domingo, na despedida do Optimus Alive de 2012. Várias reuniões em volta de pequenas unanimidades. No dia em que os 55 mil bilhetes esgotaram. O dia do regresso dos Radiohead, dez anos depois de cinco Coliseus lotados, entre Lisboa e Porto. E foi óptimo ver como a banda de Thom Yorke ocupou o palco sem ceder ao espalhafato cénico ou sentimental que parece ser tantas vezes obrigatório nestes acontecimentos de e para as massas.

O relógio aproximava-se das seis e meia da tarde. No palco Heineken Miles Kane, a outra metade que não Alex Turner, vocalista dos Arctic Monkeys, nos Last Shadow Puppets, rockava como bem rockam os britânicos: coolness a toda a prova, melodia pop bem trabalhada e descargas eléctricas no sítio certo porque, afinal, a Inglaterra foi terra de um boom de blues e tal ficou-lhes inscrito no código genético. Eram seis e meia da tarde e a tenda estava muito bem composta.

Um pouco abaixo, no palco Optimus, o mesmo cenário. A sombra da cobertura do palco marcava o limite do público que se aglomerava para ouvir a limpidez pop dos Best Youth, guiada pela óptima voz de Catarina Salinas. Do palco principal, mais abaixo, erguia-se um rumor. A bateria siamesa dos PAUS, o baixo e os sons que se libertavam dos sintetizadores avançavam a todo o vapor. Ali, às 18h30, estariam tantos quanto os que receberam, no início do Optimus Alive, sexta-feira, os cabeças de cartaz Stone Roses. O ataque rítmico – tudo nos PAUS é ritmo – é rock'n'roll que bamboleia com vivacidade tropical. As canções são libertação de energia num transe que, transe que é, inebria.

“Deixa-me ser”, gritam os bateristas que cantam, Hélio Morais e Joaquim Albergaria – e Makoto Yagyu, o baixista, já navega sobre os braços e ombros do público das primeiras filas. O adjectivo que aplicámos a início – bonito, relembremos – explica-se então desta forma: três concertos em simultâneo num início de dia de festival, período habitualmente consagrado pelo público a ver o que se passa sem se demorar em nada com grande atenção, e os palcos bem preenchidos de gente que parecia genuinamente querer saber o que se passava. Mesmo que, talvez reflexo da baixíssima capacidade de concentração que é marca do nosso tempo, houvesse sempre um burburinho de gente falando muito e muito alto enquanto um concerto, qualquer concerto, decorria. Esse burburinho constante tem sido um clássico nos festivais deste ano. Sendo-o também neste último dia de Optimus Alive, teve luta meritória.

Por exemplo, a do rapaz que, ao nosso lado, funcionou como ponto durante o concerto mais aguardado: cinco segundos de canção e ele gritava-lhe o título com felicidade incontida, a que reunia expressões em vernáculo que o êxtase não conseguia conter, o que desembocava fatalmente no berrar das letras do tema respectivo, em volume tal que o enxame de burburinhos se tornava ruído de fundo muito distante. Mas esse parece ser o efeito dos Radiohead em muito boa gente. Como se a carga emocional daquelas canções, principalmente as do período mais canónico no contexto rock – até Ok Computer, portanto –, fosse o som de uma vitória: a felicidade que sobressai da descida às profundezas da alma. Não é bonito depararmo-nos com elas – “God loves his children”, rosnou Thom Yorke, cruel e sarcástico, no final de “Paranoid android” –, mas o efeito de catarse gerado tem um poder indesmentível. Isso, porém, era antes. Era no século passado.

Os Radiohead que estiveram em Algés são algo mais. Uma banda que mantém a aura de independente quando já atingiu um estrelato massivo e transgeracional. Uma banda que funde pulsar electrónico convulsivo com experimentação rock sem alienar nenhum dos dois universos. E uma banda que age em palco sem que nada a distraia do essencial: as suas canções, a sua música, a sua expressividade.

Não há conversas para distrair, além de um “boa noite” a início e, mais à frente, a cortesia da declaração “dez anos é muito tempo, vamos tentar que não seja tanto da próxima vez”. Neste concerto, existiram as canções de King of Limbs, como “Bloom”, a primeira, que ganham uma dimensão física que o álbum não revelava. Existe a incrível precisão da banda, máquina com coração humano que não falha um segundo que seja. Existe Thom Yorke, de barba rala e rabo-de-cavalo, dançando e contorcendo-se de forma histriónica, qual xamã apocalíptico respondendo ao impulso do ritmo quebrado de Phil Selway, o baterista, das linhas de baixo de Colin Greenwood, e dos riffs inesperados e das manipulações eléctricas de Jonny Greenwood e Ed O'brien.

Não foi um concerto de festival, no sentido facilitista do termo. Os Radiohead nunca cá andaram para apaziguar o coração (com nostalgias ou qualquer outro conforto). In Rainbows e King of Limbs, os dois últimos álbuns, estiveram bem representados no alinhamento. “Pyramid song” atirou-nos para os mistérios fora deste mundo de um jazz que se mutou noutra entidade, indefinível. “There there”, do mal amado Hail To The Thief, foi assomo rock tardio e “Bodysnatchers”, a última antes do primeiro encore, um assalto de rock'n'roll irado e conturbado. Neste contexto, a estelar “Climbing up the walls” ou a desolada “Exit music (for a film)”, acompanhadas de palmas suscitadas pela felicidade do reconhecimento, não chegam até nós como êxitos desligados de um corpo de obra comum.

Os Radiohead apresentaram-se em Portugal. Totalmente. Sem concessões. Do frenesim rítmico de “Bloom” à sequência de despedida com “Paranoid android”, “Everything in its right place”, “Idioteque” e, num último encore, “Street spirit (fade out)” – a canção mais distante, a única de “The Bends” –, ficou essa que é a principal angústia e a inspiração primeira da banda. “Fade out, again”, cantou Thom Yorke, uma e outra vez, no final. Anulamo-nos. Desaparecemos. Silêncio.

King of Limbs

pode ter sido, como o classificou Thom Yorke, um álbum invisível. Os Radiohead podiam até parecer memória de um tempo que já não é este que vivemos. Pois bem, o concerto no Optimus Alive serviu para mostrar a força com que esta música ainda ressoa no presente. Foi, como se esperava, mas não da forma que se esperava, o momento alto de um dia com a sua mão cheia de bons concertos.

No palco principal, os Kooks foram de uma competência nada ofensiva – é fácil trautear as canções ao fim do primeiro refrão –, mas não deixam muito que contar. São a tradição pop britânica em piloto automático, preparada para alegrar grandes eventos. Algo nos antípodas das Warpaint, que actuando a umas muito diurnas 19h15, no Palco Heineken, não deviam ter-se surpreendido com a reacção dos muitos que as aplaudiram e que reconheceram canções como “Undertow” aos primeiros acordes. Vozes belíssimas derramadas sobre guitarras que divagavam em tangente ao rock'n'roll, que espiralavam até “the stars above the ceiling” e, num final irrepreensível, que seguiram o andamento funk-punk da secção rítmica, tão contagiante quanto o “House of jealous lovers” dos Rapture.

Depois das Warpaint, e porque o cartaz suscitava correria para tentar tudo ver, houve no palco principal o festim electro-psicadélico de Caribou, a quem a luz do dia não parecia fazer justiça, a preparar terreno para a hibridez orgânico-digital e para a euforia em queda existencialista dos Radiohead. Houve, quase ao mesmo tempo, B Fachada acompanhado de nada mais que sintetizador e caixa de ritmos, a mostrar como “Afro-chula” é perfeita como canção de apresentação do álbum Criôlo que sairá brevemente. Digamos que a chillwave ganha nervo, ironia e corpo suado e se põe a dançar com ginga africana numa Ibiza inventada em Trás-os-Montes – no final, chegou “Deus, Pátria e Família” e o bom tornou-se (ainda) mais sério.

Enquanto ao longe as luzes do palco principal faiscavam com o crescendo de intensidade de Caribou, no outro extremo do recinto, no palco Heineken, tudo era discrição e fragilidade. Em concerto e a ouvidos desconhecedores, percebemo-lo agora, a música dos Mazzy Star passa facilmente despercebida. A sua intensidade só se revela a quem já tenha com ela uma relação de intimidade, a quem carregue consigo as composições de David Roback e a voz de Hope Sandoval – que continua com o poder encantatório que lhe ouvíamos há duas décadas. Para esses, “Hallah”, “She hangs brightly” ou “Ghost on a highway”; o country-rock como embalo dolente e o blues como fogo lento dos Mazzy Star são uma delícia – negra e por vezes tortuosa, mas delícia. Isso, nem um certo titubear da banda consegue azedar. Mas num concerto em festival, os Mazzy Star não se chegam a revelar a quem não tenha com eles essa intimidade. São a sombra de qualquer coisa e passam despercebidos. Ouviu-se “Fade into you” e, passada a canção que todos conhecem, deu-se a debandada. Havia uma razão de peso – os Radiohead que estavam prestes a entrar em palco. Mas não deixa de ter o seu quê de sacrílego abandonar Hope Sandoval quando, por fim, podemos vê-la e ouvi-la. Quando podemos confirmar que é real e não uma assombração.

Naquele mesmo palco, madrugada dentro, o Optimus Alive mostraria ter ainda, acabado o concerto de Radiohead, umas quantas horas mais de vida viçosa. Primeiro assistimos ao renascimento dos Kills. A agora loura Allison Mosshart e Jamie Hince já não fazem do concerto uma corte sexual alimentada a blues e rock'n'roll. Allison e Jamie, acompanhados de coro e quatro percussionistas em tarolas e timbalões, olham de frente o público, outrora voyeur de um flirt prolongado, e, da mais recente “Heart is a beating drum” às “Kissy kissy” ou “Fuck the people” dos primórdios, tornam-se viagem empolgante pelo “wild side” cantado por todos os bluesman e vertido em canção por Lou Reed – a interrupção do concerto depois de alguém desfalecer entre a assistência pode ser usado como prova disso mesmo.

Naquela tenda que é o palco Heineken, o Optimus Alive prolongou-se noite fora com os Kills e assim continuou com os Metronomy. Em clima de festa. Muito pop, muito funky, muito 80s de bom gosto e bons movimentos de dança. Eram quase quatro da manhã e, pelo número dos que dançavam, por aquele rapaz que decidiu escalar a estrutura de suporte para ver melhor o palco, pelo clima de euforia que ali se vivia, diríamos que a festa estava longe de chegar ao fim. Um cenário, digamos, bonito.

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