Um casamento gay por dia no primeiro ano da nova lei

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Em cada dez casamentos, sete são entre homens Rui Gaudêncio

Namorava há 15 anos. Horrorizava-o a ideia de ter um homofóbico a celebrar o seu casamento. Sonhara tanto com aquele momento. Tudo tinha de ser perfeito. No dia da promulgação da lei que prevê o casamento entre pessoas do mesmo sexo, João Paulo encontrou uma simpática vizinha na garagem. "Agora, já o posso casar." Não percebeu o que ela queria dizer com aquilo. "O que faz?", perguntou-lhe. Ela sorriu: "Casamentos." Ele alegrou-se: "A sério? Qual é o seu cartório?"

A vizinha de João Paulo trabalha no Porto. O distrito ocupa o segundo lugar na tabela de casamentos entre pessoas do mesmo sexo - apenas Lisboa o ultrapassa. Desde que a lei entrou em vigor, a 5 de Junho do ano passado, registaram-se 380 no território nacional - a que se juntam outros 30 nos consulados portugueses no estrangeiro.

O responsável pelo portal Portugal Gay não correu para o cartório. Casou a 4 de Outubro. Queria uma festa a sério. E teve-a. Recebeu 150 convidados numa quinta. Só numa marcha ou num arraial do "orgulho" se teria visto tantos activistas LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgéneros. Até corria uma piada: "Se caísse uma bomba, morria 90 por cento do activismo".

Há quem telefone a João Paulo a pedir-lhe conselhos sobre "sítios para casar". O momento é "demasiado importante" para ser presidido por um conservador ou um notário de "cara fechada". E ele orienta muita gente para a mulher que o casou, a vizinha que se tornou sua amiga.

O escritor Eduardo Pitta chegou a irritar-se numa conservatória. Entrou a 28 de Junho, 21 dias depois do primeiro casamento - o de Teresa e de Helena, o casal que durante anos se batera por aquele direito. Quando tentou marcar a cerimónia para dali a um mês, disseram-lhe que lhes ligariam dentro de duas ou três semanas para acertar o dia. "Para quê um prazo tão dilatado?" Tanta coisa para organizar! Levantou a voz. A funcionária foi substituída por outra.

A nova funcionária irradiava simpatia. Poderia casar quando quisesse. Se lhe apetecesse, até poderia casar de imediato. Preferia adiar para o mês seguinte? Quando muito, ligar-lhe-iam para fazer algum ligeiro acerto de hora.

Não há queixas formais. Talvez tudo esteja a correr melhor do que se temia. Neste primeiro ano, Eduardo Pitta participou em quatro casamentos. "Vi que as conservadoras estavam alinhadas com o espírito da coisa. No nosso, houve convidados que levaram champanhe para o registo. A conservadora achou graça."

Nem só esta parte suscita inquietação. Cláudia Sousa anda a ver restaurantes e quintas para o seu casamento, que se há-de celebrar no próximo ano. A mecânica de aviação, de 31 anos, não quer correr o risco de ser servida por quem a ridicularize ou ridicularize os seus convidados - não quer empregados de mesa a entrar na cozinha a rir. Já teve uma experiência desagradável. Num espaço, perguntaram-lhe: "Não é para si, pois não?". Noutro, aconteceu o oposto. "Foram extremamente simpáticos. Convidaram-nos para ir conhecer as pessoas que lá trabalham e provar o menu de degustação."

Igual a Espanha

Os primeiros números do Ministério da Justiça levantam um pouco o véu sobre esta nova realidade. As mulheres casaram menos - protagonizaram três em cada dez enlaces. O litoral mais urbanizado pesa mais - Lisboa, Porto, Setúbal. Um casamento por dia é muito ou pouco? "Em Espanha, houve milhares logo no início, mas também havia milhares de pessoas a protestar. Em Portugal houve centenas de casamentos e havia centenas a protestar", avalia João Paulo.

Espanha abriu caminho - admite casamentos gays desde Julho de 2005. Nos primeiros seis meses, contou 1275, o que significa um por cento do total registado no país. Em 2006, 4574. A estatística disponível não permite uma comparação exacta. Entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 2010, Portugal registou 30.286 casamentos - 277 entre pessoas do mesmo sexo, o que também dá um por cento.

"O país começou tarde, mas apanhou o furor legislativo da União Europeia sobre as questões da igualdade em geral", lembra Sérgio Vitorino, dos Panteras Rosa. Portugal meteu o pé no acelerador. E assumir uma orientação sexual diferente não é um acto automático. "É um processo de uma vida inteira. A pessoa tem de aprender a viver para lá de todos os preconceitos."

O casamento terá mudado pouco a vida de quem há muito se assumira. Assim, de repente, Eduardo Pitta só se lembra de um aspecto. "Tenho o seguro de saúde do meu marido." Trivial? "A vida faz-se dessas coisas práticas." E ninguém, à sua volta, foi apanhado de surpresa. Está quase a celebrar 62 anos e já assumiu a relação em 1972. "Estas coisas também dependem muito das pessoas. Se as pessoas tiverem uma atitude positiva, não precisam de estar escondidas."

Às vezes, muda a sensação de segurança. Há em qualquer relação estável uma ideia de futuro. João Paulo, que completou 43 anos e usa aliança desde 1999, sente que há "coisas" que ficaram acauteladas. Como a protecção na doença, o direito à herança. E gosta de pertencer ao "clube dos casados", "instituição" que antes lhe estava vedada. Para Paulo Corte-Real, da Ilga-Portugal, integração é a palavra-chave. Sempre defendeu esta lei como uma forma de o Estado legitimar as relações entre pessoas do mesmo sexo. "A mensagem tem impacte em termos de luta contra o preconceito. Uma das armas do preconceito é a recusa da visibilidade. Este processo é um reforço de visibilidade. Pela primeira vez, [a orientação sexual] foi uma questão central no plano político. Isso contribui para alterar a percepção pública do que significa ser gay ou lésbica."

Sérgio Vitorino aponta um reflexo: "Há uma autoconsciência maior de pertença a um grupo". João Paulo usa a noite LGBT como parâmetro de maior aceitação social. "No Porto, fecharam o Boys"R"Us, o Moinho de Vento. Restam o Glamour e o Pride. O Zoom é "LGBT friendly", tal como o Lusitano. As pessoas já não precisam de sítios LGBT. Andam de mãos dadas nas Galerias Paris." Como as outras.

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