Auschwitz: a "última cerimónia" para os sobreviventes da Shoah
O momento alto começa às 13h30 (TMG) no que resta do campo Auschwitz II-Birkenau. Primeiro falam as vítimas. Wladyslaw Bartoszewski, deportado 4427, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, falará em nome dos prisioneiros políticos polacos. A antiga presidente do Parlamento Europeu, Simone Veil, deportada 78651, exprimir-se-á em nome dos judeus. Romani Rose, presidente do Conselho dos Roms da Alemanha, falará em nome dos ciganos. Seguir-se-ão os discursos dos Presidentes polaco, Aleksandr Kwasnievski, enquanto anfitrião, do russo Vladimir Putin, em nome dos libertadores, e do israelita Moshe Katsav, em nome das vítimas judaicas.
Os discursos serão intercalados por preces ecuménicas. O cantor americano Joseph Malowany, que perdeu 56 membros da família na Shoah, cantará o "Kaddish", a prece pelos mortos. Estarão presentes 10 mil convidados e o acto será coberto por 1700 jornalistas. Entre os convidados estão os Presidentes alemão e francês, Horst Koehler e Jacques Chirac, o vice-Presidente americano, Dick Cheney, o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso.
Antes desta cerimónia, o memorial Yad Vashem, de Jerusalém, e o Ministério da Cultura polaco organizam em Cracóvia um fórum intitulado "Let my people live" (Deixem o meu povo viver), na presença do antigo deportado judeu e Nobel da Literatura, Elie Wiesel, autor de um dos grandes testemunhos sobre a Shoah.
Para muitos dos deportados será "a última vez", disse à AFP Andrzej Przewoznik, do Conselho Nacional de Protecção do Monumentos e Lugares de Martírio. A última geração das testemunhas directas está a desaparecer e apela à transmissão da memória aos jovens, designadamente na Europa.
Facto significativo é o largo eco da comemoração nas televisões públicas europeias e em algumas privadas. Muitas transmitirão a cerimónia de hoje em directo ou diferido. Na Grã-Bretanha, a BBC está a transmitir uma série original sobre a Shoah ("Auschwitz, os nazis e a solução final). Em França, estações públicas e privadas têm posto no ar os "clássicos", filmes e séries, sobre a destruição dos judeus europeus. A italiana RAI planeou 40 horas de emissão sobre o tema. No Leste europeu, as televisões públicas cobrirão as cerimónias e algumas estão a passar séries como o "Holocausto". Na Rússia, as televisões públicas nada prevêem de especial, a não ser dentro dos noticiários.
A comemoração dos 60 anos é muito mais vasta do que a de 1995, o que tem a ver com o estado da Europa. Há dez anos, a Alemanha estava a digerir a reunificação. Nos países ex-comunistas havia uma recusa geral de reconhecer o carácter excepcional da Shoah, preferindo sublinhar o sacrifício das resistências nacionais ou comunistas. Por outro lado, a recrudescência de manifestações anti-semitas na Europa Ocidental incentivou os governantes a aproveitar a data para um trabalho de pedagogia histórica.
"Nunca mais"?As comemorações começaram em França, no domingo, prosseguindo na segunda-feira na ONU. Na terça-feira, o chanceler alemão, Gerhard Schroeder, organizou uma cerimónia num teatro de Berlim, transmitida por uma televisão pública, em que manifestou a sua "vergonha aos assassinados e aos que sobreviveram ao inferno dos campos, judeus, ciganos, homossexuais, opositores políticos, prisioneiros de guerra e resistentes de toda a Europa, exterminados com uma perfeição fria e industrial, ou escravizados até à morte".
O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, advertiu contra o anti-semitismo: "O mal que destruiu seis milhões de judeus, e outros, nestes campos permanece uma ameaça ainda hoje. (...) Cada geração tem de estar em guarda para impedir que estas coisas jamais se repitam".
A destruição dos judeus coloca uma interrogação sobre o mal nas sociedades "civilizadas". A Europa do século XX julgava ter atingido um patamar de civilização que tornava inconcebível a barbárie do passado. Ora, é nesta mesma Europa que acontece, não só a repetição da barbárie antiga, como a invenção das barbáries modernas.
O racismo nazi rompeu todas as barreiras morais ao fazer dos judeus uma espécie nova, sub-homens, despojados da própria natureza humana. Mas vai para lá do horror. Sublinhou o historiador Raul Hilberg: com o aparelho administrativo moderno, "matar tornou-se uma tarefa cada vez menos difícil (...) O carrasco de hoje pode matar sem tocar nos condenados, sem os ouvir, sem os ver".
Auschwitz lembra precisamente que nada é irreversível. Nos aniversários diz-se sempre "nunca mais". Ora, a Shoah mostra que o "nunca mais" nunca está assegurado.