Mário Soares: 80 anos de política em estado puro

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Mário Soares seguiu os passos do pai na defesa da ética republicana e da democracia André Kosters/Lusa

O homem que foi advogado, oposicionista, preso político, deportado, exilado, deputado, líder da oposição, ministro, primeiro-ministro, Presidente da República e eurodeputado. Isto sempre transbordando uma rara alegria de viver a vida que escolheu viver, uma inabalável autoconfiança e uma indestrutível segurança na ética republicana e na democracia. Momentos de uma vida de alguém que representa a política em estado puro.

A 7 de Dezembro de 1924 nasce, em Lisboa, Mário Alberto Nobre Lopes Soares, filho de Elisa Nobre e João Soares, ex-padre, pedagogo, político republicano e antifascista. Mário Soares seguirá os passos do pai na defesa da ética republicana e da democracia, mas licenciar-se-á em Ciências Histórico-Filosóficas e depois em Direito na Universidade de Lisboa.

É já na Universidade que adere ao PCP e é como responsável pelas juventudes comunistas que dirige as manifestações de júbilo pelo fim da II Guerra Mundial e, depois, participa na fundação do MUD-Juvenil, que representa em 1946 na Comissão Central do Movimento de Unidade Democrática, presidida por Mário Azevedo Gomes. É, aliás, nessa condição que é preso pela PIDE, nesse ano, pela primeira vez. Em 1949, volta a ser preso, pela terceira vez, quando é secretário da candidatura a Presidente da República do General Norton de Matos. O rompimento com o general maçon surge quando este descobre que Mário Soares é o "agente" do PCP na sua candidatura. Casa em Fevereiro de 1949, na prisão do Aljube, com Maria Barroso.

Francisco Ramos da Costa, Manuel Tito de Morais e Mário Soares, em Genebra, fundam a Acção Socialista Portuguesa, em Abril de 1964. É a opção claramente social-democrata e o embrião do que virá a ser o PS uma década depois. No currículo, Mário Soares tinha já, desde que rompera com o PCP, em 1951, a Resistência Republicana e Socialista, a campanha eleitoral de Humberto Delgado, em 1958 - de cuja família será advogado, após o assassinato do general pela PIDE, em 1965 -, a Revolta da Sé, em 1959, o Programa para a Democratização da República, em 1961.

Depois de diversas prisões e sem conseguir domesticar a determinação férrea e a coragem imensa de Mário Soares, a ditadura decide deportá-lo. Em Março de 1968, embarca com a mulher, Maria Barroso, e os filhos Isabel e João, para São Tomé e Príncipe, onde ficará até Novembro, quando regressa a Lisboa, já depois de Salazar, no Verão desse ano, ter caído da cadeira em São Pedro do Estoril e ter sido substituído por Marcello Caetano.

Nas eleições para a Assembleia Nacional em Outubro de 1969, pela primeira vez, a oposição concorre separada. Mário Soares está na base da Coligação Eleitoral de Unidade Democrática. A CEUD dá a cara pela oposição antifascista, mas demarca-se também claramente do PCP, organizado na Comissão Democrática Eleitoral (CDE). No ano seguinte, Mário Soares exila-se em Roma e, depois, em Paris, de onde só voltará a Lisboa após a revolução. É no exílio que se desloca a Alemanha Federal, para, em 1973, na cidade termal de Bad Munstereifel, fundar o Partido Socialista, a 19 de Abril de 1973, sob a protecção do SPD de Willy Brandt.

Maria Barroso, Mário Soares e Manuel Tito de Morais, chegam a Lisboa na tarde de 28 de Abril de 1974, depois de, na véspera, apanhar em Paris o Sud-Express, que ficou para a história como o "Comboio da Liberdade". De novo em Portugal, e finalmente em liberdade, Mário Soares assumirá um protagonismo fulcral no processo de democratização da República, não só como líder do PS, mas também como ministro dos Negócios Estrangeiros dos governos provisórios.

A 16 Janeiro 1975, o PS realiza a sua primeira grande mobilização popular. Com a multidão a transbordar pelos jardins envolventes do Pavilhão dos Desportos, o PS afronta o PCP de Álvaro Cunhal e as orientações totalitárias que estavam a ser imprimidas à revolução. É o comício contra a "Unicidade Sindical" e o monopólio da CGTP-Intersindical, que desembocará na fundação da UGT. Vindo directamente do Alvor, onde como ministro dos Negócios Estrangeiros assinará o tratado das independências das colónias, Mário Soares, participa no comício ao lado de Salgado Zenha, o teórico deste combate pela liberdade e pluralismo sindical.

Nas primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte, a 25 de Abril de 1975, o PS conseguira o espectacular resultado de 38 por cento, contra apenas 12,5 do PCP. Ainda antes da divulgação do "Documento dos Nove", do alto da Fonte Luminosa, Mário Soares pede a demissão de Vasco Gonçalves. É a segunda demonstração de força popular do PS e ocorre a 19 de Julho de 1975, em pleno Verão Quente, ao fim da tarde, com a Alameda Dom Afonso Henriques, em Lisboa, feita um mar de gente - 250 mil pessoas dizem as estimativas da época - que acorreu ao chamado do PS, apesar das barreiras organizadas à entrada de Lisboa pelos militantes do PCP.

Nas primeiras eleições legislativas para a Assembleia da República, o PS volta a ganhar com 35 por cento dos votos. A 23 Julho de 1976, Mário Soares é empossado como o primeiro primeiro-ministro de um Governo constitucional pós-25 de Abril. A democratização do país começa a ficar consolidada. O programa de Governo, que previa entre outras medidas o fim da Reforma Agrária, a reestruturação económica e a recuperação de um Estado financeiramente falido, foi apresentado à Assembleia Nacional a 2 Agosto.

Logo na campanha eleitoral de 1976, o PS liderado por Mário Soares apostara na defesa da ideia da adesão plena à Comunidade Económica Europeia. Como primeiro-ministro, Mário Soares formaliza o pedido de adesão a 28 de Março de 1977. Anos depois, e de novo como primeiro-ministro do Governo do Bloco Central - constituído por acordo assinado entre si e Carlos Mota Pinto, líder do PSD, a 4 de Junho de 1983, após a vitória do PS nas legislativas de Abril - Mário Soares assina o Tratado de Adesão de Portugal à CEE, na manhã de 12 de Junho de 1985, nos Claustros do Mosteiro do Jerónimos, em Lisboa. É o último grande acto de Soares como primeiro-ministro do Bloco Central, antes do fim da coligação provocada pela eleição de Cavaco Silva como líder do PSD. O Governo cai, mas a 1 de Janeiro de 1986, Portugal é membro da CEE.

Com a queda do Bloco Central, Mário Soares entrega a missão de encabeçar as listas às legislativas de 1985 a Almeida Santos, que fará campanha pelos "43 por cento" e será derrotado por Cavaco Silva. Mário Soares atira-se, então, à tarefa aparentemente impossível de conseguir ser eleito Presidente da República. Depois de uma primeira volta disputada contra Maria de Lourdes Pintasilgo, Salgado Zenha e Freitas do Amaral, Mário Soares passa à segunda volta e lança-se na conquista de Belém. Um objectivo conseguido como corolário de uma campanha eleitoral ímpar em que o país se divide literalmente e que ficou também marcada pelo facto de Soares ter sido agredido a 14 de Janeiro de 1986, na Marinha Grande, então um bastião do PCP. Apesar da chapada, Mário Soares não desistiu e entrou nos Paços do Concelho naquele dia. Um mês depois entrava em Belém.

Mário Soares foi eleito Presidente da República a 16 Fevereiro de 1986 com uma diferença de votos para Freitas do Amaral tão pequena que chegava para encher o Estádio da Luz. Empossado a 9 de Março, Mário Soares iniciou o primeiro de dois mandatos em que atingiu índices impares de popularidade e teve espaço para deixar campear a extrema empatia que conseguia estabelecer com as populações.

Como cunho da forma muito peculiar como Mário Soares exerceu aquilo a que se convencionou chamar o magistério de influência do Presidente da República, ficaram para a história as Presidências Abertas, remake moderno e democrático das antigas "saídas reais". Entre estas o país ficou marcado pela Presidência Aberta na Área Metropolitana de Lisboa, no início de 1993. Momento único da acção, em que Soares se empenhou em pôr a descoberto as "feridas sociais" escondidas por debaixo do sucesso das autoestradas e do betão do cavaquismo. De novo a península de Setúbal levantou bandeiras negras da fome - que erguera quando ele fora primeiro-ministro - agora para Cavaco e Soares teve o gozo de ser levado ao colo pela população dos municípios que constituíam então a "muralha de aço" do PCP. Este momento ficou conhecido como o início do fim de Cavaco Silva.

O segundo mandato de Mário Soares na Presidência da República caracterizou-se pela oposição sistemática que fez ao Governo de maioria absoluta de Cavaco Silva. Usando os poderes constitucionais como o de veto político, mas sobretudo o "magistério de influência" e a sua rara capacidade de "fazer política", Mário Soares foi até onde pode para fazer frente à direita no poder. O limite foi a organização, já em fase de despedida de Belém, em 1995, do Congresso Portugal que futuro? - uma espécie de balão de ensaio para a conquista do poder socialista por António Guterres.

Fora de Belém, Mário Soares recupera o seu cartão de PS e a militância. Volta a gozar o prazer das ruas em campanha eleitoral - situação em que revelou sempre inigualáveis características comunicacionais - ao liderar a lista do PS ao Parlamento Europeu, em 1999. Mário Soares é de novo engolido pelo povo, como aconteceu no seu regresso à Nazaré, que "salvara do mar" ao mandar construir um molhe décadas antes, quando era primeiro-ministro. Depois de uma campanha marcante, vai para o Parlamento Europeu, onde falha, porém, a eleição para presidente do hemiciclo de Estrasburgo. Mas não abdicando nunca das suas convicções assume a causa da luta contra a invasão do Iraque pelos EUA e o combate aos governos de direita protagonizados por Durão Barroso e Santana Lopes.

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