Vá-vá O que torna este café tão especial?
De símbolo de uma certa inteligência urbana e anti-fascista nos anos de 1960 a ponto de encontro de nomes fundamentais do rock português, duas décadas depois, o mito do café Vá-Vá resistiu ao passar dos tempos. Em plena era da Internet, serve agora de palco a novas tertúlias. Não é como antigamente mas hoje, com o convidado Paulo Portas, promete ter casa cheia
a No início da década de 60 do século passado, havia Salazar, censura e repressão política, um país atrasado e silencioso. Havia estudantes a sonhar com a mudança, artistas ansiando por liberdade, activistas em modo clandestino, cabeças que queriam pensar e bocas que queriam falar. Vinte anos depois, já com o país em liberdade, a todos estes juntava-se uma nova geração de músicos que queriam cantar rock em português. Chega o século XXI. Impõe-se a Internet, generalizam-se os blogs. As pessoas não se encontravam, havia que reavivar as tertúlias de café. Onde? No lugar de sempre, claro. É que, durante todo este tempo, houve sempre o Vá-Vá. O que torna especial este café com nome de futebolista brasileiro? A comida? A localização? A clientela? Talvez a resposta definitiva seja um somatório de todas as hipóteses, mas a terceira ganha primazia. Inaugurado em 1958, o estabelecimento com assinatura do arquitecto e designer Eduardo Anahory, que impôs uma esplanada com vista para as novas avenidas de Lisboa (fica no cruzamento entre as avenidas de Roma e dos EUA), fez a sua fama da presença de gente conhecida e com capacidade de intervenção pública.
O Vá-Vá era o ponto de encontro de intelectuais que simbolizavam uma nova geração urbana e cosmopolita, que se dava mal com o bafio salazarista. Discutia-se política e arte, aos activistas e artistas juntavam-se estudantes universitários em busca de diálogos abertos e ideias novas. Muitas relações amorosas terão começado naquelas mesas, já agora, que a malta era nova e as moças que frequentavam o Vá-Vá ostentavam padrões de comportamento bem mais liberais do que os então vigentes. O realizador João César Monteiro chamou-lhes "Valquírias".
Espaço de liberdade
Rapidamente, o café transformou-se em referência, um símbolo geracional de abertura e modernidade num país amordaçado pelo regime fascista. Corria a década de 60 do século passado.
"Até ao 25 de Abril, o Vá-Vá tinha outra configuração, havia bancos corridos de cabedal, era menos iluminado, mais discreto", recorda Lauro António, realizador de cinema e dinamizador da recente onda de tertúlias onde se reúnem muitos dos que ainda se lembram das jornadas do passado e gente à procura do contacto pessoal que os debates na Internet não proporcionam. Nos anos 60 e 70, a vivência do local foi cativando gente de diversas áreas, criando uma alquimia muito própria.
Lauro António: "Havia o grupo do cinema, do chamado cinema novo, o António Pedro Vasconcelos, o Fernando Lopes, o Paulo Rocha, que morava no prédio do Vá-Vá [e que fez do café cenário para um dos filmes emblemáticos da história do cinema português, Verdes Anos] e vários outros. Tínhamos o grupo dos músicos, o Fernando Tordo, o Paulo de Carvalho, o Carlos Mendes, penso que também o Herman José ia aparecendo, outros de mais idade, muitos jornalistas, o Luís Villas-Boas (do jazz), pintores..."
Uma clientela de luxo. Que, por si só, atraía quem gostava de conversar ou de ouvir conversas interessantes. Livres. Um adjectivo que hoje pode parecer banal, mas que ganhava uma aura preciosa nos tempos em que Portugal vivia na sombra de um regime fechado e totalitário. A fama do Vá-Vá vem daí. Ir ao Vá-Vá era muito mais do que sair, à tarde ou à noite, para beber um café e encontrar os amigos, debater o último filme ou pôr a conversa em dia. Era um roteiro cultural e, tantas vezes, político. Ir ao Vá-Vá era fazer oposição ao regime, quanto mais não fosse pelo simples facto de lá se falar mais ou menos abertamente de coisas que não se podiam murmurar sequer noutros locais.
Porquê ali e não noutro sítio? Vá lá saber-se, mas há pistas. Aquela zona da cidade, correspondente naquele tempo ao que seriam hoje o Lumiar, os Olivais ou Telheiras, áreas menos centrais da capital, albergava muita gente nova, com algum poder de compra e horizontes mais vastos. Gente com ideias novas e hábitos de convívio, que apreciava uma boa tertúlia.
Ao ritmo do rock
Chegou uma nova geração e, com ela, a liberdade adquirida após o 25 de Abril de 1974, outras realidades e novos desafios. A pouco e pouco, estabelecia-se ali uma base do fervilhante movimento que deu origem ao boom do rock português. Entravam os anos 80, o Vá-Vá congregava jovens que viriam a tornar-se famosos.
Zé Pedro, guitarrista dos Xutos & Pontapés, assume que a sua "fase de arrastar a vida nas esplanadas" foi passada no café do cruzamento da avenida de Roma com a avenida dos EUA. "Os pais do João Cabeleira [também guitarrista dos Xutos] é que moravam na zona. Eu ia lá ter com ele e "caíamos" no Vá-Vá. Não foi ali que a banda nasceu (os outros elementos eram de sítios diferentes...), mas na altura passava por lá muita malta da música."
Zé Pedro lembra-se que os Sétima Legião ensaiavam ali perto ("até chegávamos a ouvir os ensaios da esplanada"), os elementos dos Heróis do Mar também marcavam presença. E outros, muitos outros, mais do que a memória do músico consegue reproduzir assim de repente e ainda mais do que o jornalista consegue tomar nota durante o contacto telefónico. Mas eram muitos.
Mais: o Vá-Vá fazia parte do que Zé Pedro classifica como "a rota punk": era ali que a malta se juntava para depois ir aos bares, "as grandes noites loucas passavam sempre por lá". De dia, era ponto garantido de encontro com malta da música. "Pessoal das bandas da zona de Alvalade, ficávamos por ali a ver as miúdas passar, em conversas parvas..." Analisando o que dali resultou, talvez muitas das conversas tivessem, afinal, o seu valor.
E, para o guitarrista dos Xutos, ficou ainda o hábito de se chegar ao balcão e pedir um "excelente" prego do lombo sempre que passa por aqueles lados.
As novas tertúlias
Hoje, estas avenidas estão envelhecidas, as novas gerações acabaram empurradas para fora de Lisboa, multidões suburbanas em redor de um vazio. O Vá-Vá estava entorpecido, os tradicionais clientes suspiravam de saudades, muitos confessavam na blogosfera a sua nostalgia, a saudade dos tempos em que bastava descer à esplanada do Vá-Vá para não se estar sozinho. E então Lauro António, também ele um blogger assumido, teve uma ideia: por que não reavivar as tertúlias do Vá-Vá?
Para ele, era confortável, digamos assim. Morador no prédio onde está instalado o café, este é, na prática, a sua "sala de almoço". "Durante anos, o Vá-Vá funcionou como um mito, as gerações seguintes eram atraídas para lá como que atrás de uma mística", explica o realizador. O magnetismo foi-se perdendo, com o passar dos tempos. Ficava a saudade. Partindo desse sentimento, restava olhar para a frente. "Os tempos são outros, é preciso vivê-los. Curioso como a Internet acaba por potenciar tudo isso. Foi pelos contactos na blogosfera que acabámos por lançar as novas tertúlias."
Se os blogs são a versão moderna das tertúlias, o mercado por excelência da troca livre de ideias, eles são também terrivelmente limitados na promoção do contacto pessoal. Podemos falar com dezenas de pessoas, mas não as vemos, não as olhamos nos olhos. Talvez um dia estes sejam considerados pormenores de saudosista ou o progresso tecnológico arrase também mais essa barreira da distância, mas, por enquanto, ainda há muito quem suspire por conhecer pessoalmente as pessoas com quem se relaciona na Internet.
"Aqui o principal não é o engate, embora também possa acontecer (até é agradável...), o essencial é a actividade cultural", assume Lauro António. Ao longo de vários meses de novas tertúlias, sob o mote "Vá-Vádiando", sucederam-se os convidados ligados ao mundo das artes e da comunicação, os fiéis de sempre foram aparecendo, os curiosos tornaram-se habitués. Não são muitos, são os que cabem.
Sempre a crescer
Na primeira noite, a 22 de Fevereiro, Raul Solnado falou para umas três dezenas de pessoas abrigadas da chuva e (muitas delas) atrasadas porque o Benfica jogava para a Taça UEFA. O ritual manteve-se nos meses seguintes: jantar e conversa. Já em Junho, com Lídia Jorge, houve overbooking e alguns dos mais de 50 tertulianos tiveram mesmo de jantar fora da sala antes de se juntarem à conversa pós-refeição. Seguiu-se Maria do Céu Guerra, a 27 de Junho. O próximo convidado será Paulo Portas, já hoje, dia 25 de Agosto.
As tertúlias não se organizam, acontecem. É uma regra básica. Uma tertúlia é, por definição, o espaço democrático de debate e troca de ideias onde entra quem quer. "No passado, a tertúlia do Vá-Vá era coisa diária. Quando lá ia, sabia quem ia encontrar. Mesmo que falhasse um ou outro, havia sempre o grupo. Não havia agenda, o Vá-Vá era a agenda", assume Lauro António.
Hoje, num espaço reservado a refeições, a participação de espontâneos é fortemente dissuadida pela própria configuração do café/restaurante. Ninguém é afastado da sala, só que a tertúlia faz-se mediante inscrição (e pagamento do jantar no fim). Não foi só o Vá-Vá que mudou...
Mas do Lauro António frequentador nos anos 60 para o Lauro António dinamizador dos anos 2000 a distância não é assim tão grande. Pelo menos é o que nos diz o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa: "Tertúlia - Reunião de familiares e amigos. Agrupamento de amigos ou de pessoas com interesses comuns. Reunião habitual de intelectuais, artistas..." Nem mais.
"As pessoas mudaram os hábitos. Já ninguém vai "para" o café, as pessoas agora vão "ao" café." Entram e saem, não ficam por lá. Fernando Eusébio sabe do que fala. Dos quase 50 anos de história do Vá-Vá (cumprem-se em 2008) ele leva já 22. É um dos sócios-gerentes da casa e não hesita quando se procura uma explicação para a redução de clientela e a mudança de hábitos das pessoas. "As casas aqui são caras, os jovens não lhes chegam. Têm de ir viver para os subúrbios, a cidade vai ficando velha. E os que por aqui vivem já não vêm tanto ao café. Ficam em casa, será a televisão (não querendo dizer mal da televisão), mas muitos nem saem de todo: até encomendam jantar para levar a casa..." O que é, então, feito do mítico Vá-Vá, do ponto de encontro incontornável de cabeças pensantes e espíritos livres? "Muitos ainda cá vêm, a tradição mantém-se. Aparece muita gente conhecida, nós chamamos-lhes "a velha guarda", os que moram por aqui fazem cá refeições, outros entram só para um café." E que argumentos têm para se manterem no roteiro de Lisboa? "Tentamos manter os pratos tradicionais da casa, incluindo o célebre bacalhau à Vavá, inventado pelo futebolista brasileiro que deu nome ao café. É assim uma espécie de bacalhau à minhota", explica Fernando Eusébio, enquanto oferece um biscoito a uma criança que passa ao colo do pai. Sorri: "Temos de investir no futuro!"