Rita Azevedo Gomes Eufico
A Vingança de uma Mulher ou uma resistência que se recusa a morrer. Nos fantasmas e nos papéis de um estúdio de cinema, por baixo do artifício, está uma verdade. A encarnado.A Vingança de uma Mulher ou uma resistência que se recusa a morrer. Nos fantasmas e nos papéis de um estúdio de cinema, por baixo do artifício, está uma verdade. A encarnado.
Aconversa começou com a reclamação de um direito - ao delírio - por parte de quem vê um filme. (Que passa a ser fantasma do lado de cá, e não apenas exclusivo do realizador.) Eis então, e com licença, ao que pode levar o opressivo e simultaneamente catártico encarnado de A Vingança de uma Mulher: a Lágrimas e Suspiros, de Ingmar Bergman. Onde uma mulher morria gritando e se recusava a morrer, continuando a gritar e regressando. A fantasia, a propósito do filme de Rita Azevedo Gomes, começa por ser alimentada de forma cromática. Mas a confirmação é este cinema se recusar a morrer mesmo que, para alguns, o que ali está possa já ter desaparecido. A Vingança de uma Mulher vem dizer: eu quero existir, como Harriet Anderson em Lágrimas e Suspiros.
Rita tem a gentileza de vir em socorro da fantasia. Depois de contar que ao ver os cenários vermelhos na Tóbis, em Lisboa, pensou que alguém pudesse pensar nesse Bergman triunfante de 1972 como uma citação, mas não é, não o foi (assumirá, no entanto, que todo o Bergman a influencia), revela que o argumento chegou a chamar-se Eu fico. Achava o original "algo canalha." Andou anos à procura de uma história e de uma personagem a quem vestir um "fato": a ideia de alguém que decide ficar. Andou 15 anos à procura de uma actriz, pensou em Asia Argento, encontrou Rita Durão. "Porque, de repente, eu decidi ficar". Na vida e no cinema. Andou à procura de actores, de um estúdio e de tempo para "pensar e repensar um texto, ver para que lado é que se pode ir". A heroína de A Vingança de uma Mulher, adaptação de um dos contos de Les Diaboliques (1874), de Jules Amédée Barbey d"Aurevilly (1808 -1889), em que as protagonistas vão até ao fim na sua vingança, "é alguém para quem seria mais fácil matar-se", diz Rita, mas em vez disso é personagem "de enorme resistência" - a personagem desta história "estranha e excessiva" é a duquesa de Sierra-Leonne, que arrasta o corpo e o nome do marido pela prostituição para se vingar do que lhe fizeram ao amante e ao amor, atirados aos cães.
Eu fico. "Não estou a ser nostálgica, mas se calhar há essa vontade de que o cinema não morra. O cinema tal como o vejo: a fixação numa beleza que tem e que parece estar a banalizar-se. Achei que esta história proporcionava essa resistência."
É um revenant. É o cinema português fabricado com o artesanato do estúdio, como o Oliveira de Francisca (1981), onde Rita trabalhou, ou o César Monteiro de Silvestre (1981) ou o José Álvaro de Moraes de O Bobo (1987) ou... A crença de que "aquilo que acontece no meio de todo o papel de estúdio é como as ervas que nascem no meio dos calhaus", porque "a vida às vezes acontece mais no âmago do artifício do que cá fora à chuva", diz a realizadora de O Som da Terra a Tremer (1990), Frágil Como o Mundo (2002) ou Altar (2003). "Já me estava a apetecer entrar por esta cerimónia do postiço: é por debaixo do postiço que se descobre a verdade."
A palavra-chave é cerimónia. A Vingança de uma Mulher progride por antecâmaras que dão acesso a um espaço mental: uma sala encarnada para onde é atraído o dandy, Roberto (Fernando Rodrigues), quando vai atrás da prostituta (Rita Durão). O que lhe acontece, o que leva Roberto do cinismo onde se refugia até ao confronto com o irrecusável, é o que nos acontece a nós espectadores: não apenas uma história que é narrada, mas uma aprendizagem visual, sentimental, existencial através de patamares de naturalismo e artifício; educação e logro, até ao encarnado. Nada de arqueológico; pelo contrário, é experiência, é sensual. Que homem se torna no fim Roberto? Que espectadores nos tornamos?
"No livro e no guião havia tapetes por todo o lado. Mas não quis nada disso. E aconteceu o encarnado. As pessoas ficaram de pé atrás, até porque trabalhar o encarnado é tecnicamente complicado. É o coração, é o sangue, é o Benfica [risos]... Foi intuitivo, não teve a ver com a cabeça." É ali que "explode a representação" de Rita Durão, "em carne viva". Ainda não lhe disse, mas é com a actriz que quer fazer A Portuguesa, a partir de Robert Musil, argumento de Agustina Bessa-Luís. "É uma história, também, dos diabos", conclui a realizadora, que gosta "muito de querer voltar" a filmes, livros e discos (aos 11 anos já ouvia "inesgotavelmente" Haydn, Vivaldi, A Paixão Segundo S João de Bach), que nunca se arrepende de ver um Bergman, que descobriu extasiada Nuvens Flutuantes, de Naruse, que gosta do Malick de Árvore da Vida, de Lynch, de Cronenberg, de Bresson e de Dreyer. "Gosto de encontrar a pessoa que está a fazer o filme. Gosto de filmes e autores que são unos. Gosto quando ali há uma casa de alguém, uma pessoa."
Ver crítica de filme págs. 41 e segs.