O sucateiro que inventou um castelo de rituais

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A casa do suspeito, que o pai, que o visita regularmente, lhe deixou rui gaudêncio

Dominava os mais jovens e os mais frágeis. Tratava bem os sobrinhos, crianças, que com ele partilhavam a casa para onde levava adolescentes rapazes. Previu que o mundo ia acabar. O seu mundo? Está detido por suspeita de três crimes passionais. Por Ana Dias Cordeiro

De olhos postos no ecrã da televisão, ainda perplexas, as pessoas de São Bartolomeu de Galegos, junto ao lugar de Carqueja - onde vivia o suspeito de três homicídios que ontem acabou de ser ouvido no Tribunal de Torres Vedras - desfiam histórias sobre o inventor de mentiras que se intitulava Ghob, Rei dos Gnomos.

Conheciam-no e já há algum tempo sabiam de um percurso feito de episódios estranhos que, juntos, suscitariam suspeitas. Mas parece que estiveram à espera das notícias desta semana, com a detenção do arguido na segunda-feira, para se soltarem em conversas sobre o homem de 42 anos que dizia ter poderes mágicos e que agora é suspeito de ter morto, em 2008, Ivo, de 28 anos, Tânia, de 27, e, já este ano, Joana, de 16. Tudo por paixão e ciúme, acredita a polícia.

Os três jovens - os corpos continuam desaparecidos - deixaram de ser vistos por ali. Porém, ninguém em São Bartolomeu de Galegos, ou Serra do Calvo (onde vivia Ivo) ou Ribafria e Carqueja, parece ter suspeitado de algo suficientemente estranho para alterar as rotinas.

Ivo, dizia-se, tinha emigrado para Espanha. Além disso, o suspeito, sucateiro, era "educado e serviçal". É certo que, por vezes, "não jogava com o baralho todo", mas "sabia apresentar-se" e era "atencioso e prestável".

Dava nas vistas, sobretudo, por andar com rapazes ou quando inventava mentiras, dizem várias pessoas em São Bartolomeu de Galegos. Mas não só. Também por os negócios ligados à empresa de sucatas que o pai lhe deixou suscitarem dúvidas a quem vive por estes lados. E por se dizer que fugia aos impostos - de facto, o seu nome consta da lista de devedores da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos.

Desde 2003, houve pelo menos uma rusga da polícia na casa do agora suspeito de homicídio. Conta-se na terra que ele incendiou o escritório e parte do quintal para destruir vestígios que o comprometeriam com as Finanças. Os vizinhos mais próximos pouco mais têm a dizer deste homem que "levava a sua vida". Há, contudo, quem tenha mais a dizer.

Quando entra no Café O Casalinho, já em Ribafria, no fim da estrada que atravessa Carqueja, concelho da Lourinhã, um familiar que deixou de falar com o suspeito em 2007 confessa que o que ouve nas notícias ainda lhe parece ficção. Para dizer, logo depois, que quando se juntam as peças do puzzle, o pior até parece fazer sentido.

Este homem de 27 anos está em choque, não quer dar o nome, mas vai aos poucos levantando o véu. "Ele dizia que tinha a magia toda para dar a volta a miúdos de 14 anos", conta.

Educado e manipulador

Se, por um lado, dava ares de louco, quando dizia ser filho de Lúcifer e prever que o mundo ia acabar, por outro, parecia levar os seus negócios de forma bem planeada. E há mesmo quem o acuse de arranjar formas de enganar os outros e ficar a dever dinheiro.

É o caso de Benedita Mendes, dona d"O Casalinho. "Não era honesto", acusa. E conta que o sucateiro, na altura em que estava a fazer as obras na casa que o pai lhe tinha deixado, aparecia muitas vezes no café dela, com alguns pedreiros e o Ivo (um dos jovens que acabaria por desaparecer), para ir buscar bebidas, comida e tabaco. Ficou "uma conta de 50 euros por pagar", queixa-se.

O sucateiro, acrescenta, por seu lado, o familiar, metia-se em esquemas e afastava todos quantos pareciam ter maturidade para se proteger.

Pelo que descrevem residentes na aldeia de Ribafria, era costume o suspeito levar jovens para casa. "As pessoas achavam estranha esta juventude que ia para lá. E fazer o quê?", questiona Benedita Mendes. "Foi uma sorte teres saído de lá", diz a dona do café ao familiar do sucateiro. "Ainda não caí em mim", responde este. "Ele enrolava as pessoas com muita pinta, para que acreditassem nele e fizessem tudo o que ele queria."

E fazer o que ele queria era, por exemplo, participar nas festas e nos vídeos colocados no YouTube, em que previa um terramoto para Agosto de 2010 ou o fim do mundo para Dezembro de 2012 e em que fingia ter poderes sobrenaturais, manipulando imagens gravadas, nas quais dava a ilusão de fazer magia.

Tinha uma tendência para decidir tudo à sua maneira e controlar as pessoas. Se sentisse que alguém discordava, ou dava sinais de o largar - num trabalho ou numa relação -, ameaçava. "Tinha aquela coisa do controlo, da perseguição. A mim também tentou controlar-me", continua o familiar. "Mas eu fui-me embora. Ele veio atrás de mim, de carro, mas quando eu o avisei que era melhor para ele deixar-me ir, ele aceitou."

Na casa onde vivia com a irmã mais nova, os dois sobrinhos, de três e seis anos, o companheiro da irmã, e mais um ou dois filhos deste último, o sucateiro organizaria as festas, de que muitas pessoas nas redondezas ouviram falar. Não se metiam na vida do vizinho, nem mesmo com suspeitas de que menores eram para lá levados. Os sobrinhos viviam com ele, até segunda-feira, quando foi detido. "Tratava-os bem", isso garante o mesmo familiar. "Eram para ele como filhos."

Da irmã, mais nova, que se encontrava na casa na quarta-feira e com quem o P2 tentou mas não conseguiu falar, diz-se ainda que perdoava tudo ao irmão que sobre ela teria um forte ascendente.

Duas mulheres e uma filha

O sucateiro chegou a casar-se com uma rapariga de uma terra ali ao lado, mas ela deixou-o. Mais tarde envolveu-se com uma rapariga da casa em frente à sua. Os pais dela tinham emigrado para França e ela encontrou, junto dele, algum aconchego.

Acabou por engravidar e ele perfilhou a criança, conta Benedita Mendes. "Quando a bebé nasceu, foi buscá-la ao hospital nas Caldas da Rainha e passou aqui com a mãe da menina para me mostrar a bebé. Estava todo contente e dizia para eu ver como a menina era parecida com ele, que bastava olhar para o seu dedo mindinho."

Além da irmã mais nova, com quem vivia na casa, e do irmão Luís, que trabalha na construção civil, e com quem se terá incompatibilizado, tem outro irmão que emigrou para a Alemanha. A mãe morreu há 15 anos. O pai terá então deixado Carqueja, vivendo desde então em Setúbal. Visita o filho regularmente. E, para além de "um grande negócio" de sucateiro, deixou-lhe a casa que o suspeito renovou para transformar numa espécie de castelo, como uma pequena fortaleza de uma organização secreta, lugar de rituais.

As estátuas religiosas ou clássicas erguem-se do lado de fora, nos andares de baixo e nas varandas. Vários estilos misturam-se. Há uma fachada revestida de pedras e janelas recortadas ao estilo manuelino. No exíguo jardim da frente, uma fonte sobre quatro cavalos de pedra, e mais estátuas. Mas há também gnomos dos Sete Anões de uma Branca de Neve ausente e portões em ferro forjado.

Na fachada e no jardim, nada parece deixado ao acaso. Cada adorno parece ter um fim, para um qualquer ritual, ou ser símbolo de uma crença criada na parte de dentro da casa, longe do olhar de quem passa.

Quem esteve dentro deste "castelo" fala das câmaras de filmar (que também se vêem de fora), dos ecrãs gigantes, das paredes revestidas de azulejos e das salas apetrechadas de vitrinas com bibelôs. E também das estátuas - mais estátuas - e das cabeças de animais. Alguém terá contado a Albertina Honório, do Café A Curva, de São Bartolomeu de Galegos: "Aquilo arrepia quem entra lá dentro."

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