O restauro de um Leonardo é polémica garantida?
O Louvre decidiu restaurar uma pintura do mestre da Renascença e a controvérsia instalou-se, agora que os trabalhos estão praticamente concluídos. Importantes especialistas demitiram-se e o seu protesto chegou aos jornais. "O tempo passa por nós e pelas obras. Não acredito que se deva tentar fingir que ele não passou. Porque será que há tantos restauradores e directores de museus a fazê-lo?", pergunta um dos mais críticos
Restaurar uma obra de arte com 500 anos é tarefa de grande responsabilidade. Geralmente envolve uma equipa rigorosa e exige anos de estudo antes que os técnicos possam aproximar-se de uma tela com solventes e pincéis. Mas quando a obra em causa é uma pintura de Leonardo da Vinci e pertence ao Museu do Louvre, em Paris, é preciso acrescentar à "responsabilidade" a palavra "risco" e esclarecer que o trabalho da "equipa rigorosa" foi acompanhado por uma comissão científica composta por 20 peritos internacionais, muitos dos quais conservadores dos museus mais importantes do mundo e nomes de referência do restauro e da investigação relacionados com a vida e a obra do mestre da Renascença. Se dois desses especialistas se demitem por causa das opções de restauro, aquilo que era à partida uma intervenção técnica capaz de instalar o debate entre os conhecedores, transforma-se numa polémica em episódios nas páginas dos jornais.
A Virgem e o Menino com Santa Ana (c. 1508), obra-prima inacabada e tardia que o museu parisiense diz ser a segunda mais importante da sua colecção de Leonardos - a primeira é, como seria de esperar, Mona Lisa -, está há meses envolta em controvérsia por causa de um complexo restauro de que se fala desde 2003, ano em que Vincent Pomarède assumiu funções como director de pintura do Louvre.
As cisões na comissão científica tornaram-se públicas em Outubro, quando a saída de Jean-Pierre Cuzin, ex-superintendente do departamento de pintura, foi noticiada no Journal des Arts, uma publicação francesa especializada. Nessa altura, já nos bastidores corriam rumores de que os peritos andavam a discutir a utilização de solventes e a remoção de camadas de verniz e de retoques. O Louvre ficou ainda mais embaraçado a 21 de Dezembro, quando se ficou a saber através da revista La Tribune de L"Art e do jornal The Guardian que a grande especialista Ségolène Bergeon Langle, antiga directora do instituto de conservação e restauro dos museus franceses e autora de inúmeros títulos de referência neste domínio, também se afastara, em desacordo com várias opções tomadas pelo Louvre durante a intervenção na pintura, ancoradas na opinião de alguns dos 20 consultores.
Em causa estariam, segundo fontes anónimas do museu (os peritos e técnicos envolvidos terão assinado um acordo de confidencialidade, segundo o diário norte-americano The New York Times), os solventes usados para remover a camada de verniz que cobria a pintura e repintes pontuais e, sobretudo, o azul luminoso que o vestido da Virgem apresentava pós-restauro. Bergeon Langle e Cuzin teriam defendido, escreveu o britânico The Guardian, que o Louvre levara demasiado longe a limpeza da obra, afectando de forma irreversível o efeito sfumato - técnica que é a imagem de marca do mestre toscano e que permite, explicam os compêndios de História de Arte, fazer transições praticamente imperceptíveis entre cores e tons, através de um sombreado subtil - neste caso, dos rostos da Virgem e da sua mãe, Santa Ana.
Bergeon Langle garantiu depois à Tribune de L"Art que nunca pretendera defender que a obra estava demasiado limpa e acusou o Guardian de ter optado por um título "sensacionalista". As divergências, assegurou, eram de ordem estética e não técnica. "A cada passo entreguei relatórios detalhados, por escrito, para explicar os meus pontos de vista, os meus desejos, as minhas preocupações" relativamente ao restauro, disse ao New York Times. "Há muito tempo que tomara a decisão de sair [da comissão de peritos] se alguns limites fossem ultrapassados", acrescentou num texto publicado na edição de terça-feira a autora de Comprendre, Sauver, Restaurer, que já antes defendera que só tinha obrigação de justificar a sua demissão ao director do Louvre, Henri Loyrette. "Há aqui uma componente ética", disse Bergeon Langle ao diário americano. "Apesar de termos feito grandes progressos ao nível das nossas competências, precisamos de ser modestos. Estão ainda por descobrir materiais melhores, mais controláveis. Temos de deixar algum trabalho para as próximas gerações."
Preocupações infundadas
Não é a primeira vez que o Louvre planeia o restauro de A Virgem e o Menino com Santa Ana. O projecto foi posto na mesa há 17 anos, mas, por considerar que não era urgente e por temer que a tecnologia não estivesse ainda à altura do mestre, a direcção do museu abandonou-o. Loyrette, que se tornou director em 2001, e Pomarède, que passou a conduzir o departamento de pintura dois anos depois, foram de outra opinião.O conservador-chefe de pintura tem defendido com entusiasmo o restauro da obra, argumentando que havia pormenores do vestido da Virgem e dos rostos de Maria e de Santa Ana que corriam o risco de se perder para sempre e que a decisão de avançar para a intervenção só foi tomada depois de muitos exames complexos e demorados para avaliar o estado da pintura e de umas jornadas de estudo dedicadas a Leonardo (1452-1519), em 2009, que reuniram os maiores especialistas mundiais. "Raras vezes um restauro foi tão preparado e discutido", disse Pomarède ao Journal des Arts, acrescentando que as preocupações dos investigadores eram infundadas e o restauro urgente. O P2 tentou contactá-lo, sem sucesso.
Michael Daley esteve mais disponível. Artista e autor, com James Beck, do livro Art Restoration: The Culture, the Business and the Scandal (John Murray, 1993), sabia há já muitos meses da tensão entre os peritos da comissão de acompanhamento do restauro. Daley, que dirige a ArtWatch UK, o braço britânico da ArtWatch International, um grupo de pressão fundado por Beck (1930-2007), professor de pintura e escultura da renascença italiana da Universidade de Columbia, Nova Iorque, para denunciar e combater práticas irresponsáveis no mundo da arte, não tem dúvidas em afirmar que este Leonardo é mais um exemplo paradigmático das políticas "radicais" de conservação e restauro de alguns dos principais museus.
"Estas controvérsias são comuns e inevitáveis, dados os métodos invasivos usados nos restauros contemporâneos", diz Daley ao P2. "O que é extremamente raro, e muito significativo, é que possamos assistir a uma manifestação pública das divisões que o comissariado de obras de arte históricas provoca no mundo dos museus."
Para o director deste watchdog, é o Louvre que deve assumir todas as responsabilidades neste processo, mesmo que Daley tenha recebido informações que garantem ter sido dois dos especialistas britânicos da comissão científica - Luke Syson (antigo conservador de pintura italiana da National Gallery, actualmente no Metropolitan de Nova Iorque) e Larry Keith (director do departamento de pintura da mesma instituição londrina, onde a 5 de Fevereiro termina uma grande exposição dedicada aos anos em que Leonardo trabalhou na corte de Milão) - a insistir numa intervenção mais profunda.
Inicialmente, e respeitando a tradição de "sensatez" no restauro, o museu parisiense previra apenas a remoção de manchas, mas sob a supervisão da conservadora Cinzia Pasquali tornou-se mais "ambicioso", escreveu terça-feira o New York Times.
"Já criticámos muitas vezes a National Gallery pelas suas políticas de limpeza, e os conservadores do Louvre fizeram o mesmo durante muitos anos", lembrou Daley, garantindo que o museu de Paris, o mais visitado do mundo (8,8 milhões de pessoas no ano passado), era habitualmente muito cuidadoso e contido nos seus restauros: "Infelizmente essa tradição tem estado sob pressão nos últimos anos por causa da moda internacional do noticiável, dos restauros novelescos que podem reforçar uma carreira e que decorrem de limpezas radicais... O Louvre tem-se afastado da sua posição sensata."
Para Mercês Lorena, há 30 anos conservadora e restauradora de pintura, hoje a trabalhar no Instituto dos Museus e da Conservação, mexer numa obra com 500 anos de um artista com a importância e a popularidade de Leonardo da Vinci é ter em mãos uma polémica em potência. As divergências e tensões entre especialistas fazem, aliás, parte do dia-a-dia do conservador-restaurador porque o seu trabalho envolve equipas pluridisciplinares, compostas por peritos que tendem a valorizar aspectos diferentes na hora de decidir.
"Mesmo dentro dos profissionais de conservação e restauro, os especialistas dividem-se na escolha dos critérios de intervenção", explica Lorena, técnica que restaurou, por exemplo, as pinturas flamengas do importante Políptico da Vida da Virgem, do Museu de Évora. "Há os que defendem sempre uma intervenção minimalista e há os que optam, quando se justifica, por métodos mais intrusivos. Evidentemente que, com tanto conhecimento e tão diversificado, é difícil agradar a todos. Não quero com isto dizer que uns são melhores que outros. Tudo depende do estado de conservação da obra em causa e do que se pretende", acrescenta, garantindo que nunca há uma verdade única e absoluta.
É precisamente o objectivo da intervenção e a urgência em concluí-la a tempo da exposição de Março em que deverá ser a principal estrela que leva o director da ArtWatch UK a defender que os museus intervêm em demasia nas suas colecções, na maioria das vezes: "Isso acontece porque os restauros servem muitos interesses questionáveis. Agora é preciso perceber como estas demissões vão afectar a situação e a filosofia de restauro em si."
Uma coisa é certa, defende Daley, aqueles que olhavam com reserva para os críticos das políticas de conservação "imprudentes" vão chegar à conclusão de que eles não são "Cassandras profissionais", diz numa referência à figura mitológica que tinha o dom da profecia e em quem, devido a uma maldição de Apolo, ninguém acreditava: "Se somos Cassandras, acho que posso dizer que, graças à corajosa oposição pública de Bergeon Langle e Cuzin, a maldição de Apolo que pendia sobre nós está a ser levantada."
Para Daley, a pintura de Leonardo é uma obra-prima porque combina um "grupo complexo e íntimo de figuras" com "poderosas expressões de devoção e ternura" como nunca antes tinha sido feito. "Esta obra chegou até nós como um milagre da arte - nela toda e qualquer relação é construída com base num acabamento preciso e subtil. Esta relação entre precisão e subtileza nunca devia ter sido posta em risco pelo tipo de restauro radical que já se provou ser desastroso em tantas outras ocasiões."
O artista refere-se, sobretudo, ao restauro da Capela Sistina no Vaticano - obra de outro mestre incontestado, Miguel Ângelo (1475-1512) - coordenado por Gianluigi Colalucci entre 1980 e 1994, e ao d" A Última Ceia, fresco de Leonardo, uma intervenção que terminou em 1999 depois de 21 anos de trabalhos e cujo resultado foi muitíssimo contestado pelos peritos, em particular por James Beck. Em causa estavam, uma vez mais, as cores brilhantes e luminosas que ambos exibiam depois do restauro. "É claro que há casos em que a conservação é urgente, mas, com esse pretexto, já se fizeram muitos disparates. Basta lembrar o exemplo do tecto da Sistina e os especialistas que diziam que estava a cair por causa das camadas sucessivas de verniz que lhe tinham posto os restauradores ao longo dos séculos e depois descobriram que, afinal, o peso era de uma espécie de goma que o próprio Miguel Ângelo tinha aplicado. O tempo passa por nós e pelas obras. O tempo faz parte delas. Não acredito que se deva tentar escondê-lo ou fingir que ele não passou. Porque será que há tantos restauradores e directores de museus a fazê-lo?"