O melhor Mali está em Sines
Nos próximos dias, o Festival Músicas do Mundo, em Sines, dá-nos a ouvir duas das mais notáveis vozes da música maliana: Oumou Sangaré e Fatoumata Diawara, duas mulheres de combate num país em que a música sempre foi assunto para homens.
Oumou, quero ser como tu".
Foi em Paris, há alguns anos, que Fatoumata Diawara o disse a Oumou Sangaré. Costumavam passear as duas durante horas, Fatoumata a pedir conselhos a Oumou e a manifestar-lhe a sua profunda admiração. Percebe-se porquê. Quando Oumou Sangaré começou a cantar publicamente, a música maliana era ainda uma actividade quase exclusivamente masculina. Às mulheres, como acontecia com a mãe de Oumou, Aminata Diakité, era permitido apenas o canto em contextos sociais, festas como casamentos e baptizados, mas não com um propósito artístico. E foi com Oumou Sangaré, há 22 anos, que isso mudou. A voz de Oumou, mais do que encantar pela sua suprema elegância inscrita na tradição musical do Mali, foi como um archote apontado para iluminar caminhos nunca antes imaginados. Por isso mesmo, Moussoulou (Mulheres), esse primeiro disco, era já um manifesto pela emancipação feminina, pela denúncia da poligamia, tida como prática incontestável entre os homens, e pelo fim dos casamentos arranjados de jovens menores prometidas contra a sua vontade.
Hoje, garante Oumou, a situação alterou-se e estes casamentos tornaram-se menos frequentes, tendo surgido organizações que se dedicam precisamente a auxiliar raparigas na recusa das pressões familiares e sociais que pretendem forçá-las a esses costumes. No entanto, a firme posição pública da cantora perante a questão nunca lhe trouxe dissabores, dada a raiz histórica do Mali. "É um país da palavra", clarifica. "A palavra na música é muito importante no Mali e estamos habituados a isso". E a palavra, neste caso, serviu não enquanto tentativa de produzir mudanças na sociedade. Oumou não tem essa pretensão. Prefere chamar-lhe "uma boa maneira de fazer educação: com alegria, sem pressões, com boa música, dança, mas também com as mensagens fortes que estão sempre lá".
Moussoulou tornou-se um sucesso tal que Oumou rapidamente expandiu a sua área de actuação, tornando-se empresária, investindo em hotéis e no comércio automóvel, passando uma mensagem clara: aquilo que a sua música cantava, ela praticava em toda a sua extensão. De certa forma, conseguia de forma menos directa aquilo que as vozes prudentes (iguais em todo o lado) lhe tinham aconselhado: "Não, não vás para a música", como quem lhe dizia "vai para a escola, tens de ser ministra". Oumou tinha somente 21 anos e tornava-se uma estrela nacional. E não precisava de prestar contas a ninguém.
"Foi uma grande surpresa", diz-nos, rindo-se do sucesso desse primeiro álbum. "Tomei muita coragem, avancei e bum!". Com Moussoulou veio então dinheiro suficiente para ajudar a mãe e construir a sua primeira casa. O álbum seria lançado em 1990 pela holandesa World Circuit, depois de Sangaré ter sido recomendada à editora por Ali Farka Touré, o deus da música no Mali. O mundo já começara, lentamente, a contactar com a imensa riqueza musical do país através de Ali Farka, mas se para o exterior a descoberta seria sobretudo a de uma cantora magnífica a que se devia dedicar alguma atenção, para dentro era uma afirmação que deixaria lastro. "Ela foi a primeira mulher a ousar fazê-lo", conta-nos Fatoumata Diawara. "Durante muitos anos foi quase a única. Podemos ter muitas cantoras, mas nem toda a gente consegue sê-lo à sua maneira".
Aliás, para poder arriscar o seu próprio trajecto, Fatoumata teve, na verdade, de ludibriar as autoridades locais. Em 2002, tinha 19 anos quando foi convidada para trabalhar com a companhia teatral francesa Royale de Luxe; era ainda uma mulher solteira, facto que a obrigava a necessitar de autorização parental para se ausentar do país. A sua desobediência desencadeou mesmo uma perseguição policial que pretendia impedir que voasse de Bamako para Paris. O certo é que conseguiu escapar e, aos poucos, o contacto com Oumou e o exemplo desafiador de outra mulher de armas maliana, Rokia Traoré - que pegara na guitarra para acompanhar a sua voz quando as regras lhe ordenavam o contrário -, mais a presença assídua em concertos na capital francesa onde via mulheres a tocarem (bem) piano ou guitarra, fizeram-na depositar esperança nas palavras que Oumou lhe devolveu certa noite, procurando garantir a frutificação do seu trabalho: "Precisamos de alguém que continue. Tu consegues".
Mas o incentivo de Oumou foi o culminar de um processo de transmissão do saber a que Fatoumata decidiu entregar-se. "Ela é muito importante para o meu país e, como ela era o meu exemplo, decidi segui-la durante seis meses e aprender com ela. Foi como uma escola", conta-nos. "Aprendi imenso, caminhávamos todas as noites e falávamos muito". Até que, como qualquer discípula, Fatoumata anunciou o corte do cordão umbilical: "OK, agora estou pronta a seguir o meu caminho".
Para consumar verdadeiramente a sua autonomia, Fatoumata aplicou-se a aprender guitarra antes de dar a ouvir a sua voz. "Foi também para me libertar, para ser independente, para fazer os poemas e criar a música com os meus meios, sobre as minhas pequenas experiências. Só depois poderia acrescentar outros elementos porque, de início, gosto de perceber até onde posso ir com a música trabalhando sozinha". Foi desse processo de aprendizagem e auto-descoberta que nasceu Fatou, o brilhante disco com que Diawara se estreou em 2011. Nesse momento, a cantora fechava um triângulo das três grandes vozes femininas do Mali: Oumou, ao centro, como ponto de partida para todas quantas vieram depois, ligada a uma linguagem mais tradicional; Rokia Traoré em seguida, adoptando uma linguagem mais moderna, namorando sem vergonha com pop e rock; Fatoumata, depois, ponto intermédio entre as outras duas, não se revelando (por enquanto) tão aventureira quanto Rokia em nome próprio e não sendo também tão fiel à tradição quanto Oumou. "Sou jovem no meu tipo de escrita", posiciona-se Fatoumata. "As novas gerações malianas gostam disso. E precisamos desta música mais pop, mais directa, para nos desenvolvermos".
Damon e Béla
O magnetismo das vozes de Oumou Sangaré e Fatoumata Diawara conquistou rapidamente adeptos em todo o mundo ocidental e não tardaram a surgir convites para colaborações e participações em projectos pontuais. Damon Albarn, o homem dos Blur e de um sem-fim de grupos mais ou menos efémeros, sempre de ouvidos atentos sobretudo no que toca a África, contactou a World Circuit antes sequer de sair Fatou, manifestando o seu interesse em trabalhar com Fatoumata. Os resultados foram imediatos: a maliana participou no projecto de trocas culturais Africa Express e dá voz a um par de temas do álbum do colectivo de "funk espacial africano" Rocket Juice and the Moon, tendo actuado também com Albarn, Flea (Red Hot Chili Peppers) e Tony Allen (o homem que deu a Fela Kuti o padrão rítmico do afro beat) por várias vezes. Mas o vocalista dos Blur chamou-a também para o álbum do mestre da soul Bobby Womack, que recentemente produziu, reforçando a sua aposta em Fatoumata. Nos Rocket Juice, a maliana canta mesmo em wassoulou (dialecto da região com o mesmo nome, no Sul do país) letras sobre "amor, encontros, partilhas e descobertas", debruçando-se menos sobre a reflexão acerca da "condição da mulher africana" que herdou de Oumou. "Adoro mudar de foco, faz-me bem à cabeça".Em Sines, contudo, onde estará na quinta-feira, Fatoumata apresentará o seu disco em nome próprio. Ao contrário de Oumou Sangaré, que chega já amanhã na companhia do banjo do norte-americano Béla Fleck, apresentando uma parceria que vem sido explorada desde 2009. Na altura, depois de um concerto da cantora africana em Brooklyn, Fleck, nome ligado a um bluegrass arraçado de jazz, convidou-a a participar num álbum em que se colocava lado a lado com músicos africanos, Throw Down Your Heart - Africa Sessions. Convencido de que a origem do seu instrumento estará em África, Fleck fez-se à estrada e gravou com músicos como Toumani Diabaté, Madou Sanogo, Baba Maal, Bassekou Kouyaté ou D"Gary. E um dia, claro, depois de andar pelo Uganda, pela Tanzânia e pela África do Sul, apareceu à porta de Oumou.
O encontro entre os dois correu tão bem que Fleck voltou à carga com um conceito tão simples que é perfeito: Fleck toca, Oumou canta. Deste encontro surge uma música nova, a meio caminho entre a fusão de um e a tradição da outra. A completar a abordagem, aliás, encontramos uma secção rítmica inusitada, formada pelo baixo do senegalês Alioune Wade e pela bateria do ex-Living Colour Will Calhoun. "Há magia no palco porque são culturas diferentes, misturadas por nós", descreve Oumou. Mas, mesmo sem misturas, a magia sobe em qualquer palco onde as duas se apresentem. Tanto Oumou Sangaré como Fatoumata Diawara têm-na em doses tão generosas quanto pouco explicáveis.