O holandês que ensina consumidores de droga a lutar pelos seus direitos
Theo van Dam, precursor da redução de danos que já ajudou a criar mais de quatro dezenas de Associações de Defesa dos Consumidores de Drogas por toda a Europa, esteve no Porto a dar dicas a um grupo de toxicodependentes portugueses. A associação talvez se chame GNR
a "Vocês disseram que gostariam de fazer redução de riscos em cooperação com as equipas de rua. Se calhar, podem traduzir a linguagem de rua para os técnicos." E vice-versa. Theo van Dam mostra um cartão branco de alinhadas letras vermelhas com conselhos para evitar overdose. "Podiam fazer uma coisa destas." Um rapaz toma a palavra. Já arranjou uma tipografia disposta a imprimir "de borla". Palmas. "Isso mostra que colocaste energia nisto. Se agirem de forma positiva, as pessoas podem estar abertas às vossas ideias." Segunda-feira, Theo revelava-se "céptico", terça transpirava confiança. "Eles já estão a preparar coisas." "Eles" são os toxicodependentes que assistiram à acção de formação centrada em estratégias para criar uma associação de defesa dos consumidores de drogas. Denunciando algum sentido de humor, até já falam num hipotético nome: GNR (Grupo Não Risco).
O "padrinho" foi escolhido a dedo. Mesmo quando era consumidor, Theo "lutava" pelos seus direitos. Agora, que tem 53 anos, ostenta um extenso currículo de incentivo aos toxicodependentes a assumirem as suas próprias lutas. Membro da velha Junkiebond (a associação holandesa de utilizadores de drogas que despoletou em 1984 o primeiro programa de troca de seringas do mundo), ajudou a fundar mais de 40 Associações de Defesa dos Consumidores de Drogas por toda a Europa. E esta semana cá está a dar formação a utilizadores e a técnicos, numa acção promovida pela Agência Piaget para o Desenvolvimento (APDES), na Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação da Universidade do Porto.
Como poupar as veias
O P2 assistiu à segunda sessão com os consumidores. Ouviu discutir e aprovar passos concretos para constituir a primeira associação do género em Portugal. Como arranjar os 150 euros necessários para a formalizar? Onde reunir? Como garantir o transporte? Por onde começar? Para cada questão, uma resposta assente no apoio prestado pelos técnicos que trabalham presentes nos locais de consumo (da APDES, da Filos, da Gaf, do Espaço Pessoa, da Norte Vida).
"Eles percebem que têm falta de informação", comenta o fundador da Landelijk Sternpunt Druggebruikers (associação de defesa dos direitos dos consumidores, criada na Holanda em 1995, fomenta diversos programas de redução de danos). "Muitos materiais oficiais parecem bonitos e profissionais, mas não estão escritos numa linguagem adequada."
A longa experiência de Theo fá-lo coleccionar estórias. Como a de um treino feito, há uns anos, em Amesterdão. A enfermeira dizia para se injectarem no sentido do coração, para pouparem as veias. E os toxicodependentes "pareciam não estar a ouvir". Theo perguntou-lhes: "Ficam pedrados assim? Se se injectam na direcção errada, o sangue sai e a heroína entra, o efeito é menor." Decorridos uns meses, numa estação de comboios, alguém lhe tocou no ombro - "Theo, ainda me injecto na direcção correcta e é muito bom!" Os braços estavam melhores. "Estava a tomar conta das veias, não pelas veias, mas pelo seu hábito."
Theo fica "contente com coisas destas". O efeito pretendido é igual, apenas a linguagem é diferente. Acredita que, se a redução de danos usar a linguagem dos consumidores, "haverá mais gente a prestar atenção". A mensagem propagar-se-á como "uma conversa de velhas".
Há exemplos práticos ensaiados lá fora sobre o que pode ser feito cá "com pouco dinheiro". Frente a uma meia de leite que se vai tornando fria, Theo tira um baralho de cartas belga. Cada carta contém uma mensagem. Por exemplo: se consumires heroína depressa, corres mais riscos de overdose. "Mesmo que as pessoas não leiam sempre, vêem e interiorizam alguma coisa."
Muitos consumidores gostam de jogar às cartas. Na Holanda, há um baralho de cartas com fotografias de consumidores mais velhos, que usam drogas há muitos anos. Dois exemplos: uma carta com uma mulher a anunciar - "Uso preservativo com o meu namorado e funciona"; outra com um homem a assegurar - "Nunca partilho seringas." "Todos sabem que ele partilha. Jogam, vêem a cara dele, riem-se e dizem: "Lá está ele outra vez!""
Ao reconhecer o rosto daquele homem, os jogadores falam sobre o seu comportamento. E, ao fazê-lo, estão a falar sobre uso seguro de drogas. O jogo pode ser "divertido". Mais ainda "se as caras tiverem a imagem de consumidores conhecidos". Na Holanda, muitos conhecem-se da prisão, das salas de consumo assistido, das comunidades terapêuticas, das ruas.
"Ainda estás vivo?"
Que deseja aquela dúzia de homens que parece beber cada palavra pronunciada por Theo e logo traduzida por um ou outro técnico? "Queremos lutar por um mundo melhor. Quem não conseguir deixar de consumir, consuma de uma forma segura", exprime Vasco. "Queremos esclarecer o público, combater os preconceitos que têm sobre os toxicodependentes", acrescenta Luís. "Dizer que um drogado é uma pessoa normal", volta Vasco. Luís pega na frase: "Para a maior parte das pessoas os consumidores são delinquentes, marginais. Todos. Estou a escrever um livrinho que se chama: "O que vocês não sabem"."
Compromisso assumido. Os toxicodependentes que esta semana se entusiasmaram com a ideia de criar uma associação não querem só fazer cartões com informação útil numa linguagem de rua. Ambicionam fazer mais, até uma revista. Que tal pedir ajuda aos alunos do curso de jornalismo da Universidade do Porto?, sugere Theo, mostrando a Mainline, um revista holandesa feita por jornalistas credenciados para consumidores de droga.
A Mainline traz testemunhos. Anúncios de consumidores que procuram outros consumidores: "Conhecemo-nos há sete anos na cadeia, divertimo-nos, ainda estás vivo?" Um motivo, como qualquer outro, para ler a revista, que dá muita informação prática. Já houve uma série sobre formas criativas, não criminosas, de angariar fundos para o consumo. "Um indivíduo contava que ia para o aeroporto pedir dinheiro aos turistas que estavam a sair da Holanda para o Japão e para os EUA com moedas que não iam gastar e não podiam trocar." Para Theo, este partilha de informação também é redução de danos. "A redução de danos é tão importante para os utilizadores como para o resto da sociedade".