Já conhecemos os nomes dos que morrem no quadro de Goya
Passaram 200 anos sobre o "dia de cólera" em que os madrilenos saíram para as ruas, com pedras e navalhas na mão, para lutar contra as tropas de Napoleão. Goya imortalizou-os no quadro sobre os fuzilamentos na montanha de Príncipe Pio. Um investigador encontrou nos arquivos os nomes e histórias de muitas das vítimas dessa madrugada. Por Alexandra Prado Coelho
a A imagem que nos fica na memória é a daquele homem de calças claras, camisa branca, peito aberto para receber as balas do pelotão de fuzilamento. As outras personagens do quadro Os fuzilamentos de 3 de Maio, do pintor espanhol Francisco Goya, ficam em segundo plano perante essa mancha de luz e só num segundo momento nos apercebemos dos seus rostos apavorados. Sabe-se que estes foram os homens que resistiram às tropas de Napoleão em Madrid a 2 de Maio de 1808 - faz agora 200 anos - e que foram fuzilados, no dia seguinte, na montanha de Príncipe Pio. Até agora sabia-se pouco mais.Mas o historiador espanhol Luís Miguel Aparisi fez uma investigação exaustiva e acaba de lançar um livro, El cementerio de la Florida (editado pelo Instituto de Estúdios Madrileños), no qual identifica grande parte dos que foram massacrados naquela madrugada pelos soldados franceses. A partir de agora são mais os heróis do quadro de Goya que deixam de ser anónimos - apesar de ser impossível fazer corresponder os nomes a cada um dos retratados.
Foram 43 os revoltosos que os franceses arrastaram para o cimo do monte para uma morte que servisse de exemplo ao resto da população da cidade. Desses, segundo o diário El Mundo, foram já identificados 29, dez dos quais nos últimos meses por Aparisi (o El País faz umas contas ligeiramente diferentes, afirmando que um dos que tinha sido anteriormente identificado foi retirado por haver dúvidas, o que deixaria como identificados 28). "Vai ser quase impossível identificar os restantes", explicou Aparisi ao El Mundo, "porque nos arquivos confundem-se os lugares de enterro de muitos dos fuzilados nessa noite em Madrid".
O padre e os operários
Aqueles 43 só foram sepultados ao fim de nove dias, precisamente para garantir que todos os madrilenos testemunhavam o que lhes acontecera, por ordem de Murat, comandante do exército francês e cunhado de Napoleão. Foi só a 12 de Maio que, por iniciativa de um sacerdote que era também tio de uma das vítimas, os corpos foram, finalmente, transportados para o cemitério da Florida, onde as suas cinzas permanecem e onde, partir de agora, uma lápide recorda os nomes dos 29 identificados.
Era um grupo muito heterogéneo, de homens que não se conheciam, mas que estavam unidos na revolta contra o ocupante. Lá estava, por exemplo, o padre Francisco Gallego - poderá ser este a única figura identificável no quadro de Goya, logo em primeiro plano, com as costas curvadas e os dedos entrelaçados, porque o cabelo rapado no cimo da cabeça e a roupa indicam que se trata de um padre. Gallego, contou Aparisi ao El Mundo, foi o único a ser escolhido pelo próprio Murat. Tinha combatido na zona do Palácio Real e foi preso "de armas na mão". Rezam as crónicas que Murat terá dito, para justificar tê-lo escolhido para enfrentar o pelotão de fuzilamento, que "quem com ferro mata, com ferro morre".
Com o padre Gallego morreram também vários operários - acabam de ser identificados deste grupo José Reyes Magro, António Méndez Villamil e Manuel Rubio - que usaram pedras, ladrilhos e outros materiais com que trabalhavam no restauro da igreja de Santiago para atacar um batalhão de soldados polacos ao serviço do Exército francês.
Aparisi pesquisou entre milhares de dossiers dos arquivos da cidade e baseou-se, sobretudo, nos pedidos que as famílias das vítimas fizeram nos anos seguintes à autarquia madrilena para pensões, medalhas ou trabalho para os filhos. As informações são bastante completas, porque os familiares tinham que provar a sua ligação ao morto e relatar as circunstâncias da morte. Identificou aí alguns comerciantes como José Rodríguez, Julian Tejedor de la Torre ou Lorenzo Domínguez, que se juntaram aos seus empregados - a revolta foi essencialmente popular, mas a ela juntaram-se alguns membros da burguesia, do clero (poucos, sendo Gallego aqui uma excepção), e militares (também poucos).
Alguns dos que morreram no monte de Príncipe Pio foram presos por acaso no meio da confusão do 2 de Maio. Foi o caso de Miguel Gómez Morales, funcionário diplomático reformado, que estava na praça da Porta do Sol quando a revolta começou e que, com um amigo, se aproximou da zona onde havia maiores combates. Conta o El Mundo que Morales foi aí capturado e que, ao ser levado num grupo de prisioneiros, viu um dos seus colaboradores e lhe pediu que encontrasse alguém que o ajudasse. Mas a ajuda não chegou e Morales morreu no momento imortalizado por Goya.
Não havia naquele tempo repórteres fotográficos, por isso o quadro de Goya foi a imagem que ficou do que se passou no monte do Príncipe Pio. Correu durante muito tempo a história de que o pintor teria assistido ao longe às execuções, ou que teria ido, nessa mesma noite, ao monte, para tomar notas. Hoje acredita-se que Goya, então com 62 anos, vivia demasiado longe de Príncipe Pio para conseguir ver o que lá se passava. O quadro, que está no Museu do Prado - agora recém-restaurado e exposto, até Julho, em Goya em tempos de guerra - foi pintado em 1814, seis anos passados sobre os acontecimentos, juntamente com outro, A carga dos mamelucos na Porta do Sol, sobre os combates entre o povo de Madrid e a guarda mameluca, mercenários egípcios ao serviço de Napoleão.
Napoleão enganou-se
Os espanhóis recordam agora a revolta de há dois séculos. No centro de exposições Arte Canal pode ser vista até 28 de Setembro a exposição Um povo, uma nação, que conta o que foram esses dias. O comissário é o escritor Arturo Pérez-Reverte e é dele este resumo da situação que se vivia na altura na Europa: "Em Maio de 1808 a Espanha era dona da Europa. Napoleão Bonaparte dominava a maior parte do continente e os exércitos imperiais eram a força militar mais poderosa do seu tempo. A debilidade da monarquia espanhola fez o imperador francês conceber o projecto de lhes arrebatar o trono. O imperador acreditava que o povo espanhol, arruinado, inculto, privado de reis e governo, aceitaria a nova situação. Enganava-se."
No dia 2 as tropas de Napoleão tentavam retirar do Palácio Real os últimos membros da família real que ainda restavam - a rainha de Etrúria, o infante António e o infante Francisco de Paula - e a população começou a juntar-se no local para os impedir.
A revolta espalhou-se rapidamente a toda a cidade. Combateu-se na Porta de Toledo, na Porta do Sol, na Plaza Mayor, nas principais avenidas da cidade, usaram-se todos os meios, armas de fogo, mas também navalhas, pedras, água a ferver. Foi sobretudo o povo que pegou em armas contra os ocupantes, enquanto a maior parte dos militares obedeceu às ordens para ficar nos quartéis. A resposta das tropas francesas foi implacável. Durante todo o dia detiveram pessoas e procederam a execuções sumárias. Na madrugada de 3 de Maio foram fuzilados os 43 homens na montanha de Príncipe Pio, que se juntaram assim às outras 400 vítimas daquele a que Pérez-Reverte chama (no título do livro em que recorda os acontecimentos) "um dia de cólera".