Há que ter Esperanza

Foto

Radio Music Society firma cada vez mais o nome da Esperanza Spalding na história recente do jazz. Encontramo-la naquele cruzamento com soul e funk em que se vê Prince lá em cima, a acenar da janela.

A 4 de Maio de 1959, teve lugar em Nova Iorque e Los Angeles a primeira cerimónia dos Grammy. Na altura, tal como hoje, distinguiam-se os lançamentos musicais do ano anterior. Os grandes vencedores seriam Domenico Modugno (pensar em: Nel blu dipinto di blu (Volare)), Henry Mancini (pela banda sonora de Peter Gunn) e Ella Fitzgerald. Fitzgerald era então uma cantora de popularidade insuperável, a voz daquele tempo, e venceria na categoria de Melhor Interpretação Jazz, pela gravação do songbook de Duke Ellington, mas igualmente na categoria de Melhor Interpretação Pop no Feminino, pela gravação do songbook de Irving Berlin. Voltaria a ser distinguida no ano seguinte, assim como Duke Ellington pela banda sonora de Anatomia de Um Crime.

No final dos anos 50, de facto, o jazz era uma música popular - não apenas na sua origem, mas igualmente na sua recepção. Mas com as rápidas revoluções internas e guinadas estilísticas, desviou-se do gosto massificado e entrincheirou-se/foi entrincheirado num reduto próprio, longe das grandes celebrações. Para a indústria musical, as categorias específicas dedicadas ao jazz eram por isso confortáveis, nunca tendo os Grammy reconhecido os méritos de Miles Davis, Bill Evans, Charlie Parker e Dizzy Gillespie fora desse cantinho - enquanto John Coltrane apenas venceu por duas vezes, postumamente. O fosso entre a pop de três minutos, pensada para rádios e posteriormente para televisões, e o jazz longe destes cânones foi-se acentuando cada vez mais. Até ao momento em que as vendas da pop caíram de tal maneira que o jazz voltou a ter uma expressão capaz de disputar o reconhecimento global. Por isso, em 2008, quando Herbie Hancock venceu com River: The Joni Letters enquanto Melhor Álbum, sucedeu a Stan Getz e João Gilberto, em 1964, enquanto jazzman premiado numa categoria generalista.

"Com tudo o que passou na música nos últimos 54 anos desde que os Grammy começaram, por que raio esta música incrível não foi mais vezes nomeada e reconhecida naquele palco?". A questão atiça Esperanza Spalding, contrabaixista/vocalista que recentemente se tornou o primeiro nome vindo do jazz a ser considerado Artista Revelação do Ano, espezinhando um nomeado representante do pior que a pop tem para oferecer: a borbulhagem musical segundo Justin Bieber. "Habitualmente a parte televisionada daquele espectáculo tem a ver com quem é mais popular e não com quem está a fazer música válida, bela, significativa. Não quer dizer que não possam coincidir, mas, como sabemos, o jazz não costuma aparecer nessa arena. Até ao Herbie Hancock só falavam de jazz quando alguém morria", acrescenta.

Prémios são apenas prémios, como sabemos. Mas há boas razões para que Esperanza Spalding arrombe a porta deste clube privado (em ambos os sentidos) dos milhões vendidos. Com apenas 27 anos, conquistou uma popularidade rara - foi convidada de Obama para actuar na entrega do Nobel da Paz, tocou igualmente nos Óscares -, acompanhada de uma integridade artística à prova de bala. Em paralelo, o jazz que lhe sai das mãos assenta em canções, fortíssimas, que se meneiam sugestivamente em frente de soul, funk e pop, sem se desgraçar em nenhuma derivação estéril. Em Esperanza convivem Wayner Shorter e Stevie Wonder, mas igualmente Jill Scott, Sun Ra, Herbie Hancock e Prince. Paramos em Prince. Não é novidade que o pequeno gigante de Minneapolis nunca deixa passar em claro um talento óbvio na música negra (sobretudo se declinado no feminino). Esperanza já andou, portanto, em digressão com o génio do funk e, de certa forma, parece proceder a um semelhante movimento de expansão na sua música, criando uma imensa massa sonora que tem os pés firmemente presos ao jazz mas com o resto do corpo disponível para captar todas as músicas que circulem no seu campo gravitacional. Ou como ela prefere dizer: "Aquilo com que crescemos é o sotaque que mantemos sempre".

Ali em cima, é o Prince

Em Radio Music Society, encontramos Q-Tip (A Tribe Called Quest), Jack DeJohnette ou Joe Lovano. Prince não. Mas a sua presença sente-se em cada harmonia, como uma figura tutelar, um deus omnipresente pendurado nas nuvens a dar o seu aval de cinco em cinco minutos. "Ele é grande parte deste disco", admite Esperanza. "Não toca nele, mas deu-me imenso feedback e está um pouco por todo o lado, simplesmente não de uma forma muito óbvia. Sou uma grande admiradora da música dele e a sua ansiedade, a sua fome de música e de fazer com que a música cresça é uma inspiração. Para mim é apenas o Prince, um definidor e dobrador de estilos. É um mestre. Não importa que tipo de música faz". Mas não é para aí que Spalding tem o contrabaixo apontado enquanto propósito artístico. A sua mira está em palavras de Bill Evans que cita de cor: "Quanto mais cultivamos o nosso lugar na música mais se encontram melhores respostas para perguntas mais desafiantes".

Vinte e sete anos e Esperanza Spalding sabe perfeitamente o que está a fazer: a saltar para um comboio em andamento. Não há na sua música e na sua postura a ilusão obtusa de que o caminho começa em si: "Nós crescemos, evoluímos e aprendemos graças ao percurso dos nossos antecessores", diz-nos, como se fosse preciso para sabermos que a sua discografia se ajeita e acomoda a um lugar na ramificação contemporânea de uma música com um lastro imenso. "Apreende-se o que houve antes de nós, trocamos ideias com os nossos pares e a nossa visão só ganha vida graças ao talento de outras pessoas". É essa a sociedade a que aludem os seus dois últimos álbuns Chamber Music Society e Radio Music Society. Esta música tem filiação e nasce de uma construção colectiva.

Para este último álbum, Spalding tomou sobretudo como referência Wayne Shorter e Stevie Wonder, farejando-lhes o exemplo de liberdade. Shorter por ser defensor da livre circulação de estilos musicais, Wonder por "dizer nas suas letras exactamente aquilo que pensa". "São um reforço muito positivo para alguém que quer explorar muitas influências diferentes e quer perceber como pode convocá-las e deixar que todas subam a bordo. Penso nesses exemplos como sendo pessoas destemidas e que avançaram sem medo". E Esperanza, aqui, não destoa. O medo, como dizia o outro, é uma cena que também não lhe assiste.

Ver crítica de discos pág. 38 e segs.

Sugerir correcção