Fleet Foxes, a grande evasão

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O primeiro álbum dos Fleet Foxes, lançado em 2008, transformou um sexteto ?de gentis barbudos ?de Seattle apaixonados pelos Crosby, Stills, Nash ?& Young ?e Simon ?& Garfunkel numa das bandas mais reverenciadas dos últimos tempos

"Helplessness Blues" nasceu de uma obsessão. Como manter intocada a magia que transformou uma banda apaixonada pela folk de outras eras em fenómeno global? O segundo disco dos Fleet Foxes está aí, e é um mundo à parte, uma ilha só deles. Fujamos para lá.

Robin Pecknold ficou feliz. Ali estava ela à sua frente, no ecrã do computador: a primeira crítica à banda que formara um par de anos antes em Seattle. Ele que a irmã surpreendera a tocar uma canção de Bob Dylan, "Boots of spanish leather", quando tinha 14 anos, deparava-se aos 21 com a primeira prova de fogo. Robin Pecknold sentia que a sua banda, que o mundo não sabia ainda que se chamava Fleet Foxes, tinha criado algo de valioso. "Meio Marvin Gaye, Beach Boys, com vocalizações em grupo", recordava em 2008 ao site Pitchfork. Julgou que seria óbvio para toda a gente. Não era. Leu o texto: "Pilhagem de My Morning Jacket". Ele a sonhar alto, a apontar a Marvin Gaye e a Beach Boys, e, naquele primeiro impacto com a imprensa, com a comunidade "online", com a indústria, a ver-se acusado de copiar uma banda decididamente menor no grande esquema do mundo. "Deitei-me na cama durante dois dias, pensando "está tudo perdido"". Como sabemos, nada estava perdido. Aquela primeira crítica era apenas o passo em falso inicial.

Robin Pecknold, vocalista, guitarrista e compositor dos Fleet Foxes, leva muito a sério a sua música. Não apenas no sentido de ser o líder de uma trupe empenhadíssima na tradução exacta das ideias que tem em mente. É mais do que isso.

Adolescente, comprara um disco dos Stone Temple Pilots para seguir no encalço do irmão fiel ao grunge e acompanhar a tradição garageira do pai, que fora músico rock"n"roll na década de 60. Ouviu o disco uma vez e aquele presente de guitarradas e berraria para libertar as tensões da "Geração X" nada lhe disse. Interessavam-lhe Bob Dylan e Joni Mitchell, interessava-lhe "música que permitisse uma sensação de evasão". Os seus Fleet Foxes, não podem falhar esse objectivo. Têm de ser fuga - terá sido precisamente isso que os transformou naquilo que são hoje, quando acabam de editar um álbum, "Helplessness Blues", o segundo da sua carreira, que foi uma das edições mais aguardadas do ano.

Para eles tudo aconteceu a velocidade supersónica, nos antípodas da placidez bucólica daquela música, trovadorismo escapista que pede dias correndo lentos, o mais distantes possível do cimento da cidade.

Em Janeiro de 2008, alojaram as primeiras canções no MySpace, quando o MySpace ainda tinha o poder de criar fenómenos, e tornaram-se isso mesmo, um (ainda pequeno) fenómeno. Poucos meses depois, a primeira edição comercial, um EP, passou de mão em mão e de servidor em servidor até que se tornou impossível não perceber que algo se passava. Em Junho, chegou o álbum homónimo que transformou um sexteto de gentis barbudos de Seattle apaixonados pela folk de outras eras, pelas harmonias vocais dos Crosby, Stills, Nash & Young e Simon & Garfunkel ou pelo ímpeto cósmico da Incredible String Band, numa das bandas mais reverenciadas dos últimos anos. Mais de um milhão de cópias vendidas, e o respeito de "Times", "Guardian", Pitchfork, "Billboard" ou "Mojo", que distinguiram "Fleet Foxes" como melhor álbum de 2008 - seguiram-se dois anos de concertos, convites para festivais, tudo a acontecer muito rápido e cinco músicos surpreendidos a navegarem a onda o melhor que sabiam.

O mundo deixara-se conquistar pela sensibilidade pop de canções que soavam a fantasia animista, de canções que pareciam existir desde sempre ("White winter hymnal", "Tiger mountain peasant song", "Oliver James"), e nem parou sequer para pensar como foi aquilo acontecer. Os Fleet Foxes, em toda a sua luminosidade, serenos como comunidade idílica escondida do mundo num bosque perdido no mapa, não pareciam talhados para a glória musical do século XXI. Mas havia na sua música uma sinceridade, uma generosidade e uma inocência que não deixavam espaço a questionar o que quer que fosse - mesmo se escolhiam para capa da estreia o perturbador "Quartier Brueghel", de Pieter Brueghel, o Velho, nome maior entre os pintores flamencos do século XVI. Os Fleet Foxes acabavam de chegar, mas era como se os conhecêssemos há muito.

Como um clã

Quando atendeu o telefonema do Ípsilon na sua casa em Seattle, o teclista Casey Wescott era um homem atarefado. Iria passar as horas seguintes a falar com jornalistas e, depois disso, tinha uma mala para fazer. "Partimos amanhã às seis da manhã [para uma digressão mundial]", explicou.

Telefonámos para saber desse "Helplessness Blues" que tanto burburinho causou no ano passado. Lemos em meados de 2010 que estava terminado, preparado para ser editado. Lemos depois disso que não, que iria ser regravado, e especulou-se sobre o que se especula nestas situações - andam todos zangados uns com os outros; Robin Pecknold, o líder, foi acometido de um acesso de diva. Não se tratava exactamente disso, sabemo-lo agora. Como explicou à "Les Inrockuptibles", Pecknold duvidava da capacidade de maravilhamento: "Um primeiro disco é sempre portador de uma certa inocência, [e] regressar, no segundo, a processos mais conscientes, mais reflectidos, pode fazer evaporar num ápice toda a magia". Foi essa magia que a banda procurou durante três anos.

Passaram pelo estúdio onde os Nirvana registaram "Bleach", em Seattle, e tiveram de arranjar maneira de isolar as portas porque havia ratazanas por todo o lado. Passaram por um estúdio nos bosques de Woodstock, no estado de Nova Iorque. Passaram... "Passámos por todo o lado, pá!", interrompe Casey Wescott, tipo jovial sem pingo de vedetismo, gajo porreiro, conversador interessado. "Muito honestamente, andávamos a tentar captar boas vibrações. Em Woodstock tínhamos uma pequena igreja convertida em estúdio que era pura magia. Tínhamos outra sala mais pequena, de som contido mas com algo de grandioso, que era ideal para "Montezuma" e "Helplessness blues". Tínhamos de testar soluções nos mais diversos locais, porque era o que conseguíamos acomodar na agenda e porque tentámos correr riscos".

Casey Wescott juntou-se aos Fleet Foxes em 2006, depois de os ver tocar no Crocodile Café, em Seattle, quando a banda era apenas os amigos de infância Robin Pecknold e o guitarrista Skyler Skjelset. Mais tarde, chegaram o baterista Josh Tillman e o baixista Christian Wargo e, já durante a gravação do novo álbum, o multi-instrumentista Morgan Henderson.

Wescott é um homem descontraído que não faz a mínima ideia por onde andará nos próximos meses, os da digressão que passa a 8 de Julho pelo Optimus Alive. "Recebi um mail com a lista de concertos e sei que tem qualquer coisa a ver com a minha vida nos próximos tempos, mas tento não entrar em detalhes", diz com humor. Na verdade, como percebemos mais tarde, Casey não precisa de saber por onde andará. Tem o "clã" - a palavra é dele - para o guiar. "É interessante que só os tenha conhecido verdadeiramente por tocar música com eles, porque agora são obviamente os meus irmãos. Ensaiamos três a cinco dias por semana, vemo-nos diariamente a toda a hora, vamos dormir a pensar nas mesmas coisas". Aquele obviamente é esclarecedor. Porque é tudo menos óbvio, olhando para a história da música popular, que gente que partilha a mesma banda seja como irmã - basta pensar em Lou Reed e John Cale, basta pensar nos Cream e em Ginger Baker a ameaçar Jack Bruce com uma navalha antes da entrada em palco e basta, aqui sim, obviamente, lembrar que os Oasis tinham na formação dois irmãos que não primavam pela fraternidade. Os Fleet Foxes, porém, prezam essa fraternal comunhão - se alguns lhes colam a etiqueta neo-hippie e insultos semelhantes não será por acaso. Não a prezassem e, provavelmente, "Helplessness Blues" não existiria.

Misantropia e obsessão

Quando, em Outubro de 2010, Robin Pecknold se juntou ao produtor Phil Ek (Built to Spill, Band Of Horses, Shins) num estúdio nova-iorquino para ouvir aquilo que julgava ser a versão definitiva de "Helplessness Blues", teve uma surpresa. A sequência final não resultara como imaginado, algumas canções estavam menos ruidosas do que desejava e, afirmou ao "New York Times" há algumas semanas, "parecia estar inserido um pouco de mais no contexto do indie rock contemporâneo" - para este músico que afirma que "é difícil ser optimista em relação ao futuro", para este purista das formas clássicas que se sente a viver no tempo errado, gravar um disco próximo do "indie rock contemporâneo", o que quer que isso seja, seria eliminar a possibilidade de sonho. Por isso, uma vez mais, a banda voltou ao estúdio.

Wescott é vago quanto a todo o processo. "Houve momentos arrepiantes e momentos devastadores, mas ainda estou a tentar fazer sentido de tudo. Ainda está muito fresco para que as experiências pessoais se vertam numa narrativa". Não sabemos o que fez Casey no Verão passado, mas sabemos o que aconteceu a Robin Pecknold. No contexto dos Fleet Foxes, isso é o mais relevante. É evidente pelas canções a solo que dele fomos conhecendo, depois da digressão que fez a convite de Joanna Newsom, que sem o apoio do "clã" se revela um cantautor com pouco que o distinga da massa imensa de músicos intimistas de guitarra acústica em punho. Ou seja, existe uma simbiose entre compositor e músicos, mas é ele o director musical, é ele a alma da banda.

Em criança, graves problemas alérgicos confinaram-no a casa durante longas temporadas. Desse tempo em que a música era a única companhia, ficou-lhe uma certa queda para a misantropia - "não tenho amigos a sério para além da banda", disse em tempos. O que se acentuou durante a gestação de "Helplessness Blues": "Admito que tenho dificuldade em libertar-me, em divertir-me. Dou por mim a pensar que ir ver um filme é desperdiçar duas horas que poderia passar a trabalhar em música ou a compor uma canção", confessava na edição de Maio da "Uncut". "Acho bastante egoísta envolver-me tão obstinadamente naquilo que faço, ao ponto de excluir as pessoas à minha volta". Mas essa é natureza que não consegue vencer. Durante as gravações, tornou-se tão insuportável que a namorada não aguentou e abandonou-o. O que, naturalmente, só aumentou a obsessão. Ainda à "Uncut": "A ideia de editar algo com o qual estivesse insatisfeito, depois de tudo o que passei para fazer este álbum, não me parecia de todo uma alternativa". Para o diplomático Wescott, tudo se resume desta forma: "Foi um disco difícil de gravar". Para Pecknold, o processo foi menos prosaico. Porque além da vontade de garantir que "Helplessness Blues" não seria uma desilusão, faltava-lhe um rumo.

As fantasias com terra imaginadas e as paisagens montanhosas habitadas por tigres e pastores do álbum de estreia não lhe faziam agora sentido. Escrevera essas letras aos 21 anos. Tem 25. Nos últimos tempos, apaixonou-se por Roy Harper, génio excêntrico da folk britânica das décadas de 60 e 70, e essa influência atravessa "Helplessness Blues", particularmente no recurso regular à guitarra de 12 cordas. O outro músico que acompanhou Pecknold nos últimos tempos foi Pete Seeger, o mítico cantor folk americano, voz do activismo e da consciência política à esquerda. Ouvi-lo, admirá-lo imensamente, levantou uma questão: "O que vou eu fazer com isto de não ter nenhuma causa? Se já tenho tudo aquilo por que as outras pessoas lutam, o que estou aqui a fazer?" A resposta foi olhar para dentro e questionar o seu lugar no mundo - e é essa a grande mudança de "Fleet Foxes" para "Helplessness Blues": "I was raised into believing I was somehow unique", canta o primeiro verso da canção-título.

Musicalmente, os Fleet Foxes não cederam à tentação de procurar ser outra coisa para evitar a repetição. Não, isso nunca foi uma hipótese. Casey Wescott: "Muitos programam a inovação e adoptam a ideia de a inovação ser necessária à música. Nós estamos concentrados nos processos internos específicos a cada canção. Fazer com que um estilo emergisse, independentemente de processos como a composição, era mais importante para nós. De resto, o que é o novo? Quando se trabalha num formato canção, essa questão é bizarra. Comparados com compositores de vanguarda, todos os que editam discos como nós não fazem nada de novo. Trabalham formatos conhecidos, não andam a explorar novas possibilidades tonais ou rítmicas."

Em "Helplessness Blues", os Fleet Foxes cruzam os mares entre a marca americana de Simon & Garfunkel e Crosby, Stills, Nash & Young - brisa reconfortante, sonhadora - e o fascínio pela velha Britannia reinventada por uns Fairport Convention. O disco, conta Wescott, chegou-lhes como que finalizado. Pecknold levou para os ensaios canções que "pareciam ter nascido plenamente formadas" e a banda ocupou-se a perceber como "fazê-las crescer sem as danificar". O intimismo das letras, mesmo as habitadas por imaginário de madrigal, ganhou uma dimensão partilhável, celebratória, devido à força inebriante das harmonias vocais e à naturalidade com que novos elementos se infiltraram - os metais e madeiras de Morgan Henderson, um piano de parede Challen, semelhante ao utilizado pelos Beatles em "A day in the life", ou um instrumento do início do século XX, o Marxophone, que conjuga cítara europeia, guitarra e mandolim: "É o elemento mais político do álbum", ironizou Pecknold à "Rolling Stone".

Com "Helplessness Blues", os Fleet Foxes continuam a inventar um lugar para si, como aquele que Pecknold imaginava quando, adolescente, ouvia pela primeira vez Bob Dylan e Joni Mitchell. Um universo que seja "uma ilha em si mesmo", pegando numa expressão utilizada por Casey Wescott para descrever Roy Harper. Música gentil trespassada por uma tremenda ansiedade, música que, olhando para o passado porque o presente lhe parece demasiado banal, procura inventar um novo tempo neste que vivemos. Talvez seja isso que conquistou tantos tão inesperadamente quando os ouviram pela primeira vez. A proeza de "Helplessness Blues" é manter intacta essa magia. Não somos os únicos a dizê-lo.

A ex-namorada de Robin Pecknold já ouviu o novo disco dos Fleet Foxes. Compreendeu finalmente que havia um propósito em toda aquela obsessão. Estão juntos novamente.

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