Contradições, invisibilidade e noite de Fernando Calhau
Convite à urgente redescoberta de um dos mais singulares mundos da arte contemporânea portuguesa, a antológica O Mapa do Mar abre amanhã em Coimbra.
Faz dez anos no próximo dia 12 de Junho que morreu Fernando Calhau (1948-2002). Ao contrário do que se esperaria, a morte do artista não trouxe um aprofundamento do conhecimento, da museografia e da historiografia da sua obra. Ainda hoje, mesmo depois de uma importante doação feita em Junho de 2004 pela sua mulher, Maria Cândida Calhau, ao Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian - mais de 570 obras, entre desenhos, fotografias, gravuras, filmes e esculturas -, o trabalho de Fernando Calhau continua por catalogar e a sua memória por fixar. Para Ana Anacleto e Delfim Sardo, comissários de O Mapa do Mar, a exposição antológica que inaugura amanhã em Coimbra, há um problema de inscrição e de visibilidade - uma falha "estranha" e que é urgente reparar.
O Mapa do Mar é um contributo para a reparação dessa falha, convidando à redescoberta de uma obra que parece ter estado sempre distante, como diria Jorge Molder em 2002, a propósito da sua primeira grande exposição, Work in progress, no Centro de Arte Moderna: "Nunca esteve muito ao nosso alcance (...). Os acidentes da sua apresentação nunca nos permitiram um conhecimento claro das suas qualidades e da sua extensão."
Para Nuno Faria, curador da exposição Convocação I e II, feita depois da morte do artista com as obras doadas pela sua viúva, "o percurso de Calhau, atípico e recolhido, mantendo contudo ininterrupta (embora crescentemente discreta) presença enquanto artista, concorreu para este silêncio interior que se foi apoderando das suas coisas". Um silêncio também motivado pela maneira como a sua actividade foi sendo interrompida pelas funções que desempenhava na Secretaria de Estado da Cultura (SEC).
Distribuída pelos espaços do Centro de Artes Visuais, do Círculo de Artes Plásticas e do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, a obra de Calhau é agora objecto de um olhar transversal. "Decidimos que íamos dividir a exposição tipologicamente pelos três sítios, partindo do princípio que um deles, o Centro de Artes Visuais, tem uma vocação específica; aí vão estar os trabalhos de fotografia e vídeo e os desenhos que têm uma relação com a fotografia e a luz. No Círculo de Artes Plásticas, fica uma selecção feita a partir do núcleo da exposição Desenhos, realizada na galeria Quadrum em 1982. As obras expostas no Colégio das Artes são mais abrangentes: vão desde as pinturas verdes de 1975 até aos últimos trabalhos que fez para a exposição com o Rui Chafes, em 2002", contam os curadores ao Ípsilon.
O Mapa do Mar, dizem, nasceu "em primeiro lugar da vontade do Círculo de Artes Plásticas em fazer uma exposição de desenho do Fernando Calhau". Depois pensou-se que seria "bom alargar o âmbito": "Temos consciência de que muitas pessoas mais jovens, sobretudo dos nascidos pós-1975, não conhecem a obra deste artista."
Pintor de domingo?
O percurso artístico de Fernando Calhau desenvolveu-se entre 1965 e 2002, com fases mais activas e outras de total inactividade. Delfim Sardo, que foi o responsável pela primeira exposição significativa do artista em 2002, sublinha a enorme irregularidade deste percurso. Quando regressou de Inglaterra em 1975, era "o artista da sua geração com recepção pública mais unânime e efusiva", e o mercado acompanhava o entusiasmo: "Ele contava que quando fez a exposição na Gulbenkian, em 1975, as pessoas lhe punham cheques no bolso. Saiu dali e com o dinheiro foi comprar um Mini". Foi com a entrada na SEC, um ano depois, que Calhau "se tornou invisível, ainda que tenha continuado a trabalhar", sobretudo a partir de 1978. Nos anos 1980, continua, "tem grandes vicissitudes: até 1982 está muito activo, depois deixa de trabalhar". Até que, em 1988, "começa a fazer telas e os ferros". Resume Sardo: "Todo o seu percurso é muito dependente do trabalho na SEC. Isso fez com que, a partir do momento em que houve instituições em Portugal, como o Centro de Arte Moderna ou Serralves, ele nunca fosse exposto. Só depois quando se reformou, em 2000, é que voltou a expor. As suas poucas exposições, sobretudo na galeria Luís Serpa, eram vistas por um grupo muito restrito de pessoas."Ainda que estivesse sempre a produzir e ambicionasse ser um bom artista, a personalidade contraditória de Fernando Calhau acabou por ditar a discrição do seu trabalho: "O Julião Sarmento [de quem Calhau foi o melhor amigo: foram colegas nas Belas Artes, partilhando os mesmo fascínios e fazendo descobertas simultâneas de livros, revistas, artistas, materiais] diz isto com muita ênfase: ele tinha uma enorme vontade de ser um grande artista, mas não convertia isso numa decisão. O que o impediu de sair do emprego no Estado e lançar-se no mercado" conta Ana Anacleto. Mas mesmo no meio destas "vicissitudes", Jorge Molder descreve-o como um homem dotado de uma "força criativa inesgotável, um mundo insaciado e na sua máxima pujança."
Era um artista-funcionário público, mas não um artista ocasional, de tempos livres, vinca Delfim Sardo: "O Fernando Calhau não pintava ao domingo. Só pintava durante a semana, à noite, quando chegava a casa. Tinha uma máxima que cumpria rigorosamente: eu não quero ser um pintor de domingo."
Uma língua nova
Na sua entrevista de referência, conduzida por Delfim Sardo no catálogo de Work in progress, Fernando Calhau, que segundo contam tinha o melhor olho para a arte, identifica a pluralidade de artistas que o marcaram: "Essas imagens [da participação de Donald Judd na Bienal de Artes de São Paulo em 1965] é que foram de facto determinantes. Através delas percebi que o que eu procurava era o utilizar o mínimo de meios expressivos num qualquer tipo de trabalho, reduzir ao mínimo o ruído, transformar as coisas no essencial (...), embora, curiosamente, um dos artistas que me influenciou mais durante este período foi o Andy Warhol, que é o artista pop." Esse mapa eclético de influências faz de Calhau um caso verdadeiramente singular: um artista cujo fascínio pela pop se transforma num mergulho nos artistas minimais e conceptuais, sobretudo em Richard Serra e Joseph Kosuth.Para Calhau, independentemente daqueles ecos, os seus trabalhos eram, como declarou, românticos e formais. E à pergunta "o que te parece importante?", responde "a coerência conceptual, que não haja desvios (...) ao meu programa - que as pinturas tenham continuidade, que funcionem face a um espectador, que façam sentido dentro da série, que não sejam a mais, que reafirmem o que lhes está atrás." Compelido a falar sobre os seus interesses artísticos, a rede complexa dos motivos do seu olhar reaparece: "Interessa-me o Judd, o Vermeer, a Tempestade do Giorgone. Giotto. Interesso-me sempre por artistas rígidos. Interessa-me o Serra, o Warhol. Quase toda a Pop. Gosto de outras coisas com uma componente afectiva que não consigo dissociar. Gosto do trabalho do Julião Sarmento, da pintura do Michael Biberstein, do Douglas Gordon (...). E tenho ódios de estimação. Não gosto de Matt Mullican, nem de Jeff Koons, nem morro de amores pela Nan Goldin. Estou preso a uma geração que tinha os pés na terra (...). É preciso trabalhar sempre sem nada na manga e sem rede. Vamos sempre a tremer, mas um quadro ajuda ao seguinte."
A par dos temas específicos das suas obras (o tempo, o espaço, o peso ou a materialidade), e dos diferentes meios e linguagens que utilizou (o desenho, a pintura, a fotografia, o vídeo ou a escultura), o que torna único o trabalho de Fernando Calhau é o rigor com que sempre encarou cada obra: "Soube criar um universo próprio, uma linguagem pessoal, uma língua, diria mesmo", escreveu Nuno Faria.
Uma língua, um lugar que Calhau teve de encontrar para si, dados os paradoxos aparentes do seu trabalho: "Não estava programaticamente metido num movimento ao qual se tinha de se submeter; teve de encontrar a margem onde desenvolver o seu trabalho", afirmam Ana Anacleto e Delfim Sardo. E acrescentam: "Ele comporta-se como um pintor em todas as versões do seu trabalho: um pintor a trabalhar sempre nas possibilidades do limite da pintura. Ele foi um pintor, o que, de alguma maneira, é contraditório com a ideia de arte em geral que é reflectida pelo seu trabalho. Estas contradições fazem a sua singularidade."
O artista do nocturno
Essa singularidade adensa-se quando se fica a saber do seu fascínio pela noite. Não só como tema e símbolo romântico, mas como desenvolvimento de uma forma de chegar ao mundo. Dizia Calhau em 2002: "A noite pressupõe o isolamento, quer dizer, de facto à noite as pessoas vivem mais facilmente uma situação de isolamento (...). Há uma consciência maior do universo, uma vez que se torna evidente todo um conjunto de estrelas e planetas que há por ai espalhados, mas também, ao mesmo tempo, há uma cápsula monocromática negra, uma cápsula de isolamento". Esta é a experiência da sua obra: o negro nocturno onde se adivinham presenças, marcas, corpos e, sobretudo, abismos. A sua grandiosidade foi nunca ter evitado essa vertigem que era a condição da sua obra.Rui Chafes, com quem Fernando Calhau, já muito doente, fez a sua última exposição, fez um retrato inesquecível do artista: "Passava horas infindas, sobretudo horas nocturnas, a riscar sucessiva e intensamente a superfície do papel até a cobrir por completo com uma densa mas subtil teia de minúsculos riscos (...). O que lhe interessa é o desenhar, o preencher do tempo vazio com um gesto tão obsessivo como salvador: o único possível (...). Um prisioneiro numa cela que, todas as noites, se levanta para esburacar a parede ou a porta com uma colher transformada numa faca, até conseguir fazer um buraco. Todas as noites o tempo arrasta lentamente as pesadas e dolorosas horas. Ele há-de conseguir fazer um buraco para se escapar. Penso que Fernando Calhau, no final, conseguiu escavar o buraco e fugir."