Chinua Achebe, o autor global, ganhou Man Booker International
É o ano dos escritores nigerianos (há dias, Chimamanda Ngozi Adichie ganhou o Orange), mas chamar-lhe escritor nigeriano é muito pouco: ele é o fundador da literatura africana moderna
a Não ficamos bem, nós, os europeus, nos romances em que o nigeriano Chinua Achebe explica como a África se tramou (para não dizermos como a África "se fodeu", citando outro escritor do pós-colonialismo, Mario Vargas Llosa, em Conversa na Catedral). É possível que tenha sido necessário África tramar-se para a literatura africana moderna poder acontecer - e a literatura africana moderna aconteceu sobretudo com Chinua Achebe, como ontem reconheceu o júri do Man Booker International Prize 2007 ao atribuir-lhe 60 mil libras (perto de 90 mil euros) por um património literário que deu novos mundos à ficção (e isto também é significativo: até aos anos 60 éramos nós, os europeus, que dávamos novos mundos a África, nunca o contrário).O nigeriano de 77 anos sucede desde ontem a Ismaïl Kadaré, o primeiro destinatário do Man Booker International Prize, criado há dois anos para premiar o conjunto de obras extraordinárias no contexto da literatura mundial. Kadaré fez coisas extraordinárias a partir de um país extraordinário, a Albânia, e agora dois escritores - a sul-africana Nadine Gordimer, o irlandês Colm Tóibin - e uma académica, Elaine Showalter, dizem que Chinua Achebe, de quem raramente se fala, é um dos maiores autores vivos. Maior do que Salman Rushdie, Philip Roth, Amos Oz, Carlos Fuentes, Doris Lessing, Ian McEwan, Michael Ondaatje, Harry Mulisch, Don DeLillo e Michel Tournier, os escritores verdadeiramente globais que constavam da shortlist da segunda edição do prémio.
Mesmo que nos tenhamos habituado a não ouvir falar muito dele (pelo menos não da maneira que falamos da nova namorada de Salman Rushdie, do eventual plágio de Ian McEwan ou da última posição de Amos Oz sobre o conflito israelo-árabe), Achebe também é um autor global: 50 anos depois de ter escrito a sua obra-prima, Things Fall Apart (1958), continua a ser o escritor africano mais traduzido do mundo (é possível lê-lo em mais de 50 línguas). Em Portugal, a Caminho publicou Um Homem Popular e as Edições 70 A Flecha de Deus mas ninguém editou esse romance que vendeu mais de dez milhões de cópias em todo o mundo.
Requiem pelo verdadeiro coração do continente africano - que Achebe, no gesto mais polémico e solitário da sua carreira, negou ser o coração das trevas descrito por Joseph Conrad no praticamente intocável romance homónimo -, Things Fall Apart é uma obra mítica da moderna literatura africana. Com ela, África passou a ser uma ficção africana e não apenas uma ficção europeia. "O que a literatura africana conseguiu fazer foi elevar o conceito de literatura a uma escala mundial - e esse mundo também incluía o próprio continente africano, que até não estava lá. Nas histórias que contamos, tentamos ajudar África a resolver esta sensação de fracasso que parece ter-se sobreposto à euforia da independência", disse Achebe à BBC.
Não disse que África lhe deve qualquer coisa - disse que ele deve qualquer coisa, primeiro a África e agora ao mundo, que continua a lembrar-se dele tanto tempo depois de Things Fall Apart: "Foi exactamente há 50 anos que comecei a escrever o meu primeiro romance. É maravilhoso ouvir que os meus pares olharam para a obra que eu construi no último meio século e a consideraram merecedora deste importante reconhecimento. Estou muito grato", respondeu quando lhe anunciaram que o Man Booker International Prize é dele. Dois membros do júri fizeram, de resto, referência explícita a essa fulgurante primeira obra nas suas declarações oficiais. "Chinua Achebe é um dos meus heróis desde que li Things Fall Apart. É um livro que consegue captar um momento essencial do drama colonial; dramatiza uma mudança colossal como clareza, empatia e uma assombrosa fluência", notou Tóibin. "Em Things Fall Apart e na sua restante ficção sobre a Nigéria, Achebe inaugurou o moderno romance africano. E também iluminou o caminho para que escritores de todo o mundo pudessem encontrar novas palavras e novas formas para novas realidades e novas sociedades", disse Elaine Showalter. Gordimer disse muitas outras coisas mas sobretudo isto: "Lê-lo é uma alegria e uma iluminação."
Coisas dessas costumam dar Nobel, e foi também por isso que a generalidade da imprensa britânica se orgulhou ontem da decisão do júri. "Homenageando Achebe, os membros do júri corrigiram o que é visto em África - e além dela - como uma tremenda injustiça: o facto de [Achebe] nunca ter recebido o Nobel da Literatura, supostamente porque passou a vida a lutar para libertar África dos estereótipos ocidentais", observava ontem o Guardian, a propósito do ensaio que Achebe publicou em 1975 contra Joseph Conrad (mais precisamente: contra a sua visão de África como um apocalipse, "um campo de batalha metafísico, desprovido de qualquer forma reconhecível de humanidade, por onde os europeus vagueiam correndo grandes perigos"), An Image of Africa: Racism in Conrad"s Heart of Darkness.
Quando lhe perguntaram, há anos, que autores tinham contado bem a história do continente africano, não falou em nenhum europeu: "Centenas de pessoas contaram bem a história de África, incluindo muitas de que habitualmente não falamos, associadas a formas que não consideramos literatura: a tradição oral dos contadores de histórias das aldeias já existia muito antes de os colonizadores introduzirem o papel e a caneta. A humanidade tentará sempre contar histórias."
A sucessora de 29 anos
Ele, pelo menos, já tem sucessores: há uma semana, outra nigeriana de etnia igbo, Chimamanda Ngozi Adichie, de 29 anos, ganhou o Orange pelo romance Half of a Yellow Sun. Na altura, a escritora americana Joyce Carol Oates disse que Chimamanda descendia em linha recta da família literária fundada por Chinua Achebe. Agora, a própria Chimamanda diz que ele é um homem, e não apenas um escritor, maravilhoso: "Todos os escritores deviam ser como ele", disse ontem, citada pela BBC.
O Man Booker International Prize será entregue a Chinua Achebe na Christ Church, em Oxford, a 28 de Junho. Ele virá expressamente dos EUA - vive no estado de Nova Iorque, onde é professor de línguas e literaturas no Bard College, em Annandale, com a mulher e os quatro filhos - e, finalmente, mais meio mundo saberá quem é um dos maiores escritores vivos.