Casa da AchadaA cultura não é para amanhã

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É pela porta da fábrica que agora se entra

Eduarda Dionísio e muitos pares de braços abriram esta semana a Casa da Achada-Centro Mário Dionísio, na Mouraria, em Lisboa. De uma herança privada fizeram uma herança pública. São "pessoas que gostam umas das outras, que têm ideias e vontade e memória, que sabem fazer coisas ou as aprendem a fazer". Agora, é com quem vier - e com quem ajude.

Por Alexandra Lucas Coelho (texto) e João Henriques (fotos)

Quantas horas tinha cada dia? Quantos éramos ao todo? Impossível sabê-lo. Sabíamos, sim, que a situação portuguesa não se podia suportarMário Dionísio, Autobiografia

A Achada é uma rua tão antiga de Lisboa que ainda tem janelas em ogiva. Mas pode um lisboeta andar uma vida entre a Baixa e o Castelo sem dar com ela. Então primeiro há que chegar à Igreja de São Cristovão, e depois é espreitar do lado direito. Cá está o Restaurante Eurico, "carnes e peixes frescos", chefe ao relento, e atento.

- Para a casa do dr. Mário Dionísio, não é? - E aponta uma passagem por trás da igreja.

Rua estreita, prédios escalavrados, e subitamente um largo com uma casa luminosa, janelas todas abertas. Faz um calor tropical, pingos grossos a pedirem que chova de vez, e lá dentro muitas cabeças.

Um ano e 700 mil euros depois, a Casa da Achada - Centro Mário Dionísio está hoje a abrir as portas, e não é que o dinheiro lhe tenha caído ao colo, vindo do Estado.

Escritor, pintor, professor daqueles que os alunos nunca mais esquecem, Mário Dionísio tinha uma boa frase para esta urgência que a sua filha Eduarda levou por diante com muitos pares de braços: "A cultura não é nunca para amanhã, é sempre para já."

Era isto uma casa com uma pequena fábrica ao lado, e é pela porta da fábrica que agora se entra - chão negro, paredes brancas, tecto de madeira, espaço todo aberto com duas mezanines cheias de livros, em baixo pinturas e desenhos, e já tanta gente que é difícil atravessar até ao quintal, onde Vítor Silva Tavares fuma sem apanhar chuva, graças a uma formidável nespereira.

É um quintal para estar. Mesas debaixo da nespereira e à volta canteiros com limoeiro e couves que já cá estavam, mais flores acabadas de plantar e espaço para três árvores que hão-de vir.

Toda a gente que ajudou a fazer esta casa faz outras coisas. Vítor Silva Tavares, por exemplo, faz os livros da & etc. E todo o tempo que não estava metido neles, estava aqui, a discutir amostras de tintas e pavimentos com o empreiteiro, para ver o que saía mais barato.

- Foi tudo feito sem arquitecto - começa a contar. É já o princípio de uma visita guiada, em apagado o cigarro.

- Que belo sítio! - atira-lhe a primeira senhora no caminho para dentro.

- Não é? Tornou-se, tornou-se!

E por aí fora, até Vítor conseguir ficar virado para as mezanines, uma por cima do quintal, outra por cima das grades onde estão guardadas as obras não expostas de Mário Dionísio. Basta puxá-las para fora, por um sistema de calhas, para poder ver cada pintura. E ciclicamente vão substituindo as que estão nas paredes.

Como o projecto inicial do arquitecto Raúl Hestnes ficava muito acima do orçamento que havia, foi preciso avançar sem arquitecto e encontrar soluções como esta.

- As mezanines são a biblioteca pública. Dois, três mil livros, tudo oferta das pessoas, e há muito mais em caixotes.

Além do próprio Vítor, um dos grandes dadores de livros foi Jorge Silva Melo, actor, encenador, ex-aluno de Mário Dionísio, que a esta hora conversa com André Jorge, editor da Cotovia, no outro espaço ao ar livre - uma grande varanda corrida, com telheiro novo, forrado a madeira, mesas de madeira dadas pelo empreiteiro, e velhos bancos de pedra reaproveitados.

- Estavam aqui na rua - aponta Vítor.

O que daqui se vê, nesta esquina em que a Rua da Achada encontra o Beco das Flores, é como ainda se vive em Lisboa. Roupa pendurada em fachadas a cair, prédios que parecem devolutos e sai um velho pela porta, vasos nos degraus, caixotes de lixo, entulho.

Mãos na obra

- Nem se acredita, num ano esta maravilha! - vem alguém dizer à varanda.

- Exactamente um ano! - sublinha Vítor - Esta parte era uma oficina metalúrgica, que fazia espadas e medalhas, desactivada há muito tempo.

Mas como se transforma tudo num ano sem arquitecto?

- O empreiteiro foi um elemento fundamental. Ele e a família tomaram isto a peito, como se fosse uma coisa deles.

Lá dentro, a pequena plateia de cadeiras encheu e há dezenas de pessoas de pé. Avistam-se Cláudio Torres, Regina Guimarães, Gastão Cruz, Filomena Marona Beja, Rui Mário Gonçalves, Teresa Belo, João Rodrigues, Júlio Moreira, mais adiante Margarida Gil.

Actor, encenador, ex-aluno de Mário Dionísio, Luís Miguel Cintra está junto ao microfone, com um maço de folhas brancas na mão.

- ... que as pessoas presentes sintam a mesma alegria que eu por estar aqui.

E começa a ler Pinto, um longo poema de Mário Dionísio.

Há bebés ao colo de pais e muitas cabeças brancas; gente que não suportou a situação; gente, em geral, que continua a não suportar.

Lá fora Lisboa abafa como antes de uma tempestade, e os minutos passam, dez, vinte, com a sala parada, a ouvir: "... alguma coisa entretanto se perdeu que não sei precisar", diz a voz de Luís Miguel Cintra, caindo fundo no silêncio.

Depois do poema abre-se um ecrã e começam a passar imagens de uma casa, outra, aquela onde Mário Dionísio viveu com Maria Letícia e a filha única de ambos, Eduarda (actriz, encenadora, escritora, activista), que por sua vez teve uma filha única, Diana (investigadora em teatro, cantora, aqui de pé, a olhar para o avô no ecrã). Sete minutos filmados e montados por Regina Guimarães com banda sonora de Webern - paredes cheias de livros, quadros e retratos, e mesas de escrever como já não há. Era no tempo de riscar, rasgar e queimar, para escrever tudo outra vez.

- Agora a ideia é: quem quiser falar dois minutos sobre o Mário Dionísio, este espaço está aberto - diz Eduarda, ao microfone.

E vem uma ex-colega sua do Liceu Camões, Maria Helena Barradas, descrever a roda de gente que às vezes se fazia à volta de Mário Dionísio e Maria Letícia, "à volta de um texto, de uma frase", e sai em lágrimas.

Outros se seguem, até Eduarda Dionísio voltar para a última intervenção.

- É muito difícil viver uma posição intermediária entre o que há e o que não há, lidar com a propriedade privada, a família e o Estado.

Como diria Engels, e a plateia sorri.

- Dinheiro, formulários, cronogramas, aquilo de que fugi a vida inteira. Ai o meu rico tempo. E obrigada a fazer de filha de, e às vezes de mãe de, a toda a hora me lembro de uma frase de Vieira de Almeida: "Família só a Sagrada, e na parede pendurada."

Gargalhadas.

- Por isso me apetece dizer que estamos aqui porque há pessoas que gostam umas das outras, que têm ideias e vontade e memória, que sabem fazer coisas ou as aprendem a fazer, e dispõem de algum tempo, além da família, da carreira, do dinheiro.

Nomeia alguns, começando por Mário Dionísio.

- O que foi, o que fez, o que pensou, o que deixou.

Continuando com Maria Letícia, "mulher e parte importante da sua vida", e a partir daí é uma longa lista, os tais muitos pares de braços, que são os fundadores desta associação e outros.

Como Natércia Coimbra, do Centro de Documentação 25 de Abril, que começou a organizar o espólio de Mário Dionísio em 1994, base do que agora aqui está, entre pinturas, desenhos, papéis, revistas e livros.

Ou o empreiteiro José Ribeiro "que não aumentou nem um cêntimo o orçamento que fez, e a sua companheira Teresa de Freitas, advogada", que tratou de papelada.

Entre os fundadores estão Cristina Reis, a cenógrafa da Cornucópia, que "conheceu Mário Dionísio aos quatro ou cinco anos" e desenhou o logótipo da Casa da Achada. Regina Guimarães "que participou em todas as reuniões", fazendo de cada vez 300 quilómetros do Porto, e "fez não sei quantos filmes da Achada". Jorge Silva Melo "e as suas ideias fundadoras". Rui Mário Gonçalves "que escreveu mais de 100 textos sobre quadros de Mário Dionísio". Gabriela Dias, companheira de "todas as campanhas e projectos".

Por aí adiante, sem esquecer:

- Quem pôs mãos à obra, incluindo leilão de arte, de várias das obras oferecidas de que temos vivido em grande parte até agora.

Obras de Ângelo de Sousa, Bárbara Assis Pacheco, Eduardo Batarda, Eurico Gonçalves, Jorge Vieira, João Cutileiro, José Rodrigues, Júlio Pomar ou Jorge Martins, isto em Novembro, há quase um ano, mal tinham começado as obras.

Porque logo que a casa foi comprada começaram a fazer-se coisas. Pintou-se um mural colectivo, houve lápis e papel para as crianças da Achada no fim do ano, na Primavera fez-se uma feira com arte, velharias, primeiras edições (e troca de brinquedos, música ao vivo, jogos, vídeo, fotografia).

E a ideia é servir, antes de mais, quem vive aqui à volta, na convicção de que a cultura não é para quem pode, é para quem quer - e isso também se desperta.

Sem resposta do ministro

Eduarda dá agora contas da ajuda institucional:

- Vinte mil euros da Câmara de Lisboa e 15 mil euros da Gulbenkian.

Estão para chegar outros 15 mil da Gulbenkian.

E de resto, nada. Por exemplo:

- Não ter havido qualquer resposta do ministro da Cultura ao pedido de falarmos uns minutos com ele, em Novembro, parece.

E pelo meio até uma tentativa de embargo de obras.

- Porque podíamos estar a conspurcar um bairro sem quaisquer sinais de degradação. Uma pessoa adquire um edifício para pôr à disposição dos outros e é suspeito.

Veio um polícia e tudo, para depois concluir que não havia base para embargo.

Mas como foi possível, então, comprar casa mais fábrica e fazer as obras? De onde veio o grande bolo dos 700 mil euros?

É então que Eduarda conta a história dos pais de Maria Letícia, sua mãe. Gente que trabalhou e poupou para deixar a gente que não gastou, de filha única em filha única. E agora aqui está, uma herança privada, transformada em herança pública (não é distinção, aliás, que Eduarda Dionísio ache útil).

- Como a felicidade não passava pelo consumo, foi possível comprar esta casa e habitá-la.

Literalmente. Porque se aqui na "fábrica" está a biblioteca pública e o espólio de pinturas, a casa ao lado foi dividida em dois pisos: no rés-do-chão ficou o centro de documentação e a biblioteca de Mário Dionísio e Maria Letícia, disponíveis ao público; e no primeiro andar vive Eduarda Dionísio.

- O que aqui está a ser feito é um combate ao desperdício, que me perturba mais do que a corrupção, porque a corrupção é mesmo parte da sociedade capitalista - continua Eduarda. - O que está a ser feito nasceu de uma desconfiança das instituições e do seu tempo, e da ideia arcaica de que se conseguem fazer coisas com as próprias mãos, coisas assim.

Mas feita a casa com o dinheiro que havia, como fazer agora?

- O dinheiro da câmara acaba em Dezembro, e o da Gulbenkian também. Com o tempo e a persistência de cada um, vamos estar aqui até 5 de Outubro, a semana de abertura. E depois abriremos com o horário possível.

Pausa.

- Uma coisa assim depende de tanta coisa.

E na antiga fábrica toda a gente fica a bater palmas, até muito depois de Eduarda Dionísio deixar o microfone.

A seguir há jantar no quintal, e visita guiada à exposição. Há-de chegar o cineasta Paulo Rocha, de cadeira de rodas, confirmando que as rampas funcionam bem. Vendem-se livros (a Achada tem já três edições, mais livros antigos de Mário Dionísio, poesia, prosa e a Autobiografia).

É isto terça-feira, e entretanto parou de chover.

Sem porteiro

Na quarta houve leituras do cicloA Paleta e o Mundo, o grande volume com a obra crítica de Mário Dionísio sobre arte, que vai ser lido e debatido até Agosto de 2010, em sessões mensais.

E na quinta, às cinco da tarde, a casa brilhava ao sol, sempre com as janelas abertas, e já cabeças lá dentro.

Vítor Silva Tavares completa a visita interrompida há dois dias, desta vez começando pela parte da casa-centro de documentação. Uma escada em caracol leva ao andar de cima (de habitação), e cá em baixo há três salas com seis mil livros que pertenceram a Mário Dionísio, nas suas estantes originais.

Natércia Coimbra trabalha no seu portátil, na sala do meio, onde está pendurada uma fantástica fotografia de Mário Dionísio de fato e colete, aos três ou quatro anos.

- Foram os pais que o mascararam de senhor.

Inês Vasconcelos e Gabriela Dias trabalham na primeira sala. Depois da semana de abertura, quem quiser vir aqui ler ou ver algo, pode bater à porta. Haverá gente.

Num corredor que dá acesso ao quintal está a videoteca montada por Maçarico, o companheiro de Eduarda Dionísio, com cassetes oferecidas por muita gente, incluindo João Bénard da Costa.

- As pessoas podem vir cá requisitar um filme - explica.

Tal como na biblioteca.

E no quintal nem tudo serão plantas.

- A gente vai meter ali um grelhador para os chouriços e as bifanas - diz Vítor, passando à "fábrica" através do quintal.

Pequenos detalhes que no primeiro dia de abertura, entre tanta gente, não se viram:

- Todos estes vigamentos tiveram de ser carregados à unha, porque as camionetas não entram aqui.

As mezanines já têm mesas e cadeiras, e hão-de ter computadores. Entretanto, chega Nuno Teotónio Pereira, que vem para o lançamento de Um Cesto de Cerejas - conversas, memórias, uma vida, o belo livro que Eduarda Dionísio fez com o arquitecto Francisco Castro Rodrigues, acabado de editar pela Casa da Achada.

Uma última explicação para o piso da varanda.

- Idealmente seria calçada portuguesa, mas custava muito, não há calceteiros e demorava muito tempo - conclui Vítor.

Ainda pensaram naquela imitação que agora se usa, envernizada.

- Escorregava, e isto é para ter crianças.

Em muito há que pensar.

E é aqui mesmo, na varanda, que Eduarda Dionísio se senta para uma pequena conversa com o P2, antes que venham as seis e toda a gente chegue.

Voltando às contas, além da câmara e da Gulbenkian (50 mil euros), o leilão rendeu 15 mil e a feira cinco mil. Tudo somado, dá 70 mil. Ou seja dez por cento do orçamento total. Portanto, a herança representou quase 90 por cento dos custos.

Quase, porque houve ainda uns tantos euros mensais em quotas (55 sócios, cinco euros por mês voluntários).

- Mas o principal que as pessoas dão é em trabalho e em géneros. Pessoas que dão livros, que fazem coisas em computador, coisas que numa economia normal têm um preço e aqui são dádivas. Irem aqui e ali e não terem transporte.

Ou o coro de música popular italiana - com duas actuações no programa da semana de abertura, sexta, 2, e segunda, 5 - ser alojado pelas pessoas.

- Pagaram as viagens, vamos pagar-lhes a alimentação e ficam a dormir em casas de todos nós. Até numa casa de uma senhora do restaurante Eurico, que estava livre.

Quanto à herança, a que "é ridículo chamar fortuna", foi-se no que está feito, e antes assim.

- Se as pessoas tivessem querido passar férias nas Bahamas, não existia. Mas as pessoas não quiseram.

Três gerações de pessoas.

- Achei que não fazia mal dispor daquele dinheiro para os outros. Com a ideia de que a casa ficava por conta disso, para conservar e pôr à disposição um espólio, e a partir daí já não podíamos ser nós, nem vamos poder. Arranjou-se um sítio, tornou-se habitável, e a partir daqui são estas 55 pessoas que têm de gerir isto de maneira a ser possível funcionar. Segundo a ideia de que a arte é importante, e de que a cultura pode ser diferente do que é hoje.

O que se pode dizer a partir de amanhã, 5 de Outubro, é que a casa abrirá cinco dias por semana, seguramente sábado e domingo, e com horas pós-laborais.

Que espera de apoios?

- Nada. Mas acho natural que venha alguma coisa. E há muita gente aqui com experiência de associativismo, que arranjará dinheiro. Não chegará para um porteiro que não sabe nada do que está cá dentro, mas também não é preciso. É fundamental, é justo, que haja esse apoio público, mas a gente também tem de conseguir dinheiro.

Não a espantou a falta de resposta do ministério.

- Para que serve o Mário Dionísio no género de cultura que o ministro promove? Não quer dizer que a gente desista, mas não estou habituada a rojar-me aos pés de ninguém.

E de que género de cultura é que esta casa não gosta?

- Uma cultura fachada do poder e comércio, que aliás é a mesma coisa. A cultura esteve fora das vendas de batatas muito tempo e de há uns anos para cá tem as mesmas regras. Mas eu acho que a cultura é um bem público, como a saúde ou os transportes.

Passa das seis.

Na "fábrica", Filomena Marona Beja e Natércia Coimbra (mais o seu inseparável cão) vão apresentar a biblioteca pública, que terá um clube de leitura de três em três semanas, a começar pela Autobiografia de Mário Dionísio.

Custa dois euros, prosa como já não há - e senhores, ide lá ver como a exclamação (e a exclamação dentro do parêntesis!) pode ser uma maravilha.

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