Como vão os humoristas sobreviver a Obama?
O papel da raça, do romance dos media com o Presidente democrata eleito e os seus limites estão em debate nos Estados Unidos. E agora, Jon Stewart? Por Joana Amaral Cardoso
a A Casa Branca começa a ser jocosamente apelidada de Casa Negra (ou Preta, conforme a preferência na nomenclatura e no politicamente correcto). O humorista Jon Stewart já lamenta o fim do prazo de validade da sua caricatura de George W. Bush como um sorridente corcunda mefistofélico. Comediantes afro-americanos como Tracy Morgan avisam que, se houver piadas raciais sobre Barack Obama, feitas por brancos, é bom que sejam mesmo excepcionais. Os cartoonistas americanos queixam-se de excesso de zelo dos leitores quando retratam Obama e sentem-se a pisar ovos. No fundo, o mundo da comédia norte-americana começa a tentar perceber se ficou a perder com a vitória histórica de um homem que parece respeitar. Durante oito longos anos, a comédia americana teve muito com que trabalhar, do pretzel que engasgou Bush ao "acidente de caça" de Dick Cheney, passando pela incapacidade do Presidente de pronunciar correctamente a palavra "nuclear". Já durante a longuíssima campanha para a presidência, as piadas sobre Obama eram uma minoria perante os outros alvos fáceis - da idade de John McCain às lágrimas de crocodilo de Hillary Clinton, passando pela estrela (cadente?) chamada Sarah Palin.
"Esta foi a melhor série na televisão" dos últimos meses, disse ao San Francisco Chronicle Robert Thompson, director do Centro Bleier para Televisão e Cultura Popular da Universidade de Syracuse. Nos dias antes das eleições, a imitação de Palin por Tina Fey, criadora da série Rockefeller 30 (no canal Fox Next em Portugal), no Saturday Night Live era quase tão valiosa para o eleitorado quanto os noticiários. "Consigo ver a Rússia da minha janela", gozava-se nas ruas. E deu audiências recorde ao programa.
Tal como a atenção mediática em geral, nos últimos dois anos a mira da sátira foi-se desviando de Washington para a campanha eleitoral. "Para aqueles de nós que tiveram de entrar em privação com um George W. Bush em perda, Sarah Palin foi como uma dose de metadona", comentava ao San Francisco Chronicle o cómico de stand-up Will Durst.
Até 4 de Novembro, então, comédia (sobretudo a de produção diária ou semanal com base na actualidade) e política estavam entrelaçadas como num casamento de amor/ódio. A comédia parecia não poder viver sem a campanha e a campanha parecia não conseguir/querer livrar-se da comédia. Como escreveu o jornal USA Today, a maior esperança de Sarah Palin nas urnas seria uma amnésia dos americanos em relação ao "factor Tina Fey". Sintomaticamente, a última entrevista de Barack Obama antes das eleições foi ao Daily Show de Jon Stewart. Na mesma noite, John McCain deu uma entrevista a Larry King na CNN. Que, revista pelo apresentador Conan O'Brien, era como um encontro num lar de idosos.
A simpatia da comédia americana, nomeadamente aquela que vemos em Portugal (Late Night with Conan O'Brien, South Park e Daily Show na SIC Radical, espectáculos de stand-up no MOV, séries nos canais Fox), parecia pender para a esquerda democrata. "Provavelmente não é segredo onde nos situamos politicamente", admitia ao New York Times J.R. Havlan, argumentista do Daily Show. Talvez ainda mais desde que Obama foi consagrado candidato e os restantes intervenientes mais folclóricos (John Edwards, apanhado a trair a mulher com cancro durante a pré-campanha, por exemplo) saíram de cena.
Uma questão de forma
"Algumas pessoas acham que vai ser difícil gozar com Obama porque ele é negro. Eu acho que é porque ele é relativamente lúcido", ironiza o comediante de stand-up Nato Green no Chronicle. A verdade é que, no caso do Daily Show, o tal que há anos foi apresentado como principal alternativa à informação tradicional para a faixa etária dos 18-24 anos, o sucesso planetário e nas audiências domésticas chegou nos últimos anos, com uma administração republicana na Casa Branca.
No programa de 4 de Novembro, um especial eleitoral com Jon Stewart e o seu colega Stephen Colbert (cujo Colbert Report é uma dupla sátira, fazendo-se de conservador e assim levando até ao extremo ridículo as posições republicanas), Stewart assumia a dificuldade da tarefa que aí vem. E nos programas seguintes já chorava os últimos dias da sua caricatura de Bush.
Mas a equipa do Daily Show une-se à de Conan O'Brien no mesmo esclarecimento ao New York Times: eles trabalham sobre o trabalho de outros órgãos de comunicação e não só sobre os políticos. "Temos de esperar que a poeira assente e olhar para os padrões e coisas que haverá para gozar", dizia Mike Sweeney, guionista chefe de Conan O'Brien. Nos programas da semana passada, as intervenções públicas de Obama foram comentadas no Daily Show. Mas não eram piadas sobre a figura do Presidente. Eram sobre a cobertura da conservadora Fox News ou sobre a equipa de transição que trabalha com Obama.
A comédia televisiva portuguesa também não deixou escapar o filão eleitoral americano. Jel levou Vai Tudo Abaixo (SIC Radical) aos EUA durante a campanha, a nova sensação de audiências de fim-de-semana Caia Quem Caia (TVI) foi até Nova Iorque brincar com as eleições e Os Contemporâneos já tinham cunhado a personagem Buraka Obama, com Nuno Lopes ao leme. "Todos os problemas graves e crises são materiais prolíferos para o humor", conta o actor ao P2. "Mas eu prefiro que não as haja. Se a política nos Estados Unidos não tiver nada para ser gozada, melhor para nós. O humor há-de sempre ir buscar coisas novas. Se não puder ser mais cáustico ou agressivo com a política, passa a ser mais nonsense", exemplifica.
Uma das questões recorrentes na imprensa americana nos dias imediatamente antes e depois das eleições era não só de que vai alimentar-se agora o humor mas também de que falarão os americanos. O jornal satírico The Onion já fez um vídeo de notícias falsas com os apoiantes mais fervorosos de Obama a aperceber-se de que, após dia 4, não tinham vida própria e que lhes restava uma espécie de coma social.
Mas outra pergunta é se é possível gozar com Obama não só por ser a figura messiânica que os media construíram mas também pelo pequeno pormenor da sua etnia. A questão da "raça está aí e vai ser confrontada", promete Tracy Morgan, actor de Rockefeller 30. "O Presidente é negro e obviamente vamos ter de gozar com todas as situações imagináveis sobre um Presidente negro", respondeu ao New York Times. Quanto aos sátiros brancos, "se enveredarem por aí, é bom que sejam engraçados", avisa, porque os afro-americanos são afectivamente próximos de Obama.
Noutras áreas, como a do cartoon, desenhar Obama tem sido um desafio a dobrar. O cartoonista Steve Breen, vencedor de um Pulitzer, dizia ao Washington Post: "O facto de estar a receber queixas quanto às minhas caricaturas de Obama pode ser engraçado ou triste. Uma dizia que sou racista porque o meu Obama parecia um fantoche feito de uma meia." A comédia na era Obama será feita de piadas Obama com ou sem raça?
"Ser racista é pensar nisso quando se está a gozar", garante Nuno Lopes. "É pensar 'não vou gozar porque é preto ou branco' ou seja o que for. Se se tiver bom gosto e o ponto de vista certo, pode-se brincar com qualquer raça, com qualquer credo. Não há limite no humor nesse sentido e não deveria haver."
Os humoristas têm respondido de formas diferentes: Hipótese 1 - Obama não escapará se pisar em falso. Hipótese 2 - já viram as orelhas dele? "Obama está num estado de graça que obviamente vai passar", afirma Nuno Lopes. "Como Obama disse, 'Eu não nasci numa manjedoura'", recorda Liam O'Brien, professor de Media da Universidade Quinnipiac. Mas, como o próprio Barack também disse a brincar, o seu problema é ser "um bocado espectacular de mais".
Piadas Obama
Na noite a seguir à eleição de Obama, na assistência de um painel sobre as eleições no âmbito do Festival de Comédia de Nova Iorque, a sala pediu: "Piadas Obama!" Elas não chegaram. Na sexta seguinte, na sala de espectáculos de Los Angeles Comedy Union, o comediante Tommy Davidson fingiu que era um Obama alvejado após o discurso de vitória. A sala riu-se, mas não sem uma bolha de hesitação ter mantido o público em suspenso durante uns segundos.
Seis dias depois da ida às urnas, o Washington Post saudava a primeira verdadeira "piada Obama" - no palco do Kennedy Centre, Richard Belzer imitou o discurso de vitória, mas numa algaraviada em pseudo-árabe, evocando as associações do seu nome do meio ao terrorismo árabe. Isso é gozar com Obama ou é atacar o que outros disseram sobre ele?
E se não houver jogo desonesto? Se o tal erro Obama tardar a chegar? Bom, haverá sempre os restantes membros da administração e Rahm Emmanuel, o chefe de gabinete escolhido por Obama, já promete. Afinal, é conhecido pela prática do palavrão e o seu irmão inspirou a personagem Ari Gold de A Vedeta (SIC e MOV), um dos mais torpes e brutos agentes de talentos de Hollywood. E há sempre o vice-presidente - David Letterman, no seu Late Show, admitiu que Obama "não é fácil de gozar; vêem, é por isso que Deus nos deu Joe Biden". Ou então, como sugere ao P2 Filipe Homem Fonseca, argumentista de Fogo Posto (SIC Radical) e Bocage (RTP1), mesmo "engraçado agora vai ser ver a capacidade de todos os que o levaram ao colo de criticá-lo".
Na cidade de South Park parece não haver tabus. O episódio transmitido no dia 5 de Novembro incluía, ipsis verbis, excertos do discurso de vitória de Barack Obama. Depois revelava-se que, afinal, Obama e McCain estavam aliados num plano à Ocean's Eleven para roubar um diamante acessível apenas através da Casa Branca. Michelle Obama nem era casada com o 44.º Presidente, era tudo um esquema. E Sarah Palin era, afinal, uma intelectual, com sotaque britânico a condizer. O episódio terminava com o grupo que alimentou a comédia nos últimos meses a beber cocktails numa praia tropical, em honra da América.