Ferro Gaita
Há 13 anos que estes cabo-verdianos andam a espalhar o funaná tradicional pelo mundo. Está na hora de deixarem de ser um segredo: pode ser já amanhã, em Lisboa.João Bonifácio
Pergunta: ao longo de 13 anos de existência, quantas vezes é que os cabo-verdianos Ferro Gaita tocaram em Portugal?
Resposta de Eduardo, percussionista desde final de 1998: "Ui, mais de 50".
Então por que raio é que os Ferro Gaita são ainda, para a grande a maioria dos portugueses, um absoluto segredo, um nome que ouviram uma vez?
Talvez os portugueses não gostem de dançar. Talvez os portugueses vejam a TVI mas não vejam a RTP África, porque se vissem a RTP África sabiam que em Cabo Verde é difícil encontrar uma banda com tantos seguidores.
Já era portanto altura de toda o português saber quem são os Ferro Gaita e para isso não há melhor do que assistir a um concerto. Ainda por cima quando muito, muito bem acompanhados: os Ferro Gaitam tocam amanhã, dia 26, nas Tercenas do Marquês, em Lisboa, às 22h, mas a festa começa mais cedo. Às 18h há Kora Jazz Trio, e às 20h actuam o etíope Mulatu Astatké e os Heliocentrics, que fizeram, juntos, um dos discos do ano: "Inspiration Information", uma assinalável mistura de música etíope com funk desconstruído, uma bomba simultaneamente dançável e exploratória.
Os Ferro Gaita surgirão às 22h e, se tudo acontecer como é costume, será altura de dançar até sangrar. Isto não é exagero, como conta Eduardo.
Há uns anos, os Ferro Gaita deram um concerto numa quinta na Áustria "e houve um senhor que tirou os sapatos e foi para o palco dançar". Se já é apreciável provocar isto num austríaco, o que aconteceu a seguir é ainda mais extraordinário: "Ele não parou nem quando se cortou no pé e começou a sangrar. Um jornalista foi perguntar-lhe se não lhe doía o pé e ele disse que não sentia nada". Quando o jornalista lhe perguntou o que lhe tinha passado pela cabeça, o austríaco, eufórico, respondeu que "o ritmo não dava para parar".
Dançar até sangrar: com os Ferro Gaita é assim há 13 anos, desde a fundação da banda, e é assim graças à extraordinária revisitação que eles fazem do funaná. Na altura em que a banda foi fundada, conta ao telefone Eduardo, "o funaná estava um bocado parado". Carlos Alberto Martins (CAM), o homem do leme dos Bulimundo, tinha morrido e Iduíno, o líder dos Ferro Gaita, "foi a casa de um antigo tocador de gaita e pediu-lhe para o ensinar a tocar". Iduíno "já tocava trompete e tinha conhecimentos musicais", pelo que bastaram algumas lições até resolver fundar os Ferro gaita.
Na altura tinham só "ferrinhos baixo", gaita e bateria. "Depois o Iduíno convidou o cantor, o Bino Branco", completa . Hoje a formação conta com gaita e voz, ferro, percussão (congas), trombone de vara (que meteram há seis meses), trompete, ainda mais um homem que toca caneca (cowbell) e búzio. Búzio, não, búzios, que os Ferro Gaita usam três tipos: "O Bobone (que é o maior), o mebumba (que é menor) e o cornetinho (o mais pequeno de todos)". O búzio é instrumento típico da tabanka, "uma manifestação musical típica da ilha de Santiago em que as mulheres seguem atrás dos músicos - são elas que cantam".
Vale a pena esclarecer o que é o ferro e o que é gaita. O ferro é isso mesmo: um ferro estriado que funciona como reco-reco, impulsionando ritmos alucinantes. Não é, ao contrário dos ferrinhos portugueses, um triângulo. A gaita é um acordeão, introduzido na ilha pelos portugueses. Ao início era apenas isto, e quem viu imagens dos concertos deles em trio ficou estupefacto com a força brutal daquela música.
Como nos bailesO funaná dos Ferro Gaita é o mais primitivo que existe hoje. "O nosso funaná, comparado com o dos Bulimundo, é diferente. O CAM trouxe o funaná para a cidade, pôs-lhe sintetizadores, mas o Idulino trouxe o funaná com ferro e gaita, tradicional, mais puro, como se tocava nos bailes". É dessa tradição, que Iduíno ainda conheceu, que vem a força dos Ferro Gaita.Lentamente a banda foi adoptando outros estilos e adicionando músicos. Juntaram ao reportório a tabanka, depois o batuque, "um estilo em que 20 mulheres fazem uma batida com um embrulho de plástico que está atado à perna. Uma canta e as outras fazem coro. Duas dançam, que é uma parte muito bonita". Mais tarde adicionaram também o talaia baixo, um estilo tradicional da Ilha do Fogo. "É um estilo próximo da coladera", explica Eduardo, "mas tocado com a gaita. Tem de ser cantado com o crioulo da Ilha do Fogo".
Disco após disco - e já vão cinco de originais - os Ferro Gaita vão "investigando à procura do passado". "No primeiro gravámos funaná, no segundo funaná e batuque, no terceiro funaná, batuque e tabanka, e fomos sempre trazendo géneros novos ao nosso repertório". É um mundo que nunca acaba, porque Cabo Verde é muito mais do que mornas e coladeras, como o prova "Badyo", o último disco de Mário Lúcio, em que todos esses géneros são recuperados. "Nós só em Santiago temos mais de dez estilos de música: a mazurca, o batuque, a talabanka, a ladainha (que fala de raça e de morte), e muito mais", diz Eduardo.
Portanto, preparem-se para a noite de sábado. Levem sapatos confortáveis, porque, como diz Eduardo, "o baile dos Ferro Gaita não é o das crianças ou o dos velhos ou o dos jovens, o baile dos Ferro Gaita é tudo a dançar". Porquê? Porque "O ritmo dos Ferro Gaita é muito quente". "Tem de mexer o corpo, não dá para estar parado".
Ver agenda de concertos na pág. 43 e segs.