Um dia igual, um dia diferente
Um cancro levou o meu irmão de repente: ainda novo, com 61 anos. Sinto que a prevenção do meu irmão a quem fuma é esta: “Cuidado! Fumar faz cair o cabelo.”
É lema conhecido: todos iguais, todos diferentes. O mesmo pode dizer-se dos dias: têm 24 horas, mas todos são diferentes – pelo tempo que faz, pela hora a que o sol nasce ou se põe, pelo calendário. Repetem-se, todos os anos; e, repetidos, podem ser diferentes. O traço distintivo é a memória que assinalam ou o valor que celebram: um aniversário; ou a referência social que lhe associamos.
O dia de hoje distingue-se por ser Dia dos Irmãos – festejamos os irmãos e a sua relação. Foi em 18 de Setembro de 2014 que a assembleia geral da Confederação Europeia de Famílias Numerosas (ELFAC) resolveu instituir o Dia dos Irmãos, fixando-o a 31 de Maio a nível europeu, e iniciou a sua celebração anual, na sequência de uma primeira experiência estreada em Portugal nesse ano.
Já havia dias para tudo, não ainda para celebrarmos irmãs e irmãos. E, todavia, termos irmãos, sermos irmãos, é a relação mais forte, mais próxima, mais duradoura na nossa vida. Há irmãos que se dão mal, não só os que se dão bem. Há os que só têm um irmão ou irmã e os que têm muitos. Há os irmãos de idade próxima e os de idades afastadas. Há irmãos dos dois pais e meios-irmãos, só de mãe ou só de pai. Há ser o mais velho e ser o mais novo. Há os gémeos e os que o não são. Há ter só irmãos, ou ter só irmãs, ou tê-los de ambos os sexos. Mas seja qual for o quadro, é singular e fortíssima a relação de irmãos. Prolonga-se e alarga-se por tios, primos e sobrinhos. Há sobrinhos, filhos de irmãos, que nos são tão queridos como filhos. Há primos, filhos de irmãos dos pais, com que enturmamos como irmãos – os primos-irmãos. E os tios, irmãos dos pais, são os que têm connosco as conversas que os pais não têm, grandes camaradas de rectaguarda. É a relação de irmãos que estrutura a ampla relação familiar.
A lacuna já não existe. Ary dos Santos escreveu no poema que Fernando Tordo musicou para Paulo de Carvalho: “Natal é quando o homem quiser”. Assim é o Dia dos Irmãos: é quando o quisermos – não só quando nos lembramos dos irmãos, mas também neste dia que, a partir da afirmação civil, escolhemos para os celebrar socialmente. Hoje.
Existe uma petição. Aliás, três: uma, dirigida à Assembleia da República; outra, para as instituições europeias; e outra, para a ONU. Essas petições são instrumentos de divulgação e agregação – não se destinam a pedir para ser criado o que já está criado.
Será bom que qualquer dessas instituições públicas, superando partidarismos, o abrace e afirme também. Mas estes “dias” existem fora da deliberação política. Onde está a lei que criou o Dia do Pai? Ou da Mãe? Ou dos Namorados? Não há. Vivem de afirmações sociais. O Dia Mundial do Escutismo resultou dos próprios escuteiros, que adoptaram o Dia de S. Jorge. O Dia Mundial da Terra decorreu da proclamação de um senador americano que foi fazendo o seu caminho. O Dia Mundial da Voz foi uma decisão dos otorrinolaringologistas.
Os irmãos marcam-nos para sempre. São como nossa segunda natureza. Na minha circunstância, só tive um irmão. Melhor dito, só tenho um irmão. É facto que já morreu; mas nunca deixei de o ter. Só vivendo, percebemos o que estou a dizer. Não o entendia antes.
Um cancro levou-o de repente: ainda novo, com 61 anos. Um cancro de pulmão de células pequenas: terrível! Um cancro de fumador, particularmente agressivo. Num ano, deixámos de o ter connosco. Foi diagnosticado em Fevereiro; morreu em Março do ano seguinte.
O meu irmão tinha qualidades extraordinárias, não só de inteligência, trabalho e dedicação, mas também de temperamento e alegria. Crescemos muito, cultivando sentido de humor diante da vida, das situações e das dificuldades. O desenvolvimento do cancro teve duas fases: uma, em que pensou num milagre; outra, de contra-ataque inexorável do bicho. Numa das últimas semanas, fui almoçar com ele perto do seu trabalho. Não tinha cabelo, por causa da quimioterapia. Ao sairmos para o restaurante, cruzámo-nos com umas jovens, colegas dele, que fumavam à porta do edifício. O meu irmão, sorrindo muito, olhou para elas e disse-me: “Zé! Eu já disse a estas meninas para terem cuidado: fumar faz cair o cabelo.” Elas sorriram também. Sorriso contido.
Nunca o ouvi lamentar a sua sorte. Mas o meu irmão gostava muito de viver. Adorava a vida. Sinto que partiu triste. Gostava de ter mais tempo. E tinha muito para fazer.
Tenho sempre dúvidas sobre se estas coisas funcionam, pois também fui grande fumador e as recomendações não funcionavam comigo. Mas sinto que a prevenção do meu irmão a quem fuma é esta: “Cuidado! Fumar faz cair o cabelo.”