Série Mar Português: pode um navio contar a história da pesca do bacalhau?

Foto
O Argus à chegada a Portugal, em 2009, vindo das Antilhas Holandesas Foto: Paulo Pimenta

O autor é o australiano Alan Villiers, que na época já era um conhecido especialista em assuntos náuticos. Era comandante da Marinha australiana e tinha-se tornado repórter da revista National Geographic, além de ter no currículo vários livros, como aquele em que acompanhou, na década de 1920, uma expedição norueguesa de baleeiros à Antárctida.

Deu-se a coincidência de Villiers se ter encontrado, em 1949, com o embaixador português em Washington, Pedro Teotónio Pereira, que o convidou para acompanhar a frota portuguesa de bacalhoeiros na sua viagem anual à Terra Nova e Gronelândia.

“Ainda havia, disse-me ele, pelo menos 35 veleiros a participar nesta histórica campanha pesqueira, provenientes de Lisboa, do Porto, de Aveiro, da Figueira da Foz e de Viana do Castelo”, escreveu Villiers no prefácio do livro (reedição da Cavalo de Ferro, em 2005). “Quanto a mim, onde quer que houvesse 35 veleiros em operação, esse era o lugar onde eu queria estar.”

Convite inocente, em pleno Estado Novo, que propagava o “regresso de Portugal ao mar” como um desígnio? Nem por isso, mas lá iremos mais tarde. E assim, em 1950, Villiers aventurou-se na campanha do bacalhau, que começou, como muitas outras na época, com a reunião dos navios em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, para a bênção da frota e missa, com os pescadores, os capitães, os marinheiros, as mulheres e os filhos e os altos dignitários da Igreja e do Estado na assistência, contou-nos ele.

Naquele ano, a frota portuguesa tinha 32 veleiros, além de 30 navios-motor e 18 arrastões modernos. Mais de 3000 pescadores iam, todos os anos por volta de Abril, para aquelas paragens do outro lado do Atlântico. Com sorte, cinco meses depois, no final de Agosto, teriam os porões carregados de peixe para poderem voltar a casa.

“Esta era a última frota à vela ainda em operação na Europa inteira. Tratava-se dos últimos veleiros de pesca, simples e despojados, que lutavam para retirar o sustento do fundo do mar (...), pescando de forma tradicional, com linhas e anzóis, usando aqueles pequenos botes a remos chamados dóris. No convés do Argus havia montículos de dóris — dez deles, com seis dóris cada um.”

Só já os portugueses apanhavam bacalhau assim: um só homem num dóri afastava-se do navio-mãe, desde centenas de metros até algumas milhas, a remos e depois, se havia vento, içava uma vela artesanal, e pescava à linha. Só quando tinha o pequeno bote cheio, ao fim de horas e horas, é que regressava.

“Devido à crónica de Alan Villiers, o Argus tornou-se o mais conhecido navio bacalhoeiro português no estrangeiro”, sublinha, na introdução na edição de 2005, o historiador Álvaro Garrido, da Universidade de Coimbra e actual consultor do Museu Marítimo de Ílhavo. “Só o Gazela I e o Creoula rivalizaram na fama.”

Também Aníbal Paião, sobrinho-neto do capitão do Argus nessa campanha, Adolfo Simões Paião Júnior, então com 52 anos, atribui a Villiers a fama deste navio. “Fez um filme, fez grande número de fotografias que correram o mundo e o livro, que é traduzido em 12 idiomas, tem uma linguagem acessível, muitos pormenores e é agradável de ler. O Argus passou a ser mítico, conhecido em todo o mundo, precisamente por causa deste livro”, considera Aníbal Paião, sócio da empresa de bacalhau Pascoal.

Ainda antes da saída do livro, Villiers publicou uma reportagem no jornal New York Times, conta por sua vez Álvaro Garrido. E a promoção do documentário (“The Bankers — The Voyage of the Schooner Argus”) e do livro, cheio de fotografias, passou por um périplo do autor com conferências por diversas cidades norte-americanas. As rádios transmitiram também as suas palestras e as televisões partes do filme. No Reino Unido, por exemplo, a BBC entrevistou Villiers duas vezes.

“Independentemente de utilizarmos navios à vela, que mais tarde desapareceram por uma série de circunstâncias, também o tipo de pesca, com dóris, estava a desaparecer”, contextualiza Aníbal Paião. “Havia um duplo risco de desaparecimento — do tipo de navio utilizado e do tipo de pesca praticada nesse navio —, daí a importância deste livro.”

Antes de passarem para os arrastões, os franceses pescavam bacalhau com dóris, que no seu caso transportava dois homens: “Mas, progressivamente, foram abandonando essa actividade, que nós levámos até ao limite do que é razoável. Tornou-se obsoleta, além de ser uma vida duríssima e perigosa. Já viu o que é estar no meio do Atlântico numa casca de noz, numa embarcação de madeira? De um momento para o outro, levanta-se mau tempo, vem uma névoa...”

Numa linguagem viva, Villiers dá conta desse momento em que, depois de uma longa espera por isco em São João da Terra Nova, no Canadá, chegaram aos bancos ao fim de um dia de viagem e os homens estão prestes a sair nos dóris. “O mar ainda estava agitado, mas o vento fraco, e o Argus abanava e oscilava. Eu teria hesitado em lançar até um bote salva-vidas a não ser que fosse absolutamente necessário; mas agora aqui estávamos nós, prestes a arriar mais de 50 dóris e a largá-los naquele mar. Mesmo ao cabo de 30 anos passados em navios, aquela era para mim uma experiência de navegação completamente diferente. Até agora, o mar tinha sido sempre uma forma de suportar o navio e (...) de movimentar cargas de um ponto do globo ao outro. Se não estivéssemos no porto, permanecíamos no navio.”

Mais à frente: “E agora, aqui estava um navio que alegremente lançara ferro nos bancos, no meio do mar aberto, a milhas de qualquer terra e de qualquer abrigo (eu, na minha experiência, nunca ancorara num local onde não fosse pelo menos parcialmente resguardado) e se ocupava então a lançar a tripulação em botes pequenos e frágeis, sem levarem sequer um colete salva-vidas consigo.”

Como era então um dia de trabalho num bacalhoeiro? O relato que Aníbal Paião faz de olhos fechados sobre aqueles tempos não é muito diferente do que se encontra no livro de Villiers. “Normalmente, a tripulação levantava-se às quatro horas da manhã, para dar os louvados, que era encomendar a tripulação ao Senhor Deus para que tudo corresse bem durante o dia da pesca. Depois de uma refeição, a primeira grande tarefa era pôr os dóris na água”, conta Paião, que além de sobrinho-neto, é ainda filho, neto e bisneto de capitães de navios do bacalhau (o seu pai foi piloto e imediato no Argus, já depois da viagem de Villiers, quando ainda Adolfo Simões Paião Júnior era o capitão, e mais tarde comandou este navio).

Uma vez afastados do navio, os homens largavam ao mar o trole, uma linha enorme com centenas de anzóis e tendo como isco lulas congeladas ou umas aves marinhas chamadas pombaletes. “E enquanto aguardavam por alar o trole, iam utilizando a linha de mão para apanhar algum bacalhau que estivesse por ali. Depois de alarem as linhas e recolherem o bacalhau, se o dóri estivesse completo regressavam ao navio. Tinham de garfar o peixe, usando um garfo especial, para bordo do navio.”

A meio do convés do navio, montava-se então uma fábrica para processar o pescado: “Para tirar a cabeça ao bacalhau, que ainda usamos — a famosa cara do bacalhau e a língua. Depois, tinham de se tirar as vísceras e escalar, que é abri-lo na configuração seco que vemos por aí, e tirar-lhe a espinha até ao umbigo.” No bacalhau, tudo se aproveita, pelo que, por exemplo, o samo, que é a bexiga-natatória, também se salgava para fazer feijoadas e petiscos.

Lavado o bacalhau, ele ia para o porão, onde lhe atiravam com colheres de sal para cima e o iam empilhando. “Um navio de pesca nunca está cheio”, dizia o capitão Adolfo, na descrição de Villiers, “é sempre possível encontrar espaço para mais um bacalhau”.

“Outro aspecto de grande dureza é que a tripulação tinha de trabalhar até ter o peixe processado”, relata Aníbal Paião. “Enquanto houvesse peixe não havia cama para ninguém. O peixe estava em primeiro lugar. Claro que, quando havia muito peixe, havia muita alegria, porque toda a gente estava a ganhar dinheiro e a encurtar o tempo de viagem. Mais depressa recebiam a sua soldada.”

Tomavam depois uma refeição e iam descansar — e tudo recomeçava às quatro da manhã. “Quando estava mau tempo, faziam reparações, isto quando podiam estar no convés. Os navios eram desabrigados, tinham uma borda baixa, mais ainda quando estavam carregados, e o mar galgava com frequência.”

Mas para Álvaro Garrido, a narrativa de Villiers tem de ser lida também à luz da situação política do país, sob a ditadura de Salazar, e nada da sua divulgação foi deixado ao acaso: “A face cruel do trabalho dos pescadores do Argus apenas lhe mereceu referências marginais. À denúncia realista do quotidiano dos pescadores-marinheiros portugueses, o autor australiano preferiu o fresco literário, harmónico e belo”, diz na introdução do livro o historiador. “O livro de Villiers reunia boas condições para se converter num óptimo elemento de propaganda do programa político de reanimação das pescas e do ‘reencontro de Portugal como mar’”, refere Álvaro Garrido, acrescentando que “a exaltação da campanha do bacalhau por um importante escritor estrangeiro seria [utilizada como] a prova de que o desígnio do ‘regresso de Portugal ao mar’ se vinha cumprindo”.

Nessa altura, os bacalhoeiros portugueses já eram conhecidos como a White Fleet, ou Frota Branca, imortalizada entre 1943 e 1945, na II Guerra Mundial, e que o livro de Villiers ajudou a perpetuar. A ordem para pintar os navios de branco partiu do Estado-Maior Naval para facilitar a navegação em comboio e em segurança dos bacalhoeiros. “Até aí, os armadores pintavam o navio a seu gosto. O Santa Maria Manuela era cinzento, o Creoula e o Argus tinham a cor de sangue de boi”, conta Aníbal Paião. “Portugal não entrou na guerra e, fruto de uma política de neutralidade, conseguiu manter sua frota bacalhoeira em funcionamento. Mas para que os navios não fossem abatidos pelos submarinos alemães no Atlântico, passaram a ter os cascos pintados de branco, com a bandeira portuguesa pintada e letras garrafais a dizer ‘Portugal’.”

Antes disso, houve navios que foram afundados, como o Maria da Glória, em 1942, como também narrou Villiers. Morreram 36 homens, apenas seis sobreviveram. “Um enorme submarino alemão, que tinha estado a disparar da superfície da água, aproximou-se para dar o golpe de misericórdia no Maria da Glória.”

Expoente máximo da Frota Branca, o Argus foi construído na Holanda em 1938 e, no ano seguinte, já participava na campanha do bacalhau. Com quatro mastros e casco de aço, pertencia, tal como o Gazela I e o Creoula, à empresa Parceria Geral de Pescarias.

Até 1970, manteve-se como bacalhoeiro, altura em que se reformou, já obsoleto. Mas em 1974 iniciava uma nova vida, com a venda a uma empresa canadiana e, depois, uma norte-americana, a Windjammer, com sede em Miami. “Essa empresa era de um comandante de submarinos, Tim Burke: comprava navios antigos em mau estado e transformava-os, para montar operações comerciais nas Caraíbas”, conta Aníbal Paião. “O comandante Tim Burke transformou o Argus com a configuração que vemos hoje: um navio de passageiros para 125 pessoas. Não gostamos dele com aquele convés, aquele acrescento, aquele pavimento que foi criado, mas isso permitiu que se salvasse. Esteve a cumprir uma actividade económica.”

Na nova vida que encarnou, o Argus passou a chamar-se Polynesia II, em homenagem a uma embarcação que Tim Burke tinha perdido. Desde o final da década de 1970, o navio trabalhou nas Caraíbas cerca de 30 anos, praticamente tantos quanto tinha sido um navio de pesca do bacalhau. “Toda a gente gostava dele, tinha inclusivamente uma alcunha. Era o Poly.”

Claro que a edição inglesa do livro de Villiers que recordava a vida anterior do navio, The Quest of the Schooner Argus, fazia parte da sua biblioteca como cruzeiro turístico. “Toda a gente sabia que era um navio histórico português da pesca do bacalhau.”

Portanto, o Argus já teve duas vidas? “Teve duas vidas, a caminho da terceira, assim esperamos”, responde Aníbal Paião. É que as voltas do Argus-Polynesia II voltaram a ficar trocadas em 2006, quando Tim Burke morreu. “Os seis filhos do comandante Burke não se entenderam quanto à gestão da empresa e este navio acabou por ser abandonado em Aruba, nas Antilhas Holandesas. “Nós, que gostamos de navios, sabíamos que tinha sido abandonado lá.”

Havia dívidas acumuladas que era preciso pagar, como o estacionamento na marina, pelo que foi apreendido. “Ficou à ordem do tribunal e o juiz seguiu os trâmites normais: marcou um leilão e, com o produto da venda, pagava-se aos credores.”

Foi a leilão uma vez, mas não apareceu ninguém interessado nele. Foi a leilão segunda vez, e nada. Estava muito velho, a precisar de grandes reparações. “O juiz marcou um terceiro leilão e fez saber o seguinte: ou aparece alguém para comprar o navio ou o tribunal se encarregará de o vender para ser desmantelado e pagar aos credores.”

Foi então que a história familiar de Aníbal Paião, de Ílhavo, “capital do bacalhau”, entrelaçada com a do Argus, voltou a cruzar-se de perto com a do navio. “Para mim, que tenho toda a família ligada a este navio, era uma dor de alma. Nessa altura, o coração começou a bater mais forte. Na Pascoal, eu com o meu sócio, fomos falando: será possível que Portugal deixe perder o que de melhor tem o património marítimo português, um navio conhecido em todo o mundo, com uma história fantástica?”

Em 15 dias, montaram uma operação para o resgatar. “Tínhamos de saber em que condições estava, que dívidas tinha...” Em Aruba, os leilões são decrescentes: “Fazem muito mal ao coração. Há um ‘tecto’ e depois vai-se andando para baixo. Se alguém levanta a mão, já não há hipótese, o leilão acaba.”

Partindo de 110 mil dólares, ao segundo valor pedido, de 90 mil dólares, os portugueses levantaram o braço e assim, no início de 2009, o Argus passou a ser de novo português, para se juntar a outro bacalhoeiro que entretanto tinha recuperado pela Pascoal, o Santa Maria Manuela, irmão gémeo do Creoula, ambos construídos nos estaleiros da CUF em Lisboa em 1937. “A contratação de um reboque para o trazer das Caraíbas é que tornou dispendiosa esta operação. Neste momento, as despesas associadas ao navio são de 750 mil euros.”

Os sinais da velhice são evidentes logo no casco, ou não estivesse a sua brancura manchada pela ferrugem. E, agora, que vida o espera? “Será recuperado para voltar a navegar e esse é o nosso sonho. Mas precisamos de avaliar o estado do casco do navio e ver se apresenta debilidades sérias que tornem a recuperação inconcebível do ponto de vista financeiro”, diz Aníbal Paião, que mantém um blogue sobre ele em http://polynesia2.blogspot.pt. “Ou, se isso não for possível, admitimos fazer uma recuperação ligeira e mantê-lo acostado num cais, fazendo um núcleo museológico que conte a história da pesca do bacalhau e do navio e dê algum apoio em termos de hotelaria e restauração.”

Se o Argus for recuperado para navegar, a ideia é utilizá-lo no mesmo esquema do Santa Maria Manuela. Também ele, que fez a sua última campanha ao bacalhau em 1992, iria para a sucata e ser demolido. Mas apareceram várias entidades, que criaram uma fundação para preservar o casco, recuperar o navio e associar-lhe um projecto de exploração económica. Essa fundação não conseguiu reunir os fundos necessários e a Pascoal acabou por comprar o Santa Maria Manuela em 2007. Após uma recuperação de cerca de oito milhões de euros (a do Argus não custará menos), navega desde 2010 como “um prestador de serviços na área do turismo”, diz Aníbal Paião. Vende viagens, que podem ter questões culturais e científicas como tema.

Da mítica Frota Branca Portuguesa, sobreviveram até hoje, além do Argus e do Santa Maria Manuela, o Creoula e o Gazela, também à vela e personagens, ainda que secundárias, no livro de Villiers. O Creoula, que andou no bacalhau até 1973, foi comprado pelo Estado no final dessa década e, desde 1987, é operado pela Marinha portuguesa como navio de treino de mar, permitindo a milhares de pessoas contactarem com a vida no mar. Já o Gazela I encontra-se em Filadélfia, nos Estados Unidos, onde também trabalha como navio de treino de mar, operado em voluntariado por uma fundação. Agora a frota portuguesa de pesca longínqua ao bacalhau faz-se com 13 arrastões, dois dos quais da Pascoal.

Como é que um país se mantém cinco séculos a comer um peixe, que nem tem nas suas costas e que o pesca desde que no início do século XVI os irmãos Corte Real chegaram à Terra Nova, ou à Terra dos Bacalhaus, como lhe chamaram? A resposta imediata é a procura de proteína animal, que pode conservar-se salgada e seca, num país historicamente pobre.

Esta longa relação de um povo com um peixe pode vislumbrar-se na história de um navio. O Argus ajuda ainda a contar a história de uma guerra, do país, do seu regime político, de milhares de pescadores. E também da família Paião.

Amanhã, o 13.º e último trabalho da série Mar Português: Para onde vai o nosso turismo de sol e mar? Esta série tem o apoio da Caixa Geral de Depósitos
Sugerir correcção
Comentar