O que 130 cabras podem fazer por 19 pessoas
Um projecto de rebanho colectivo financiado por um concurso de ideias portuguesas da Gulbenkian acabou por dar nome a um lugar minhoto onde pouco se passava. A grande dificuldade foi recrutar um pastor. Nem chamando-lhe “produtor animal em territórios de montanha”. O estigma sobreviveu.
Albertina da Cunha, 95 anos, está surda. As imagens em movimento da televisão não lhe bastam e sem som não percebe muito do que lá se passa. António, o filho que tem na Suíça, ofereceu-lhe aqueles binóculos Leica para a mãe pelo menos ter onde entreter o olhar na paisagem serrana à volta do lugar de Grijó. Para isso não precisa de ouvir.
Instala-se junto à janela num banquinho umas dez a ou 20 vezes por dia, a horas variáveis, sem critério, como se precisasse de estar sempre actualizada em relação ao que vai passando lá fora. Observa as variações que chegam com a mudança das estações e as condições do tempo, detém-se num ou outro carro que raramente passa, detecta uns trabalhadores a fazer pequenas obras ocasionais. É como se Albertina da Cunha passasse os dias a olhar para um filme mudo onde não acontece quase nada. Mas isso era dantes.
O olhar amplificado de Albertina persegue, desde Janeiro, os movimentos de um rebanho colectivo de cerca de 130 cabras que ali se instalou depois de duas pessoas da freguesia de Rio Frio e um emigrante a viver na Suíça, terem ganho, há cerca de um ano, o primeiro prémio da quarta edição do concurso anual de empreendedorismo social organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian Faz-Ideias de Origem Portuguesa. Os vencedores deste ano serão anunciados hoje.
Albertina ganhou novas rotinas. Vê as cabras a galgarem o monte por volta das 9h, com os três cães, ainda só um tem nome, o Rafael, e o pastor que é pessoa nova em Grijó. Eles são só 19 habitantes, ou 17, dependendo do método de contabilidade. Depois, os animais voltam ao abrigo ao meio dia, tornam a sair às 14h, terminam o dia por volta das 17h. Há cabritinhos pequenos que se vêem crescer.
“É um distraimento”, diz Custódia da Cunha, a mais nova das mulheres, 67 anos, filha de Albertina, que é quem descreve aquela forma que a mãe tem de passar o tempo. Custódia não usa binóculos, mas é como a mãe. “Gosto de ver os animaizinhos pular os campos, os cães, o pastor. Estava tudo isolado.” Estão em Grijó, um dos 16 lugares (não aldeias) da freguesia minhota de Rio Frio (concelho de Arcos de Valdevez, distrito de Viana do Castelo).
Parece pouco, um rebanho de cabras, ainda mais sendo de cabras, numa hierarquia de animais do campo, aquele sempre foi animal desprezado. Mas é tanto.
“Era um lugar muito morto”, diz Vasco Ferreira de Castro, 78 anos. Há 30 anos que não nasce ali uma pessoa, só morrem. Mas no último ano nasceram 60 cabritos. “Alegria. é uma grande alegria ver os pequeninos. Foi uma grande coisa que foi feita por esta aldeia. Dá prazer. Os animais dão vida”, diz Emília Fernandes, 68 anos.
Depois, “cada vez que o pastor passa por nós acena”, conta Custódia entusiasmada por ter alguém de fora, novo, que os cumprimenta.
Mas não é só isso. Desde que o projecto ali se instalou “vêm pessoas a pé, vêm pessoas da freguesia ver”, conta Emília. “Era um lugar morto. Agora já se vêem algumas pessoas, que param para ver, que perguntam se é para continuar. Se valerá a pena”, continua Vasco.
“Aos sábados e domingos são para aí carros. São de fora, de outras freguesias”, diz Lucinda Pereira, de 77 anos. “A gente fala com eles”, completa Armindo Fernandes, de 83 anos. “O meu tio oferece café a toda a gente que passa”, completa a mulher, Emília.
Também vem gente do Porto, de Lisboa, até do estrangeiro. “Quando é que estiveram cá as francesas?”, pergunta Armindo à mulher. Não interessa o dia, o que é importante é que viram o rebanho e ainda ficaram. “Também foram à missa. Ficaram encantadas com a nossa capelinha.”
Alguns são turistas atraídos pelo projecto Pastor por Um Dia, que ainda está em fase experimental e em que qualquer pessoa pode vir acompanhar a rotina do pastoreio deste rebanho colectivo, mediante o pagamento de uma determinada quantia (dez euros por uma manhã ou uma tarde). Na próxima vinda serão neozelandeses, explica Joaquim Dantas, o mentor do projecto.
“Não é vulgar isto. Até já cá veio a TV. Ai, antes não vinha cá a TV não. As notícias eram entre nós”, diz Custódia. “Este lugar agora tem nome, não tinha. O Joaquim deu vida a este lugar. Ninguém falava em Grijó.” Dos 16 lugares que constituem a freguesia de Rio Frio, o mais famoso sempre foi o lugar da Igreja, por ter mais gente e por lá ficar a igreja, ou talvez Aveleiras. Mas nunca Grijó. Quem é que queria saber de Grijó antes do rebanho colectivo financiado pela Gulbenkian?
A última época em que Grijó foi motivo de atracção dentro da freguesia já foi há 20 anos, com o Bonito, o boi que emprenhava as vacas da freguesia. “Dizia-se ‘vou com a vaca ao boi a Grijó’”. Cada acasalamento bem sucedido pagava-se com 18 quilos de milho ao dono do animal, recorda Custódia da Cunha.
E nesse trazer das vacas os donos também “traziam novidades dos lugares deles. Quem tinha morrido, quem estava doente, quem nasceu, morreu. Era o nosso jornalismo”, acrescenta. “Há lugares da freguesia que sentem inveja.”
Depois o rebanho é fonte de novidades, tema de conversas. Emília Fernandes, de 68 anos, e o marido de 73 anos, João Fernandes, são os tais que os residentes permanentes hesitam em incluir na contabilidade dos habitantes do lugar. Porque passam o Verão em Grijó e o Inverno em França (são 17 habitantes mais eles os dois), para onde emigraram no final dos anos 1960.
São os únicos na aldeia com Facebook, cada um tem a sua conta, sublinham. Lá “postam” as novidades sobre o rebanho da terra, algo que não existia há 40 anos, para os amigos e os dois filhos em França estarem a par.
Custódia tem três filhos em França. Ana Odete foi há 22 anos, Maria Cristina há 18 anos e o mais novo, José Luís, que ainda foi o que se aguentou em Portugal mais tempo. Tentou vida no Porto, mas teve gémeos. Para conseguir pagar o empréstimo de casa ainda foi trabalhar sozinho para Andorra, mas acabou por se juntar aos irmãos, em França, há dez anos. Vieram todos na Páscoa. Para os netos mais pequenos as cabras foram um entretém. “Querem adoptar uma cabritinha.”
Foi essa uma das ideias apresentadas no projecto inicial, a adopção de cabras à distância como forma de reforço dos laços afectivos da comunidade emigrante às origens. Mas estão a ter dificuldades no processo de adaptação de uma plataforma digital onde estarão fotos das cabras adoptáveis, admite Joaquim Dantas. “Temos muitas pessoas em lista de espera.” Cada padrinho que adopte ganhará o direito de baptizar um bicho. Dantes as cabras nem tinham direito a nome.
As vacas sim, eram a Fidalga, a Bonita, a Linda, a Dourada. Os nomes repetiam-se mas a ideia era óbvia, o orgulho que se tinha em ser proprietário de vacas. Untavam-se-lhe os chifres com azeite para brilharem, tinha-se orgulho no pêlo luzidio que vinha da boa alimentação, conta o mentor do rebanho colectivo.
“Os ricos tinham vacas, ovelhas e cavalos”, conta Emília Fernandes. “Quem tinha cabras era pobre”, continua. E isso era visível até “no preconceito” em relação ao leite. E lembra o episódio sobre uma pessoa que se recusava a comer arroz-doce feito com leite de cabra e que um dia o comeu, ao engano, pensando que era feito com leite de vaca.
Era pastor de cabras quem não tinha campos seus. Porque as cabras comem tudo sem critério, giesta, tojo e silvas. Não é como as ovelhas e as vacas que precisam de prado de erva rasa. Nesse passado, era pastor de cabras quem não podia ser mais nada, comenta Joaquim Dantas. Talvez venha desse passado a dificuldade maior deste projecto de rebanho colectivo: o arranjar alguém que, em 2016, aceitasse ser pastor.
Procura-se “operador de pecuária”
Joaquim Dantas não teve grande dificuldade em comprar o rebanho de cabras. Custou cinco mil euros e veio com três cães incluídos. O problema foi recrutar quem o pastoreasse. “Há um estigma”, como se fosse um voltar no tempo. A Associação Território com Vida, criada para desenvolver o projecto, desenhou uma acção de formação específica e pediu ao Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) candidatos para a potencial vaga.
Mas perceberam que tinham de dar a volta à designação do curso. Havia que “florear” o nome, “torná-lo mais poético”. Não podia ser um curso para ser pastor de cabras. Ficou assim a chamar-se “Acção de Formação de Produção animal em territórios de montanha”, destinada a formar “Operador/a de pecuária”. “O que nós queríamos era um pastor, nunca quisemos um produtor animal em territórios de montanha”, diz a rir. Já houve câmaras municipais a contactá-los para replicar o modelo, de uma delas veio a sugestão de outra a designação, “técnico de gestão de ecossistemas.”
“Ninguém queria ir ao curso.” Era uma formação para desempregados. Acabaram por ceder com medo de perder subsídios. “Tenho a certeza de que não havia um único com vontade de ali estar.”
Os formandos não demoraram muito tempo a perceber o que encerrava a formação em “Produção animal em territórios de montanha”. Uma senhora deu-se ao trabalho de fazer 20 quilómetros para ir antes fazer um curso em “vitivinicultura, para fugir ao curso que desconfiava que era uma maneira fina de se chamar a um pastor”, diz.
Dos 23 formandos iniciais restaram 16 na parte de estágio, já na montanha. Aí desistiram mais três, entre eles uma das senhoras porque “os animais lhe causam alergias”. “No final acho que conseguimos criar um espírito de grupo. Fazíamos umas sardinhadas no monte. Alguns ficaram tristes quando chegou ao fim.” Foram consideradas aptas seis pessoas.
Foi escolhido António Martins, 48 anos, porque é pastor e algo mais, pega num martelo e resolve problemas. Foi quem construiu o abrigo de cabras, quem faz reparações quando é preciso. Era o pastor mais multifacetado. Começou em Março.
O recém-pastor deixa claro, no monte, entre os assobios que usa para juntar as cabras neste dia de chuva, que este não é um emprego de sonho: “Não se arranjando melhor... Não estava na minha ideia voltar a isto. Sou pedreiro. Era e sou. Agora virei pastor.” Mas já tinha cuidado de animais na infância.
Toda a vida trabalhou na construção civil na zona de Lisboa, com 20 anos, a ajudar a pôr de pé vivendas, prédios, a ponte de Santarém. Há uns dois anos, quando estava mais tempo parado do que a trabalhar, mas à mesma com a renda para pagar, voltou a casa dos pais, numa freguesia vizinha de Rio Frio. Ali ao menos não pagava pelo alojamento. Nem a mãe achou boa ideia ele ser pastor, não gosta que António ande sozinho pelos montes. “Tem medo que eu me perca no monte. Nunca me perdi em lado nenhum.”
O desafio para Joaquim Dantas foi criar um posto de trabalho de pastor, uma profissão antiga, com condições laborais de século XXI. Os animais precisam de ser apascentados todos os dias, incluindo fins-de-semana, feriados, férias. Os pastores antigamente nunca tinham descanso. Quem é que aceita trabalhar “de domingo a domingo?”.
“Há que criar conforto. Quero que o Sr. António tenha um horário.” Para que António tenha os fins-de-semana, costuma ser Joaquim e as duas estagiárias pagas pelo IEFP, Andreia Barreiro, uma geógrafa de 22 anos, e Marina Amorim, 23 anos, com formação em Informática de Gestão, a resolver o problema. Estão a construir uma vedação para que possam soltar as cabras sem pastor ao fim-de-semana.
E depois, “um pastor hoje tem mais que se lhe dia”. Tem de saber, por exemplo, responder às perguntas dos turistas sobre as espécies que se encontram pelo caminho. Essa será a fase seguinte. Dar formação a António Martins para que saiba dizer aos turistas o que se vê nas serras escarpadas por onde seguem as cabras da raça serrana e bravia.
A calças Lois e o walkman
Joaquim Dantas, 48 anos, conhece bem aquela serra. É do lugar ao lado de Vila Franca, ao lado de Grijó, onde vivem umas 35 pessoas. Houve um tempo em que “o meu mundo não ia muito além da última serra que via, a serra Amarela. Para lá da serra não sabia o que havia”.
Os pais eram agricultores, tinham quatro vacas. A ele cabia-lhe voltar da escola, soltá-las, esperar que pastassem e recolhê-las por volta das 21h-22h. Andavam muitas crianças na escola primária, mas só uma dúzia dos seus colegas não emigraram e apenas dois ou três filhos de agricultores foram estudar para “a vila”, Arcos de Valdevez, que fica a 14 quilómetros de distância. Era preciso andar dois quilómetros a pé e depois apanhar uma camioneta onde hoje continua a haver uma paragem mas onde já não há miúdos à espera.
A “vila” metia medo. Era um sítio grande, com adolescentes da idade dele mas que tinham electricidade em casa e viam televisão. Ele tinha vergonha de dizer que vigiava vacas, que estudava a candeeiro de petróleo. A electricidade, e a televisão, só chegou aonde vivia em 1982, quando já tinha 14 anos. “Os da vila falavam de coisas que eu nem imaginava.”
Um dia no liceu surgiu a notícia de um concurso nacional do Instituto Português da Juventude, Descobre a tua Terra, e ele decidiu que ia concorrer falando do lugar de Vila Franca. Com o texto sobre o seu lugar ganhou. “A aldeia algum encanto teria.” O prémio era um cruzeiro às ilhas gregas. E ele que nunca tinha ido a Lisboa ou ao Porto.
Pensou que se na vila já era diferente por ser da aldeia o que faria com os outros concorrentes, miúdos da cidade. Antecipou o “estigma do provinciano”. Ia tentar não fazer má figura. Tinha de se modernizar à pressa, ri-se a contar.
Modernidade era para si, na altura, usar jeans. “Um dos meus sonhos era ter umas calças de ganga.” Comprou um par, umas Lois, e um walkman. Se não se integrasse podia ficar a ouvir música sozinho. Lá foi, modernizado. A mãe recomendou-lhe que tivesse cuidado com as passadeiras e que não aceitasse nada de estranhos.
Na viagem, os outros falavam com grande entusiasmo de uma coisa que ele não sabia o que era. “Devia ser divertimento”, pelo tom. Não deu parte fraca. Quando pararam em Barcelona e foram todos ao tal Mcdonalds imitou os outros. “Ninguém percebeu que eu não sabia. Fiz de conta.”
Acabou por se licenciar em Gestão no Porto e por passar 15 anos da sua vida em departamentos financeiros de empresas naquela cidade, a vida em torno de números e papéis. Quando vinha a altura de a empresa ser auditada chegava a fazer duas directas seguidas. E isso começou-se a notar. Começou a sofrer de taquicardia e era internado por uns dias até o ritmo cardíaco voltar ao normal. Ainda foram umas três ou quatro vezes, a seguir a auditorias. Decidiu “regressar”.
Ainda instalou um gabinete de contabilidade em Arcos de Valdevez, mas depois começou a olhar para o sítio de onde tinha saído com outro olhar. A achar piada ao que era tão natural que não se percebia que era único, “a curiosidade em torno de coisas que nos diferenciam no mundo”, e que já estava no texto que lhe ganhou o cruzeiro às ilhas gregas. Como o pão, mais propriamente a broa de milho de Arcos de Valdevez. Joaquim restaurou uma escola primária abandonada, onde se ensinou a fazer a tal broa, que conseguiu que fosse incluída no catálogo internacional Slow Food, e mais tarde transformou-a em alojamento local.
Nos seus dias matuta em formas de não deixar morrer lugares rurais como aqueles. Como é que se atraem pessoas para as aldeias? Passam-lhe várias ideias pela cabeça. Será que pessoas que são mendigos nas cidades não aceitariam viver de forma digna nestes lugares? Não sabe. Ao todo a freguesia terá 500 pessoas, perde 250 pessoas de censo a censo. “Há freguesia para 15 anos...”
A ideia do rebanho surgiu não para atrair, mas pelo menos para manter os poucos que aqui continuam a viver. Via que o “maior drama é ter as silvas quase a entrarem-lhes pela casa”, a vegetação a crescer de forma desmesurada, pessoas envelhecidas sem forças para controlar o mato a crescer nos baldios, terrenos que não são de ninguém e são de toda freguesia. As cabras, o que elas comem, atrasam incêndios, estava comprovado.
“Isto já é obra delas. Isto era um matagal” e mostra como até a giestas já altas elas chegam. Calcam-lhes o pequeno tronco, que é como se fosse uma miniárvore, e trazem-nas para baixo para as devorar. E também comem silvas com espinhos e tojos, vegetação que é “como se fosse petróleo”. O último incêndio em Grijó foi em 2009.
A prevenção de incêndios era o grande objectivo que consta da descrição do projecto que lhes valeu o primeiro prémio e os 25 mil euros: “Aproveitar os recursos abandonados ou pouco explorados, neste caso o pastoreio em 400 hectares de terrenos baldios e minimiza-se o risco de incêndio diminuindo a carga combustível no território.”
Mas na formação dada pelo Instituto de Empreendedorismo Social aos candidatos dos dez projectos finalistas do concurso da Gulbenkian, Joaquim Dantas ouviu falar, pela primeira vez, do conceito de “externalidades positivas” dos projectos de economia social. Ele estava mais habituado à linguagem do lucro e da gestão. Na prática, são coisas boas que acontecem por causa dos projectos, mas que não estavam previstas. Como a animação trazida pelas cabras que Albertina da Cunha passou a ver através dos seus binóculos, as vantagens do aceno de um pastor vindo de fora, o orgulho de ver turistas nacionais e estrangeiros a parar para fazer perguntas e de ver chegar tanta gente para lhes verem as cabras.