O miúdo do momento
O miúdo que eu admiro é aquele que eu gostaria de ter sido, 55 anos antes.
Há um miúdo que conheço que deve ter nascido nesta década. Trepa muros e telhados. Enfrenta os adultos e o juízo como um touro bravo enfrenta uma assembleia organizada de forcados.
É destemido, irrequieto e espontâneo. Dá cabo das nossas cabeças. É inteiramente livre. Tem irmãos e tem uma bola. Não precisa de mais brinquedos. Brinca no meio da rua com todas as brincadeiras – perigosíssimas mas divertidas – que a rua tem para oferecer.
Vive no momento como se estivesse no século XVIII. Não é o contrário das crianças que gostam de videojogos porque se calhar, quando cai a noite e se torna impossível ser-se verdadeiramente o verdadeiro Peter Pan, também gosta de videojogos, porque os videojogos também não são maus.
Como tem o cabelo muito comprido pensei que fosse uma menina. Não, não é, esclareceu um dos irmãos, inteligentíssimo, curioso e igualmente rebelde. Fala comigo como igual. È justo: não ficou ofendido. Não há distâncias nem falsas diferenças. Entre nós só se perguntam perguntas boas e só se respondem verdades.
O miúdo que eu admiro é aquele que eu gostaria de ter sido, 55 anos antes. Não chora pelo que não tem. Excita-se por tudo o que o mundo já tem. Tudo o que já existe – ruas, cães, pessoas, alturas, obstáculos, chuvas e caixotes deixadas para o lixo – é, para ele e para os irmãos, a maior das heranças; muito melhor do que quaisquer compras: a vida, tal como é.
Temo pela vida dele mas agradeço a vida que ele me deu.