O Happy Meal é sexista?
Uma coisa é respeitar a diferença. Outra é esbater as diferenças até ao ponto da mais estéril igualdade.
A minha amiga Fernanda Câncio, que tem um belíssimo radar para estas coisas, escreveu no DN um artigo sobre a McDonald’s e aquilo que ela classifica como uma “prática de discriminação por género”: a existência de um “Happy Meal rapariga” e de um “Happy Meal rapaz”. A Fernanda descobriu dois questionários distintos nas caixas do My Little Pony e dos Transformers. Na primeira caixa, as perguntas estavam no feminino (“Estás pronta para te juntares à equipa?”), na segunda caixa, no masculino (“Estás pronto para te juntares à equipa?”). Ora, parece que não pode ser. Enfiar o My Little Pony nas mãos das meninas e os Transformers nas mãos dos meninos é perpetuar séculos de opressão masculina e de subjugação feminina, porque toda a gente sabe que a Pinkie Pie não tem hipótese contra o Megatron. O mais giro disto tudo: a McDonald’s pediu desculpa. A sério.
Lamentou a McDonald’s Portugal: “Concordamos que a tradução da colecção My Little Pony + Transformers não terá sido a mais adequada, por fazer distinção de género. Não é, nem nunca foi, nossa intenção criar qualquer tipo de constrangimento com esta colecção.” Declarou a secretária de Estado da Igualdade, Catarina Marcelino: “Não há brinquedos de menino e de menina. A prática de dividir brinquedos por sexo é uma atitude discriminatória que reforça os estereótipos de género.” Virgem Maria. Não há brinquedos de menino e de menina? Como assim? Não há perfumes de homem e de mulher? Não há roupa de homem e de mulher? Estará Catarina Marcelino disposta a avançar com legislação para acabar com as secções feminina e masculina do El Corte Inglés? E casas de banho separadas? Não serão também elas uma forma perniciosa de reforçar os estereótipos de género?
O mundo ocidental está a ser tomado por uma fúria normativa que começa a meter medo. Vamos cá ver. Eu tenho quatro filhos, duas meninas e dois meninos, e um só quarto de brincar. Nesse quarto está tudo misturado e cada um deles brinca com o que lhe apetece. Lamento muito, Fernanda e Catarina: as miúdas preferem mesmo os “brinquedos de menina” e os miúdos os “brinquedos de menino”. Se o Gui agarra numa boneca eu juro que não grito “tira daí a mão, ó maricas!”, e se a Rita pega num carro eu não a informo que automóveis é coisa de macho. Mas achar que a ligação das meninas às bonecas é apenas um fenómeno cultural, e que não há nada na genética que as empurre para isso, não é apenas estúpido: é algo que vai contra inúmeros estudos científicos que demonstram a existência dessa predisposição biológica, não só em humanos mas também em macacos.
Isso não significa que os aspectos culturais não sejam importantes, ou que não devam ser combatidos certos preconceitos. Mas chegar ao ponto de defender que não se pode perguntar, ao balcão de um McDonald’s, se o Happy Meal é de menino ou de menina, porque isso perpetua estereótipos discriminatórios, já é ir um bocadinho longe de mais. Até por esta razão: o mundo das crianças é estruturalmente estereotipado, não por maldade social, mas porque as rotinas e as categorizações lhes conferem segurança.
Durante séculos, o argumento “natural” foi usado como arma de arremesso para justificar inúmeras injustiças. Mas convém não deixar agora o pêndulo da História voar para o lado contrário – já nada é natureza, tudo é cultura. Ora, uma coisa é respeitar a diferença. Outra é esbater as diferenças até ao ponto da mais estéril igualdade. Deixem o Happy Meal em paz.