Presidente da Cáritas Europa: "Com a austeridade estamos a criar mais pobreza para o futuro"

O espanhol Jorge Nuño está esta quarta-feira em Portugal para lançar o relatório, antes apresentado na Irlanda, sobre o impacto da política de austeridade na pobreza. Na agenda, tem encontros com ministros do Governo a quem vai pedir que alterem a orientação das actuais políticas. Se não querem pôr em xeque o futuro do país.

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Jorge Nuño: "Não sou um especialista em política económica. Sou um especialista em pobreza" Enric Vives-Rubio

A sobrevivência das pequenas empresas, o desemprego e a emigração de jovens qualificados são outros dos alertas lançados pelo relatório, elaborado a partir das estatísticas da Comissão Europeia e do contacto das equipas das várias Cáritas nestes países com pessoas ou famílias carenciadas.

Mas também o abandono dos idosos, os cortes nos serviços de apoio, educação e saúde, que deixam os frágeis da sociedade ainda mais frágeis, de acordo com o documento intitulado O impacto da crise europeia – Um estudo do impacto da crise e da austeridade nas pessoas com especial enfoque na Grécia, Irlanda, Itália, Portugal e Espanha, lançado primeiro na Irlanda, país que preside a União Europeia, porque se impõe uma solução europeia, diz Jorge Nuño. “Queremos uma Europa de pessoas ou uma Europa que salva apenas o sistema financeiro sem olhar para as pessoas?”, interroga-se em entrevista ao PÚBLICO, antes das audiências desta quarta-feira, em separado, com os ministros Pedro Mota Soares (Solidariedade e Segurança Social) e Álvaro Santos Pereira (Economia e Emprego). A ambos veio pedir que pensem em alterar as políticas do último ano. Em nome das novas gerações. Em nome do futuro.

PÚBLICO – O relatório da Cáritas Europa traça um retrato dos novos problemas sociais que estão a emergir nos cinco países em estudo perante as medidas económicas adoptadas nos últimos dois anos, entre os quais Portugal. Qual a principal revelação?
Jorge Nuño – A principal conclusão é que as medidas de austeridade tomadas não estão a resolver o problema que pretendiam resolver. Não criaram crescimento e estão na raiz do problema de uma pobreza vindoura. Estão a criar uma pobreza estrutural, de longo prazo, e isso torna a situação nestes cinco países na Europa muito difícil.

Um dos problemas que pretendiam resolver era reduzir o peso da dívida.
São medidas para reduzir a dívida, mas ao fazê-lo não estão a oferecer um modelo de crescimento económico. Não há crescimento, não há criação de emprego. E não se está a ter em conta as pessoas. Olhamos a história recente da Europa, nos últimos 60 anos, e encontramos alguns bons exemplos, casos em que o objectivo do emprego foi colocado no centro das medidas políticas. Na década de 1960, o objectivo do pleno emprego foi em grande parte atingido, mas evidentemente com consequências noutras áreas da economia.

Os tempos são outros. Pode esse modelo adaptar-se às circunstâncias actuais, depois da crise que se iniciou nos Estados Unidos e alastrou à Europa?
Num passado mais recente, vemos que o Governo da Islândia tomou decisões nas quais pôs a sua população no centro das políticas mais do que o sistema financeiro que teve de ser salvo. E eles foram bem sucedidos em salvar as pessoas. As pessoas com as suas pequenas poupanças no banco – isso foi garantido – mas também o sistema social e de saúde foram garantidos. Enquanto isso, o que vemos nos cinco países deste estudo, entre os quais Portugal, são cortes nos serviços sociais, na saúde e na educação. Isso cria um problema de longo prazo que será muito difícil de resolver.

A Islândia devia ser olhada como um modelo a seguir?
A Islândia deve ser olhada como um modelo mas também as políticas aplicadas na década de 1960, embora não se possa simplesmente copiar as práticas. A Islândia vive uma situação diferente, não faz parte da zona euro. O mais importante é o crescimento [económico] estar no centro das políticas. Será que queremos salvar as pessoas, salvar os mais frágeis na nossa sociedade e oferecer às crianças a possibilidade de uma boa educação, para que possam contribuir no futuro para o seu país? Ou queremos salvar o sistema financeiro e aplicar medidas de austeridade que estão a ter como consequência, e em Portugal isso está a acontecer, uma emigração crescente de quadros especializados e de jovens, um aumento da pobreza, uma classe média mais frágil?

Também não será desejo dos governos que haja mais pobreza e emigração.
Todos, organizações da sociedade civil e políticos, estou certo, querem fazer o melhor pelo país mas o que nós observamos, enquanto Cáritas nestes países, [e cujos elementos trabalham] nas paróquias, nas pequenas cidades, é que a pobreza está a aumentar, muitas pessoas estão a pedir ajuda. São pessoas que tinham um emprego ou uma empresa e que agora não têm nada. As crianças estão provavelmente a sofrer e as famílias não conseguem continuar a fazer face à situação.

É essa a mensagem que traz para o Governo português?
A mensagem é também que as consequências das políticas do último ano são mais pobreza, desemprego crescente e a criação de uma pobreza estrutural. Estamos a pedir que se alterem essas políticas. Gostaríamos de ter Portugal como um país forte na União Europeia. Precisamos de ter Portugal na Europa e precisamos de ter a opinião do Governo português nestas decisões. E estamos certos de que há uma preocupação, sobretudo perante a vaga de emigração de jovens.

Não fazendo parte do euro, a Islândia não está, ao contrário destes países, obrigada a reduzir os seus défices.
Sim, e é por isso que precisamos de uma solução europeia. Foi por isso que a Cáritas Europa trouxe a si a responsabilidade desta iniciativa começada pelo presidente da Cáritas Portuguesa [Eugénio Fonseca], o secretário-geral da Cáritas Espanha e os responsáveis da organização em Itália. Perante o número cada vez maior de pessoas na pobreza, as organizações da Cáritas nesses países propuseram fazer esta investigação. E constatámos que este é um problema europeu. Obviamente, Portugal tem que aceitar o que está acordado com a troika, a Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Central Europeu. Mas ao mesmo tempo, gostaríamos de encorajar todos os governos a definir limites, sabendo as consequências que estas medidas estão a ter para as suas próprias populações.

O facto de a Alemanha, com grande poder de decisão, não ter os mesmos problemas sociais que Portugal, Irlanda ou Grécia, torna mais difícil fazer deles uma prioridade a nível europeu?
O importante é haver uma boa compreensão das diferenças. Portugal não é a Alemanha. Da mesma forma, não se pode aplicar a mesma receita à Alemanha e à Grécia. Ou a mesma receita para todos.

Não é uma questão de perda de poder de decisão e soberania destes países perante as instituições que financiam o resgate?
É uma questão de concordar ao nível europeu qual é o principal objectivo a atingir, que Europa realmente queremos – uma Europa de pessoas ou uma Europa que salva apenas o sistema financeiro sem olhar para as pessoas? Temos na Europa um instrumento, a Estratégia 20/20, no âmbito do qual os Governos europeus em 2010 acordaram, entre todos, definir os cinco principais objectivos da União Europeia para os anos seguintes. Um deles: aumentar o emprego e garanti-lo a 75% da população. Outro: reduzir em 20 milhões o número de pobres na Europa [a população total nos 27 países da EU é de 495 milhões]. E o que vemos é menos emprego e mais pobreza. As medidas políticas reais não põem em prática os objectivos definidos pelos próprios governos. A política económica não está a servir a estratégia geral da UE. Há uma inconsistência. Gostaríamos de ver os objectivos sociais que temos na Estratégia 20/20 serem postos em prática.

Como podem os países atingir esses objectivos e, ao mesmo tempo, reduzir o défice?
Na Irlanda, e também em Portugal, a dívida do sector financeiro foi transferida para uma dívida soberana. Isto é colocar os direitos dos banqueiros acima dos direitos dos cidadãos. É claramente um sistema injusto. Em Espanha, a Comissão Europeia aceitou financiar as instituições financeiras espanholas sem converter essa dívida em dívida soberana.

Os governos argumentam que têm de salvar os bancos – devido ao risco de contágio – para impedir que todo o sistema entre em colapso. Não concorda?
Não sou um especialista em política económica e financeira. Sou um especialista em pobreza. Vejo quais as decisões susceptíveis de serem tomadas e vejo que há decisões que não ligam necessariamente a dívida das instituições financeiras ao Governo. Isso foi aplicado em Espanha. Também vejo que os impostos não são a solução, porque a carga fiscal está agora mais no lado dos pobres e não no lado dos mais ricos. Concordo e compreendo que não se deve aumentar os impostos em sectores que podem criar novas empresas e emprego. O problema é que os impostos não estão a ser distribuídos equitativamente e os critérios para criar emprego não estão a ser integrados no sistema. Na Irlanda e em Espanha, por exemplo, é agora mais difícil para as pessoas adquirirem bens essenciais, mas também para as pequenas empresas fazerem frente às dificuldades.

O que considera o dado mais alarmante, neste relatório?
O mais alarmante, em todos os países, é o aumento da pobreza infantil. Porque põe em causa as novas gerações. Vemos que as crianças já não recebem o almoço na escola por causa dos cortes, dois anos depois começam a ter problemas na escola, e isso começa a sentir-se no desempenho escolar, na sua capacidade de estudo e na capacidade de entrarem na universidade. Estamos a cortar o futuro. Essa é a nossa principal preocupação.
 
 

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