O estranho caso da sindicalista que foi expulsa por “conspiração”

Há oito anos, Filomena foi expulsa do sindicato de que era dirigente. Na PT, onde trabalhava, nunca mais deixou de perder regalias. Desde então só quer ver o seu “currículo sindical” limpo. Em Fevereiro ganhou uma batalha em tribunal.

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A sede do Sindicato dos Trabalhadores do Grupo Portugal Telecom no Príncipe Real, em Lisboa DR

Um dos principais sindicatos dos trabalhadores da Portugal Telecom retirou a qualidade de sócia a uma das suas dirigentes, em 2010, por esta pôr em causa a forma de actuar da direcção e do seu presidente, em funções há mais de duas décadas. Agora, dois anos após a sua expulsão do sindicato ter sido confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, um outro tribunal revogou o seu anterior afastamento da direcção. Durante o julgamento, a juíza considerou “estranho” que este caso seja protagonizado por pessoas da “geração que lutou pelo 25 de Abril”.

Pouco antes de ser expulsa do Sindicato dos Trabalhadores do Grupo Portugal Telecom (STPT), na sequência de um processo disciplinar instaurado em 2010, a sindicalista foi destituída da direcção no termo de um primeiro processo disciplinar. Seis anos depois, em Fevereiro deste ano, o Tribunal do Trabalho de Lisboa revogou a sua destituição, sentença da qual o sindicato recorreu e se encontra pendente.

Em 2014, o Tribunal do Trabalho de Almada já tinha anulado a decisão interna que expulsara a queixosa do sindicato, mas no ano seguinte a Relação revogou essa sentença, confirmando a expulsão. Embora já não seja sócia do STPT por esse motivo, a ex-dirigente sindical pretende ver definitivamente anulada a sua destituição da direcção por uma questão de dignidade pessoal e de salvaguarda da sua imagem como sindicalista. Ela só quer ter o “currículo sindical” limpo, explicou a sua advogada no julgamento.

A vida a andar para trás

Não foram fáceis os últimos oito anos da vida de Filomena Silva, uma economista de 57 anos que entrou para a actual PT em 1994. Eleita em 2008 para a direcção do STPT, destacou-se logo com o lançamento de um inquérito sobre a percepção dos quase 12 mil trabalhadores da PT acerca do modelo de avaliação de desempenho e atribuição de prémios em vigor na empresa.

As conclusões deste trabalho de grande envergadura, cuja responsabilidade técnica não era do conhecimento oficial da administração, foram arrasadoras: “O processo de avaliação e a forma de cálculo dos prémios atribuídos [...] merecem a generalizada desaprovação dos trabalhadores [...] e induzem um sentimento de desmotivação — o inverso precisamente do objectivo que levou à sua criação.” O modelo assim percepcionado pelos trabalhadores tinha merecido, porém, o apoio da generalidade dos 19 sindicatos presentes na empresa.

Semanas depois da divulgação dos resultados do inquérito, Filomena sofreu uma redução de 200 euros no complemento de desempenho que até aí recebia. A decisão foi por ela contestada junto da direcção de Recursos Humanos, mas a partir daí tudo mudou na sua actividade profissional e sindical.

Os prémios e regalias de que dispunha na empresa foram desaparecendo um a um e, ao fim de alguns meses, as suas relações com a maioria da direcção sindical, em particular com o seu presidente, Jorge Félix, começaram a degradar-se. A ponto de o presidente classificar a sua actuação como “conspirativa”. A vida de Filomena não mais deixou de andar para trás.

As concepções da actividade sindical eram divergentes em muitos aspectos e ela não via com bons olhos a presença na direcção de um grande número de pessoas, entre as quais o presidente, na situação de pré-reforma e reforma, ou suspensão do contrato. Entre os seus 25 membros contavam-se oito nessas situações, e dos 17 no activo dois estavam a tempo inteiro no sindicato.

No entanto, parecia não haver especiais engulhos de natureza política entre uns e outros. Até porque o STPT, com origem numa associação sindical criada em 1920, não está filiado nem na CGTP, nem na UGT, e não se conheciam disputas partidárias entre os dirigentes. Isto apesar de o presidente ser considerado próximo dos socialistas, outro dos mais destacados membros da direcção, Eduardo Jesus, pertencer ao MRPP e Filomena Silva ser do Bloco de Esquerda.

Em Setembro de 2009 foi, aliás, candidata por este partido à presidência da Junta de Freguesia da Charneca da Caparica (Almada), numa altura em que o ambiente na direcção do sindicato já não era o melhor. Um mês depois, através de votação de braço no ar, foi-lhe mesmo retirado o lugar de secretária efectiva, ficando com a sua capacidade de intervenção fortemente limitada.

Confraternização ou conspiração?

Passados três meses, em meados de Janeiro, a direcção decidiu mover-lhe um processo disciplinar. De acordo com a nota de culpa redigida por Paulo Leitão — um advogado avençado que desempenha um papel central na vida do sindicato desde 1981 —, a arguida tinha desenvolvido “uma estratégia própria delineada à revelia da direcção e do seu presidente”, conduta essa que correspondia, nos termos estatutários, a uma “infracção disciplinar” passível de sanção.

A gota de água que determinou a instauração do processo, defende-se no documento, foi o facto de a arguida ter organizado um almoço no dia de Reis de 2010 com sete colegas pertencentes a outros três dos 19 sindicatos que representam os trabalhadores da PT. Para esta iniciativa, “realizada totalmente à revelia da direcção do STPT e do seu presidente”, foram também convidados três dirigentes deste sindicato e o coordenador da Comissão de Trabalhadores, que não estiveram presentes.

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Na sua contestação, subscrita por um advogado, Filomena sustenta que o almoço foi uma confraternização de amigos, promovida a título estritamente pessoal e cuja única agenda foi almoçar e conviver. Quanto às restantes acusações, designadamente de individualismo, deslealdade, conspiração e intriga, a arguida não só as rejeita como transforma a sua defesa num libelo acusatório da maioria da direcção e do seu presidente.

Os principais visados são Jorge Félix e Eduardo Jesus, designados por ela como “donos do sindicato” e acusados de porem os seus interesses à frente dos interesses dos trabalhadores. A proximidade entre alguns dirigentes e a administração da PT é igualmente sugerida. Nesse sentido, é referida a acta de uma reunião da direcção onde se lê que um dos presentes se diz disposto a demitir-se — caso a sua saída seja útil ao sindicato —, “mas só se o Félix assinasse uma declaração em como não seria prejudicado pela empresa por sair do STPT”.

Dias depois, a meio de Março, a direcção decidiu aplicar a pena de destituição dos órgãos sociais a Filomena Silva e logo a seguir deliberou levantar-lhe um segundo processo disciplinar com base no conteúdo da sua contestação ao primeiro. No final de Maio, também por decisão da direcção, foi-lhe aplicada uma nova sanção, desta vez de expulsão do sindicato.

A via-sacra dos tribunais

De ambas as decisões a economista recorreu para tribunal, requerendo a respectiva anulação. Ainda em 2010, num outro processo, pediu ao tribunal que declarasse a perda da qualidade de sócios do STPT de todos aqueles que já não se encontrassem no activo, ao serviço da PT, baseando-se na sua interpretação dos estatutos do sindicato e do Código do Trabalho. Em resposta a esta última acção, o sindicato, cujos sócios são em grande maioria reformados e pré-reformados, ou têm os contratos suspensos, chegou a pedir-lhe uma indemnização de 400 mil euros. Graças aos termos em que o advogado do sindicato se lhe referiu numa peça processual, Filomena moveu-lhe também um processo por difamação.

Meses depois, em Abril de 2011, já atolada em processos e recursos que lhe estavam a minar as finanças e ainda mais a saúde, acabou por aceitar a suspensão do contrato de trabalho que lhe foi proposta pela empresa e, entretanto, se transformou em pré-reforma. De então para cá têm-se sucedido as decisões judiciais, umas a favor dela, mas a maior parte a favor do STPT.

No caso da expulsão do sindicato, o tribunal deu-lhe razão em primeira instância, determinando a anulação da pena. Nos termos da sentença, a actuação de Filomena “não extrapola” o seu direito de defesa no primeiro processo disciplinar e “muito menos o direito estatutariamente consagrado de os sócios formularem as críticas que tiverem por convenientes à actuação e às decisões dos diversos órgãos do sindicato”.

Entendimento diferente teve Duro Mateus, o juiz do Tribunal da Relação de Lisboa que revogou a sentença anterior e confirmou a decisão sindical em Julho de 2015: “Afigura-se-me que o comportamento da autora (Filomena Silva) foi suficientemente grave para pôr em crise a sua continuação como associada do sindicato [...], mostrando-se adequada a sanção de expulsão aplicada.”

Quanto à perda da qualidade de sócios dos reformados e outros trabalhadores que já não se encontram no activo, tanto a primeira instância como a Relação rejeitaram a pretensão da queixosa por esta não ter sido correctamente formulada. Neste caso, o que o sindicato não conseguiu foi que os juízes condenassem a ex-dirigente a pagar-lhe qualquer indemnização.

Diversas foram também as decisões da justiça no julgamento da queixa por difamação dirigida contra o advogado do sindicato. A primeira sentença condenou Paulo Leitão a 1500 euros de multa e a 2500 euros de indemnização à queixosa. O recurso do advogado foi, no entanto, julgado procedente pela Relação, que revogou a condenação anterior.

Uma sentença que fala em Abril

Há dois meses, a 19 de Fevereiro, o Tribunal do Trabalho de Lisboa devolveu algum ânimo a Filomena, cada vez mais descrente e perdida no mar de papéis e despesas da batalha a que há oito anos dedica a vida. “O procedimento disciplinar em causa não se nos afigura mais do que uma clara tentativa de ‘silenciar a autora’, impedindo-a de exercer uma actividade sindical livre e crítica”, lê-se na sentença que revogou a destituição da queixosa de membro da direcção do STPT.

Segundo a juíza, “o exercício da liberdade de expressão não está vedado à autora apenas porque integra uma determinada direcção” e, além disso, a destituição “mostra-se formalmente ferida de invalidade por ter sido adoptada por um órgão incompetente para o efeito”, uma vez que só a Assembleia Geral do sindicato podia decidi-la e não a direcção.

Foi, no entanto, na audiência de julgamento que a posição da juíza ficou mais clara. Depois de ouvir Jorge Félix justificar o afastamento da ex-dirigente com o seu comportamento desalinhado e estranho, a magistrada observou: “Estranho é que a sua geração que lutou pelo 25 de Abril ache isso estranho.” E pouco depois, quando o presidente do sindicato alegava que a destituição “foi o culminar de uma série de situações”, comentou: “O senhor sabe que é muito chato encontrar pessoas que têm a ousadia de ter ideias próprias e diferentes das nossas. Isso é realmente um obstáculo à consolidação de uma determinada situação.”

O PÚBLICO contactou Jorge Félix, mas este escusou-se a prestar quaisquer declarações, remetendo para o advogado do sindicato. Paulo Leitão, por seu lado, afirmou que Filomena Silva “andou a manobrar e foi desleal” com os outros dirigentes. “Ela tem uma forma de actuar que é terrorista. Tenta dar a ideia de que está em causa uma questão de liberdade de expressão e de liberdade política, mas não é verdade”, salientou. Paulo Leitão garantiu também que o STPT é uma organização “transparente” na qual nunca viu ninguém perguntar se uma pessoa é de direita ou de esquerda.

Quanto ao facto de Jorge Félix se apresentar no fim de Abril, em lista única, como candidato a mais um mandato de quatro anos na presidência do STPT, lugar que ocupa há 21 anos, Paulo Leitão pergunta: “Se não aparecem pessoas interessadas em se candidatar, o que é que se pode fazer?”

Filomena Silva escusou-se também a prestar quaisquer declarações ao PÚBLICO.

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