O alfaiate sírio espera que o Ano Novo lhe traga um trabalho
Primeira família de refugiados que chegou a Portugal vive em Ovar, está a aprender a falar português e ainda se assusta com o som dos aviões.
É sábado de manhã e as miúdas brincam no pátio das traseiras de casa, onde estão as bicicletas e um baloiço. Dimas, de nove anos, mostra com um grande sorriso um desenho feito na escola. As irmãs Inas, de sete anos, e Rimas, de quatro, andam entretidas na brincadeira e Dimas junta-se a elas. Riem, correm, caem, levantam-se, riem-se novamente. Em cima da televisão da sala, está um pequeno anjo de cartolina, mais um trabalho feito na escola que agora frequentam. Dimas está no 2.º ano, Inas no 1.º, Rimas no pré-escolar. A primeira família de refugiados sírios a entrar em Portugal começa uma nova vida num bairro de casas amarelas, às portas da cidade de Ovar.
Ali Mustafa Alkhamis, o alfaiate sírio, põe-nos à vontade, senta-nos à mesa da sala de estar, traz uma bandeja com chá, serve-nos, coloca um copo com água ao lado das chávenas, e escuta as perguntas com calma. Dali a pouco irá descalçar os chinelos e calçar os sapatos para ir a uma entrevista de emprego. “Não quero o dinheiro das pessoas, quero arranjar trabalho, quero viver aqui, em Portugal, com o meu dinheiro”, diz, tranquilamente.
Duas horas por dia, Ali e a sua mulher Nada têm aulas de Português dadas por professoras que se voluntariaram neste trabalho. Ali está-lhes eternamente grato. Pelo tempo, pela paciência, pela dedicação. “Quero aprender português, quero trabalho. Não tenho língua, não posso trabalhar”, refere. No bolso, guarda uma folha A4 escrita dos dois lados, cuidadosamente dobrada, que leva para todo o lado. Uma espécie de guia árabe-português para que não lhe faltem as palavras que quer dizer quando sai à rua ou quando vai ao mercado municipal com Nada às quintas-feiras de manhã. Noutro dia, uma senhora disse-lhe que estava com boa cor. Sorriu, agradeceu, mas não percebeu o comentário. Luís Santos, da associação de voluntários “Ovar, Vamos Ajudar?” explicou-lhe o significado da expressão. Ali achou graça.
Neste sábado de manhã, Luís Santos está com Ali. É amigo da família e é em sua casa que Ali, Nada e as três meninas irão passar o Natal, hoje e amanhã. Na casa de Ali, não há árvore de Natal, nem presépio. Ali é muçulmano. As filhas sabem quem é o “Papa Noel”. Na Síria não se celebra o Natal como os cristãos, mas todos sabem que aquele é o dia do nascimento de Jesus. Luís Santos quer respeitar a tradição da família síria para que não se sinta deslocada numa noite especial.
Naquela manhã, levou Ali para a matança do carneiro que será servido à mesa logo à noite. Ali fez a oração, ajudou a matar o animal e ainda comentou que a morte dos animais tem de ser rápida para evitar-lhes sofrimento. Haverá presentes para as meninas e festa numa família portuguesa. “No Natal não temos festa na Síria”, conta. Este ano será diferente e Ali não se importa. As tradições continuam a fazer parte da rotina. Foram uma única vez a uma mesquita no Porto. Na sua opinião rezar em casa é suficiente. E não há carne de porco à mesa.
Luís Santos está satisfeito por ter a casa cheia neste Natal e, durante a conversa, é quase um tradutor ao simplificar perguntas, substituir alguns termos, dar exemplos para que Ali perceba o contexto. E naquele português mais arrastado, eles entendem-se bem. Ali chama-lhe irmão, tal como faz a Nuno Félix, da organização sem fins lucrativos “Famílias como as Nossas” e a Salomé Costa, da “Ovar, Vamos Ajudar,?”. São irmãos de coração. De sangue, tem 12 irmãos, sete homens e cinco mulheres. Três vivem na Síria.
“A guerra não vai acabar”
Na sala, está um quadro branco para as miúdas escreverem. Dimas já sabe algumas palavras portuguesas. Em cima da mesa, está um caderno de capa preta com números e palavras. A mãe, Nada, não vai aparecer, continua a resguardar-se das entrevistas, das máquinas fotográficas, da atenção mediática.
Ali está contente. É uma nova vida que começa, sem viver com o coração nas mãos. Com gestos e reproduzindo o barulho dos aviões, explica que as suas filhas assustam-se, sobretudo a mais pequena, quando ouvem o som dos aviões. Se estão fora de casa, correm depressa para dentro, assustadas mas sem choros. Ali admite que, num primeiro momento, também sente medo. É uma questão de segundos, até fazer a transição de país e largar as memórias, de saber que aqueles aviões não são os mesmos que bombardeavam a cidade de Raqa, onde viviam. Quis saber como podia transmitir em português esse receio, que não passa de um dia para o outro - se é que alguma vez passará. E assim aprendeu a dizer trauma, mais uma palavra que escreveu na folha A4. E repete-a. “É um trauma”.
Ali fugiu da Síria para proteger as filhas. Escondia-as quando lhe entravam em casa. Partiram com a roupa do corpo pela rota dos refugiados sírios. Juntos caminharam mais de cinco horas por montanhas da Síria até à fronteira com a Turquia. As filhas iam procurando apoio nos ombros do pai ou no carrinho de bebé empurrado pela mãe. Atravessaram o mar Egeu com coletes salva-vidas que Ali uniu com um cordel para que a família se mantivesse sempre unida. E conseguiu. Continuaram a caminhada dos refugiados. Grécia, Macedónia, Sérvia, Croácia, Hungria e Áustria. Foi na estação central de Viena, na Áustria, quando esperavam para seguir para a Alemanha que a oportunidade de virem para Portugal surgiu. Aceitaram fazer a viagem com a primeira Caravana “Famílias como as Nossas”, que partiu de Portugal com 12 pessoas, seis carros, com a missão de ajudar os refugiados.
No início de Outubro, depois de mais de seis mil quilómetros de estrada, mais de mil euros gastos em combustível e portagens, a caravana chegava a Portugal com um casal e as suas três filhas. A 13 de Novembro, a família de Ali instalou-se em Ovar, quase ao mesmo tempo que iam chegando notícias do atentado em Paris. À sua espera tinham televisões, jornalistas, membros da Junta de Freguesia de Ovar e da associação “Ovar, Vamos Ajudar?”. Chegavam de São Martinho do Porto, onde tinham vivido as últimas semanas. Receberam flores, sorriram para as câmaras, foram para um jantar de boas-vindas antes de ocuparem em pleno a casa de dois pisos alugada pela Junta de Freguesia de Ovar. Têm três quartos, cozinha e sala, mais um anexo com uma máquina de costura. A autarquia decidiu disponibilizar 250 euros mensais para o aluguer, uma quantia que pretende que venha a ser assegurada por mecenas.
Ali tenta explicar que Portugal pode não ter o dinheiro da Alemanha ou da Suécia, mas tem outras coisas para oferecer a quem teve de fugir do seu país por causa da guerra. Portugal era, na verdade, um país longínquo que conhecia pelo futebol, sobretudo por Cristiano Ronaldo. O alfaiate sírio não gosta da palavra refugiado e das frases onde ela aparece. Não lhe soa bem ao ouvido. É um rótulo que não aprecia. “Este é um refugiado, é muito difícil. É muito diferente de turista. Tu és um refugiado, tu és um turista. Não gosto de refugiado”. Ali também não é um turista. Está em Portugal e não pensa partir. “Aqui são muito simpáticos. O centro, as pessoas, os vizinhos. É uma cidade muito calma”.
As notícias que chegam de longe não são boas. “A guerra, na Síria, não acaba. Eu sei, a guerra não vai acabar”. Tem dificuldade em expressar em português o que lhe vai na cabeça sobre esse conflito e o tradutor que tem no telemóvel, onde escrevemos em português e aparece a tradução em árabe, não ajuda. Ali pede-nos uma caneta e faz desenhos. A Síria é um círculo de onde saem setas para outros países com que faz fronteira, Turquia, Líbano, Iraque, Jordânia, Israel. Fala em aviões, em bombardeamentos, que matam “crianças, mulheres, pessoas”. A América é outro círculo, bem maior, que olha para o que se passa, que sabe o que se passa, e que comanda o xadrez político com peças que mexe como quer. Essas peças são pontinhos no seu desenho que representam os poderosos da Síria. Ali antevê uma terceira guerra mundial, onde vê pelo menos a Rússia e a Turquia. “Quando? Não sei”, pergunta e responde.
Desde que os protestos contra Bashar al-Assad começaram que há notícias que relatam a morte de milhares de pessoas às mãos da polícia do regime. Ali até gostava de, um dia, regressar a Raqa, mas por agora é uma possibilidade que está completamente colocada de parte. O Natal é daqui a pouco e Ali não quer tristezas neste dia em que irá perceber como se celebra o nascimento de Jesus num país muito distante do seu.