Liberdade de expressão, coragem, direito à indignação e dever de reserva
Uma coisa é a condução e decisão de um processo e o dever de reserva devido por quem decide judicialmente, outra é a coragem e o direito à indignação dos magistrados.
A actual arquitectura do poder judicial e do Ministério Público português nasceu no advento dos dias claros da revolução de Abril e com eles também nasceu o sindicalismo e o associativismo judiciários.
Os magistrados passaram a ser agentes activos na construção de um sistema de justiça novo e democrático e fizeram-no através do associativismo e sindicalismo democráticos, na defesa colectiva da dignidade das suas funções e das instituições da justiça, onde naturalmente se inclui não só a defesa dos interesses profissionais, mas a protagonização de iniciativas, a intervenção como parceiro público não governamental, a denúncia e escrutínio dos diferentes poderes que condicionam as instituições judiciárias, tudo em nome e ao serviço dos valores da liberdade, da democracia, da justiça e da efectivação dos direitos fundamentais.
Nos tempos que correm, a crítica e contestação generalizada e fácil à justiça e às suas instituições, órgãos e agentes, disputando a sua autoridade e legitimidade democráticas, a depreciação das suas funções e condições de trabalho, muitas vezes exigem a mesma coragem cívica, cidadania crítica e a mesma dignidade que inspirou os que quiseram fazer nascer aqueles dias claros de Abril.
Há assim necessidade de uma renovada coragem num novo tempo e uma nova liberdade de participar, de intervir e de pronunciar, na esfera pública, o pluralismo da cidadania e dos direitos, ainda que hoje, como antes, com o risco de ciladas dos poderes ocultos, que espreitam cada oportunidade para alimentarem a confusão e a suspeita em cerimónias de degradação pública da justiça, para assim a intimidarem, enfraquecerem ou condicionarem.
O processo de democratização da justiça, que nunca é tarefa acabada, não dispensa por isso o associativismo e o sindicalismo judiciários democráticos. Com eles fortalece-se a independência da justiça e, no que nos interesse, a magistratura do Ministério Público, persistindo na defesa da legalidade democrática, resistindo a instrumentalizações do poder político ou de quaisquer poderes fácticos. É isso que se espera de quem administra a justiça em nome do povo.
Em 2012, num Guia sobre os valores, virtudes e qualidades dos magistrados Belgas, foi enunciada, como qualidade iminente, a coragem para afrontar as pressões internas e externas e que, na defesa do Estado de Direito democrático e das liberdades fundamentais, a reserva deverá ceder face ao direito à indignação.
Neutralidade e reverência são assim coisas diferentes da imparcialidade e da reserva, coisa que já se deveria saber, pois faz parte do acquis da história do sindicalismo judiciário europeu a notável decisão do Conselho de Estado Francês que, no caso Nicole Obrego, decisão de 1 de Dezembro de 1972, sentenciou que o dever de reserva stricto sensu não obstaculiza o direito à crítica pública feita por parte de um magistrado que actue como membro de um sindicato. Que não há incompatibilidade com a função e os deveres inerentes e que é um direito dos magistrados resulta à evidência do próprio Estatuto do Ministério Público no seu art.º 81º:
1 - É incompatível com o desempenho do cargo de magistrado do Ministério Público o exercício de qualquer outra função pública ou privada de índole profissional, salvo funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica ou funções directivas em organizações representativas da magistratura do Ministério Público.
A proclamação inédita de um direito (na formulação positiva, pois um direito é sempre oponível a outrem) mais do que um dever (na formulação negativa) de indignação, enquanto magistrados, fica a par dos clássicos valores deontológicos da independência, imparcialidade, integridade, objectividade, respeito pela lei, defesa dos direitos fundamentais ou do dever de reserva e está assumido, naquele mesmo Guia, como uma qualidade da condição de magistrado enquanto co-titular de um poder soberano: o poder judicial.
A par da prudência, do bom senso ou da humanidade, os magistrados devem mostrar coragem na defesa do Estado de Direito democrático e, quando assim for, o dever de reserva terá que ceder perante o direito à indignação. A lealdade é primacialmente devida à democracia e às liberdades, ao Estado de Direito e à Constituição. Reserva não pode ser silenciamento.
E coragem para quê?
Antes de mais nada, coragem e direito à indignação para ser o contrapoder que a defesa dos direitos fundamentais requer; para resistir aos condicionamentos internos e externos; para defender a aplicação igualitária e universal da lei, o respeito pelas normas justas; para manter a recusa de agradar às sondagens e à manipulação da opinião pública; para resistir à incompreensão e descredibilização fabricadas sobre o poder judicial; para garantir a justiça como pilar fundamental do Estado e da democracia ainda que incómodo para os que querem substituir o sistema de regulação pública dos tribunais por um sistema de regulação privada, à conta dos lugares-comuns de que o que é público é mais caro, ineficiente e inimigo do mercado.
A coragem deve, pois, ser tão recomendável aos magistrados, como o são todas as outras condições da sua adequação funcional e o direito à indignação deve ser visto, afinal, como um dos direitos que justifica a soberania que reclamam.
Isso nada tem que ver com a garantia de um processo justo. Nem compromete a independência, a imparcialidade ou a integridade funcionais, tais como a Constituição as exige e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) as explicou nas suas dimensões subjectiva e objectiva da função judiciária no caso Piersack c. Belgique.
Desse direito à indignação e coragem, num quadro tão conservador como o judiciário, o TEDH fez ver que a velha compressão pelo dever de reserva — tão vago quanto censor e arbitrário nos avisos de se evitarem comportamentos excessivos ou desadequados à natureza da função de magistrado ou que atraiam a atenção pública pelo uso da palavra — condenava o poder judicial à neutralidade, sob o conveniente pretexto da protecção da respeitabilidade, como se a exclusão da liberdade de expressão, do direito à indignação, tornasse os magistrados mais respeitáveis, mais dignos de confiança, mais responsáveis e mais legítimos.
Uma coisa é a condução e decisão de um processo e o dever de reserva devido por quem decide judicialmente, outra é a coragem e o direito à indignação dos magistrados. Por isso, a intervenção de magistrados no debate público, sobretudo quando são representantes associativos, nada tem que ver com o dever de reserva processualmente devido. Reagir à desconsideração, à humilhação e à descredibilização das instituições judiciárias, quando isso se tornou a estratégia banal de manipular a opinião pública, é não só a manifestação da dignidade que se espera dos magistrados, como constitui o modo adequado e corajoso de contrariar o desprezo pelos valores democráticos e pela justiça, como pilar fundamental duma democracia que deva garantir as condições para a defesa efectiva dos direitos e liberdades fundamentais. Calar os magistrados e os seus representantes associativos é, pois, calar a democracia, é negar a independência da justiça e é proibir cidadania aos magistrados.
Responsabilizados com uma cultura aberta ao contexto de uma sociedade democrática pluralista e ao espaço comunicacional que lhe é consentido, uma concepção limitada do dever de reserva é a única admissível e que colhe pleno respaldo nas decisões do TEDH, a partir do acórdão Koudechkina, que proclamou gradualmente a liberdade de expressão no judiciário e o direito de criticar os abusos de todos os poderes como algo que serve o bem comum, as liberdades e o bom funcionamento das instituições da justiça, designadamente a sua independência e a atenção e respeito aos cidadãos.
Consentir que os que têm a coragem de denunciar e de falar, em boa fé e com convicção, sejam intimidados por via dos procedimentos disciplinares ou judiciais é abater a liberdade de expressão e a crítica pluralista, a troco da passividade, do medo e da submissão.
Secretário-Geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público