Crónica de um crime anunciado
No dia 10 de Fevereiro, Manuel Baltazar, conhecido como “Palito”, começará a ser julgado pela morte da tia e mãe da sua ex-mulher, Angelina, e por ter disparado contra ela e contra a filha. Angelina vive no medo de que ele regresse. Só no ano passado morreram 40 mulheres vítimas de violência doméstica.
Ao fim de meses de fisioterapia, Maria Angelina ainda tem dores e não consegue subir umas escadas sem apoio, quanto mais ir para o campo, única forma de subsistência em Valongo dos Azeites, terra onde nasceu, reside e onde, fez dia 17 nove meses, foi baleada pelo seu ex-marido, que na mesma altura matou a mãe e a tia e ainda feriu Sónia, a filha do casal.
Em Dezembro, Angelina passou a receber um apoio financeiro do Estado; até então, impedida de trabalhar, subsistiu graças aos seus vizinhos, que lhe ofereciam a comida. Também não consegue dormir à noite, recordando constantemente o que sofreu. E está em crer que, apesar de “Palito” — como Manuel Baltazar, seu ex-marido, é conhecido — estar preso, ainda controla cada um dos seus passos. A 10 de Fevereiro, “Palito” começará a ser julgado pelo crime praticado a 17 de Abril de 2014; Angelina vive no medo de que de alguma forma, legal ou ilegal, ele consiga regressar para matá-la.
Há uma razão para Angelina temer que ele consiga escapar à prisão — é que já assim aconteceu no passado. Estiveram casados 29 anos, de 2 de Janeiro de 1982 a 12 de Dezembro de 2011. Mas ainda antes do divórcio, em Fevereiro de 2009, Angelina abandonou a casa do casal em Trevões, de onde “Palito” é natural. E a 15 de Outubro apresentou queixa contra o marido, que viria a ser condenado por crimes de violência doméstica, ofensas à integridade física e ameaça agravada contra Angelina, a tia desta, Elisa Barros, e o filho, Rui.
A sentença do processo — em que pelo menos dez pessoas testemunharam a favor de Angelina — saiu a 18 de Novembro de 2013.
As agressões e ameaças praticadas por “Palito” e dadas como provadas pelo tribunal de São João da Pesqueira são descritas em 26 pontos, tornando-se claro que a periodicidade e o grau de violência de “Palito” aumentaram exponencialmente desde que a ex-mulher saiu de casa: a 8 de Outubro de 2009, “Palito” “apertou com força” o pescoço de Angelina; a 29 de Setembro de 2012, apontou uma caçadeira ao peito do filho Rui, quando este trabalhava com a mãe na apanha da azeitona, dizendo-lhe “chama a GNR, agora, chama”; a 21 de Outubro de 2012, “Palito” conduziu o seu Toyota Corolla na direcção de Maria Angelina, travando bruscamente em cima desta — depois disse-lhe: “Agora já não arreganhas os dentes”; a 5 de Dezembro de 2012, ameaçou-a, bem como aos seus tios Elisa e António Barros, que se encontravam a podar uma vinha: “Hei-de cozer-vos a todos, hei-de pegar fogo à vossa casa”; e a 20 de Setembro de 2013, “Palito” perseguiu, de foice na mão, Angelina no cemitério, agarrando-a pela parte de trás do pescoço até Angelina ficar no chão — quando a GNR a encontrou, escondida num café, a urina escorria-lhe pelas pernas abaixo.
“Palito” foi condenado a um cúmulo jurídico de quatro anos, mas a pena foi suspensa e em vez de ser preso, “Palito” foi proibido de se aproximar a menos de 400 metros da ex-mulher e tinha de usar pulseira electrónica.
Às 16 horas da tarde do dia 17 de Abril, “Palito”, após cortar a pulseira electrónica e munido de uma caçadeira, dirigiu-se a casa de Elisa, onde as quatro mulheres se encontravam a fazer bolos para a Páscoa, e disparou. Depois enfiou-se serra de São Paio dentro e, durante um mês e quatro dias, escapou ao dispositivo policial montado para o apanhar.
Esses 34 dias não são um pormenor, antes constituem o traço distintivo de um crime que tendo contornos excepcionais, também é, em termos simbólicos, exemplar dos restantes crimes de violência doméstica ocorridos em Portugal — e a razão pela qual ao longo de vários meses fomos e voltámos a Trevões e a Valongo dos Azeites.
Segundo a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), de 1 de Janeiro a 30 de Novembro de 2014, houve 40 mulheres assassinadas por companheiros, ex-companheiros ou familiares do sexo masculino; outras seis escaparam à mesma sorte. Já a Associação de Apoio à Vítima (APAV) fez saber no final do ano passado que recebeu 7265 queixas de violência doméstica ao longo de 2013; nesse período, a Direcção-Geral de Política de Justiça reporta que, dos inquéritos que o Ministério Público levou a cabo, apenas 3541 casos de agressão doméstica a mulheres foram julgados. Em 2014, apenas 96 homens foram presos por esse crime. Os números não sofreram grandes alterações ao longo dos últimos anos — o que significa que pouco mais de 1% das mulheres que recorrem à APAV vêem os seus agressores condenados.
Por duas vezes, lê-se na sentença de 2013, “Palito” encontrou a mulher nos refúgios que a APAV lhe providenciou quando saiu de casa. Estas casas são secretas — como foi possível a “Palito” descobrir as moradas?
“Isso basta alguém vê-la e dizer [a ‘Palito’]”, responde um GNR da zona. Mas porque é que alguém iria contar a um homem que agredia a mulher onde esta se escondera?
Há outras peças importantes para montar o puzzle. Ao atacar a filha, a ex-mulher e a tia e a mãe desta, “Palito” qualifica-se como um “familicida”. Por norma, e como explica Fernando Almeida, psiquiatra especializado em crimes de sangue, “o familicida entrega-se às autoridades, deixa-se apanhar ou suicida-se”. “Palito” não só não se entregou, como o número de dias que andou a monte o torna uma excepção face ao habitual neste tipo de crimes. O mesmo GNR disse à Revista 2 ser impossível um homem andar este tempo fugido sem ajuda dos vizinhos: “Alguma coisa ele tinha de comer.” Porque é que alguém iria ajudar um duplo homicida?
Fernando Almeida tem uma explicação: “Algumas das pessoas que o alimentaram durante um mês pensam: ‘Coitadinho, ele tanto trabalhou para alimentar a família e ela agora vai abandoná-lo? Ela jurou que era para a vida toda. E ele nem a tratava assim tão mal, só enxotava umas moscas de vez em quando. Porque é que aquelas mulheres [a tia e a mãe de Angelina, que ‘Palito’ acreditava serem as responsáveis pela separação] se foram intrometer?’”
Os dias de apoio a “Palito” espelham a que ponto a mentalidade que subjaz à violência doméstica está entranhada: a ideia de que o homem tem direito a abusar fisicamente da mulher e — aspecto fundamental para que o abuso se perpetue — que sobre o assunto deve fazer-se silêncio.
A conclusão é que, “aquelas pessoas, ao ajudarem-no durante um mês, constituem uma espécie de essência do machismo dominante”, diz o psiquiatra.
O silêncio e cumplicidade das pessoas de Trevões é a história de futuras Marias Angelinas. Muitas podem vir a ter ainda menos sorte do que ela.
Maria Angelina era uma estampa
Maria Angelina nasceu em Valongo dos Azeites, onde se chega, vindo de São João da Pesqueira, primeiro pela N222 e depois pela N229, 13 quilómetros que demoram cerca de 20 minutos de carro a quem não está habituado aos esses da serra, com bermas desprotegidas que acabam em precipícios. Trevões — de onde “Palito” é natural — fica a menos de cinco quilómetros de Valongo, duas localidades cuja média de habitantes ronda os 200.
Ao redor destas terras, a serra ergue-se monumental, montes sobrepondo-se como ondas encarpadas em dia de maré zangada, determinando a vidas dos seus habitantes ao mais ínfimo pormenor, como a luz que recebem: Trevões, por exemplo, é mais sombria que a entrada de Valongo dos Azeites — enquanto esta começa numa zona aberta de moradias expostas ao sol, Trevões parece enterrada num socalco da serra, um apêndice de pedra onde a luz não entra.
As escassas povoações existem recolhidas em si mesmas, pequenos pontos compactos cor de xisto no imenso verde. Há apenas dois autocarros diários a ligar Valongo e Trevões a São João da Pesqueira: é fácil sentir solidão aqui.
Angelina, nascida a 24 de Novembro de 1961, era filha única de Lina (morta no ataque de “Palito”) e Acácio Félix (que morreu em Maio de 1996).
Segundo o Registo Civil do Tribunal de São João da Pesqueira, Acácio tinha pelo menos três irmãs: Maria Ermelinda, Maria Judite e Elisa, que foi também assassinada por “Palito” e deixou marido e filhos em França. A população falou-nos em mais duas irmãs: Delfina, que morreu e tem filhos em Lisboa; e Celestina, que morreu deixando os filhos António Félix, Ana Maria e Antero. O Registo Civil não encontrou dados sobre Celestina, mas encontrámos Antero (em Valongo) e Ana Maria e António (em Trevões). Esta disparidade não é caso único na família: no acórdão do tribunal, lê-se que Manuel Baltazar “é o mais velho de nove irmãos”; contudo, no Registo Civil, apenas se encontram sete (incluindo o próprio Manuel Baltazar).
Hoje, Carlos, dono do café Século XXI em Valongo, diz que Maria Angelina se “descuidou” em relação à aparência, o que considera “normal, com tudo o que passou”. Mas à época do casamento, Maria Angelina, 18 anos, era “uma estampa”.
Sendo casado com uma prima de Maria Angelina, Carlos tem opinião formada sobre a forma como “Palito” a via: “Antes dizia a toda a gente que ela era um espectáculo e que nunca teria hipótese com ela. Quando casou, foi como se tivesse ficado em dívida para com ela. Não acreditava que a tivesse conseguido. Achava-se abaixo dela.” Apesar dos laços familiares, Carlos teve pouco contacto com “Palito” e Angelina. “Eu vendo calçado — neste tempo todo, ele nunca me comprou sequer uns chinelos.”
É verdade que vende calçado ao balcão. Não fora isso e o café Século XXI podia ser um café de qualquer parte do país: chão em mosaico, mostruário de vidro com tampo em folha de mármore, Chupa-Chups, pastilhas Gorila. Carlos, baixote, ligeiramente careca, tira um par de sapatos de vela debaixo do balcão, enquanto serve vinho do garrafão.
Quando a polícia entregou “Palito” ao tribunal, a população brindou-o com aplausos, o que chocou o país — porque raio estaria um homicida a ser aplaudido? O dono de um café em São João da Pesqueira explica os aplausos pela antipatia que o povo tem para com a polícia: “A GNR está sempre à caça da multa. Prantam-se [forma popular de dizer que ficam especados] à espera de quem sai dos cafés e vai guiar. O que irrita o povo, que quer beber em paz.” Ouvimos a mesma justificação noutros sítios — mas não encontrámos quem admitisse ter aplaudido.
Tal como Carlos, Ana Maria tem escassa memória das três últimas décadas de vida de Angelina. A prima diz que “em miúdas [eram] como irmãs”. Depois, “durante mais de 20 anos, nunca mais houve contacto com ela”. Quando deixaram de se ver? “Quando ela se casou.”
Da casa de Ana Maria à de “Palito” demora-se cinco minutos a pé. Da de António Félix, seis. No entanto, a mulher de António declara nunca ter tido qualquer contacto com o casal.
Nem no Natal?, perguntamos. “A gente aqui passa a ceia com a família de casa.”
Este é um mote constante: cada um vive na sua casa, com a sua família e só se mete no que lhe diz respeito. Pese embora umas semanas na zona nos demonstrem que os homens comentam as vidas dos outros nos cafés, e as mulheres, nos intervalos da lida da casa ou da faina, segredam entre si. Diz Albino [nome fictício], de Valongo: “Cada um trata do seu lar, ninguém põe a colher no prato do outro, mas bichana-se acerca de todos.”
“Palito” em Valongo, “Sem-Tripas” em Trevões
Manuel Baltazar nasceu a 16 de Março de 1953, em Trevões, vila situada na serra de São Paio, a 911 metros de altitude, o ponto mais alto de São João da Pesqueira. Era o mais velho de — segundo o acórdão de 2013 — nove irmãos: além de “Palito”, há António, seu vizinho, Fernando e Carlos que moram em França, tal como, supostamente, Zé, Maria, que vive no Porto e Mário, também morador em Trevões. No Registo Civil não surge o nome de Carlos, mas aparece um João Augusto — fica a faltar o nome de um irmão, que o Registo Civil não conseguiu encontrar.
Sabe-se pouco da vida de “Palito” até ao acidente que supostamente o mudou para sempre: a morte dos pais, afogados no Douro após um aluimento de terras derrubar a viatura em que seguiam, a 14 de Fevereiro de 1979.
Descobrir o que aconteceu nesse dia depende de quem se ouve: num relato, “Palito” estava na viatura e sobrevivera, visto saber nadar; noutro, uma pedra gigante teria caído em cima do pai de “Palito”, esmagando-lhe o peito. Há narrativas que incluem várias pedras, ocupantes do automóvel que variam, diferentes mortos. Certo é que, após o aluimento, o carro se enfiou num braço do Douro.
Segundo um primo de “Palito”, que se recorda bem do acidente, o casal Baltazar fora a uma consulta médica na Régua acompanhado pelo casal Laranjinha, respectiva filha, e um moço chamado João Madureira. No regresso, várias pedras aluíram, tendo uma esmagado o peito de Laranjinha, que ia ao volante — e não o pai de “Palito”. “Palito”, note-se, só o é em Valongo — em Trevões chamam-lhe “Sem-Tripas”. O único que se salvou foi Madureira — o que sabia nadar.
Qualquer história em Trevões tem tantas versões como as pessoas que a contam. E é difícil acreditar em tudo o que se ouve: muitas vezes ouvimos “nem os conhecia” dito por vizinhos que viveram 60 anos a dois metros de distância. Há o caso de um homem que no decorrer da nossa reportagem certo dia nos afiançou que não sabia de nada porque fora para França antes do assassinato e voltou já “Palito” estava preso; dias depois, lá lhe escapou: “Até disse ao rapaz para se entregar.” Inquirido sobre a discrepância, respondeu com “isso agora”, e fechou-se em casa.
Os pais de “Palito”, Baltazar e Celiza, eram “gente muito boa”, “com posses” e “às vezes ajudavam quem não tinha que comer”, “dando couvinha ou feijão” — é este o retrato que muita gente em Trevões faz.
Depois há Hélder [nome fictício], que também ali mora e se lembra de que “o pai [de ‘Palito’] era bom tanoeiro e tinha um carro de bois”. “Chamavam-lhe ‘Sem-Tripas’” devido à extrema magreza, que o filho herdou. Segundo Hélder, o casal Baltazar “ficava a dever a este e àquele”. “O meu pai era sapateiro e o pai dele [Baltazar] mandou pôr meias solas nuns sapatos. Quando estavam arranjados apareceu lá em casa, calçou as botas e disse: ‘Só posso pagar no fim-de-semana. Posso levá-los já?’ O meu pai fê-lo descalçar as botas. Você veja como era esta gente.”
A casa dos pais de “Palito”, a que os locais chamam “Casa Velha”, dá a entender — pelo tamanho — que o casal não viveria mal. Para lá chegar, é preciso tomar a ondulante N229, inflectir para leste, EM504 adentro, entrar numa estrada ainda mais estreita que as demais e por fim dar com três caixotes do lixo, que dividem a terra entre zona alta (mais moderna) e zona baixa (a mais rude): para a esquerda há um banco (com caixa multibanco, a única até São João da Pesqueira) e, ao fundo da rua, as casas dos primos de Maria Angelina.
Por ali também existe um lar de idosos e a escola primária onde “Palito” e os irmãos estudaram — é a única da zona e os miúdos de Valongo ou Penedono iam aprender lá. Maria Angelina, dizem-nos, fez a quarta classe, numa altura em que só as meninas com posses estudavam. Na realidade, confirmaram-nos que Angelina completou o equivalente ao actual 9.º ano de escolaridade.
Trevões é vila, Valongo é aldeia. O Paço Episcopal, um par de casas senhoriais, a Igreja Matriz e uma série de capelas indicam que a vila teve uma grandeza que hoje não possui.
À direita dos caixotes do lixo há um caminho estreito, em empedrado, de margens ladeadas por muros de xisto, onde é impossível passarem dois carros: é a zona baixa, o Douro profundo e esquecido pelo tempo — e é a rua de Manuel “Palito”, cuja casa é a segunda quando a estrada começa a subir. A primeira é do seu irmão António. Por trás de casa de “Palito” ergue-se a Casa Velha e depois estende-se o cerejal por onde terá fugido após o duplo homicídio.
Acompanhando o muro de granito e xisto que demarca o cerejal, dá-se a volta a meia terra, retornando-se aos caixotes do lixo — no meio do cerejal há um pequeno lago, que tornou impossível seguir o rasto de “Palito” quando a polícia ali entrou com os cães.
Este terreno, que ocupa meia Trevões, divide-se em vários, que pertencem a “Palito” e a uma senhora que não vive ali. Há um caseiro, mas a população ou recusa dizer o seu nome ou dá nomes díspares.
Os homens conspiram, as mulheres segredam
Os irmãos Manuel, António e Mário passaram anos emigrados a trabalhar na construção civil. As suas moradias foram construídas à mão; um pequeno jardim adorna a de António, o que não acontece na de Mário, mais humilde. Face às casas de xisto que as rodeiam, são promessas de um mundo mais moderno, mais confortável.
É difícil dizer em que anos estiveram emigrados quando os próprios familiares transmitem informações erróneas: “Escreveram-se tantas mentiras”, lamentou-se um dia a mulher de António. “Disseram que [‘Palito’] esteve na Líbia, numa fábrica de manteigas, nos anos 70. Havia lá fábricas de manteiga na Líbia nessa altura!” De facto, “Palito” não esteve numa fábrica de manteigas na Líbia; esteve lá na construção civil, bem como na Suíça e em França, segundo dois homens que estiveram com “Palito” na Líbia.
Graças à emigração, conta Albano [nome fictício], amigo caçador, “Palito” começou a construir casa e comprou um Toyota azul, do qual tinha muito orgulho. “Isto em 1976, uns anos antes de se casar com Maria Angelina.”
Hélder também afiança que Maria Angelina “agradou-se do carro”, ideia que parece ser unânime na faixa que vai da saída de Trevões até Valongo: “Na altura havia cá poucas viaturas”, lembra António Canela, amigo de “Palito”.
Uma familiar de um homem que, segundo vários membros de Valongo e como veremos mais à frente, terá sido assassinado por António Canela, recorda que o carro agradou até à mãe de Angelina; de acordo com este testemunho, ela gabar-se-ia à população de ter encontrado “um bom pretendente para a filha”, a quem obrigara a terminar um namoro com um homem com menos posses (e cujo nome não foi mencionado).
Esta familiar considera que Maria Lina sempre foi “má, ruim, afeiçoada ao dinheiro” e que “atiçava” “Palito”, que tratava dos terrenos da família da mulher, “contra o povo [de Valongo]”. De acordo com outros moradores, “Palito” teria o hábito de disparar na direcção de quem atravessasse os terrenos dos seus sogros — não para matar, mas para assustar. A dada altura, diz-nos: “As outras não, mas a Maria Lina mereceu morrer.”
Houve pelo menos um texto na imprensa em que se relatou que a compra do Toyota foi posterior ao casamento. Esta disparidade nos relatos está sempre presente em Trevões e Valongo.
Não só a disparidade mas também o secretismo: Canela é apontado pela população de Valongo (vive junto à moradia de Elisa) como a pessoa que terá telefonado a “Palito”, de um telemóvel descartável, a avisar que as mulheres estavam no quintal de Elisa. As teorias de conspiração são discutidas pelos homens; as mulheres não se metem nestes assuntos.
O GNR citado acima admitiu ser “possível” a existência da chamada para “Palito”, garantindo não ter sido identificado nem o autor da chamada nem o dono do telemóvel.
A acusação a Canela foi-nos contada pela primeira vez num café em Valongo. Aproveitando que o grosso dos homens discutia que arma “Palito” usou, o sr. Sérgio abeirou-se e narrou a história ao ouvido, afastando-se de imediato, de modo a não passar a imagem de delator. A cena repetiu-se várias vezes, com outros homens e versões ligeiramente diferentes. Em todas, o narrador aproveitou um momento em que os amigos estavam distraídos, contou e depois voltou para o grupo.
No primeiro dia em São João da Pesqueira, um GNR afirmou: durante anos, “nunca ouvimos a versão dela, só conhecíamos a dele”, a de que Maria Angelina tinha uma depressão. Talvez seja por tudo ser contado em surdina e nada ser muito certo que foi possível a “Palito” criar na população essa imagem de uma Maria Angelina deprimida — em vez de uma Maria Angelina abusada.
“Dizes que matas mas não matas nada, pá”
Maria Angelina e Manuel Baltazar conheceram-se na apanha de azeitona de terceiros, em cujos terrenos faziam jorna, e estiveram casados 29 anos: o divórcio chegou a 12 de Dezembro de 2011, quase três anos após Angelina sair de casa.
O funcionário de uma funerária local, que há 13 anos fez um funeral de um tio de Angelina, nunca ouviu de “Palito” mais do que um “ando aqui aflito porque a minha mulher se quer divorciar”, frase que muitos recordam. Desde a separação que o único assunto de “Palito” era a mulher. “Era uma obsessão que ele lá tinha”, diz o sr Carlos.
“Na caça”, recorda António [nome fictício], “cada vez que parávamos para comer, lá vinha ele com a história de se vingar das mulheres que ajudaram à separação”. António descreve “Palito” como “um tipo exemplar na caça — mas refilão”. Perito em javalis e perdizes, era o que “mais se enfiava mato adentro”, nunca hesitando em “rastejar pelos trilhos deixados pelos javalis”, sabendo “como não os alertar. Conhece estas serras como a palma da mão” e falava tanto em matar que a dada altura começaram a gozar com ele: “Dizes que matas mas não matas nada, pá.”
Eis um homem não muito bonito, não muito forte, com menos dinheiro que a mulher e que se vê divorciado.
Os problemas já vinham de trás. Albano diz que mesmo “no tempo em que o Acácio ainda estava vivo já havia discussões verbais graves entre ele e “Palito”. Depois da morte do pai, a Lina e o “Palito” costumavam discutir à frente de toda a gente”. Conta isto em voz baixa, porque no restaurante está uma familiar de “Palito”.
De acordo com Albano, a família de Angelina “nunca [acatou] bem a junção”, em parte porque “tinha mais valores patrimoniais que a do ‘Palito’”. A ideia de que o casal não vinha do mesmo meio é confirmada por outros: “Os pais dela tinham mais dinheiro que os do ‘Palito’. Ela é herdeira de uma vinha com bastante benefício”, lembra Hélder. No acórdão do tribunal, descreve-se “Palito” como sendo “filho de um casal de modesta condição socioeconómica”. O nível de vida de “Palito” melhorou depois de ter estado emigrado. Em Trevões, e quando confrontadas com a hipótese de Acácio e Manuel Baltazar não se darem, as pessoas respondem “isso era lá com eles”. Em Valongo, as zangas são um dado adquirido.
É recorrente ouvir-se dizer que Maria Angelina “teve pena” de “Palito”, após este perder os pais, o que a levou a casar. Sendo alguns dos irmãos de “Palito” muito novos aquando do acidente, Angelina terá cuidado deles como se fossem seus filhos. Em Valongo e no Penedono, há quem diga que “Palito” tratou Angelina mal desde o primeiro dia. Em Trevões, ninguém admite tal coisa.
Se ao início o casal se dedicava à apanha da azeitona nos terrenos dos pais dela, de “Palito” e de terceiros, entre outras actividades agrícolas, com a morte de Acácio Félix, o casal passou a ser dono de um conjunto de terrenos que permitiam uma boa vida. Na maior parte dos relatos, por esta altura “Palito” já não emigrava — fixou-se na terra quando acabou a casa e não voltou a sair do país após o nascimento do segundo filho, Rui. Contudo, uma fonte próxima de Maria Angelina assegurou-nos que, já com os filhos nascidos, “Palito” ainda emigrava.
Isto dá o retrato de um homem trabalhador, empenhado em criar um lar para a mulher e os filhos. Umas semanas em Trevões revelam outro homem — um que a cada regresso passava mais tempo na caça que em casa e estourava dinheiro pagando almoçaradas aos amigos caçadores, enquanto Angelina jornava nos “prédios” (terrenos) do casal e de outras pessoas.
Numa casa-abrigo da APAV
Um homem, para chegar aos 60 anos e matar a mulher, só se começou a beber ou se descobriu que ela tinha outro”, disse o GNR. “Doutro modo, tem de haver violência há muito tempo e matar é o culminar da violência.”
É comum, aqui, a violência doméstica? (A pergunta é injusta: a violência doméstica é comum em todo o país.) O GNR tira o chapéu, coça a cabeça rapada a pente 3 ou 4, e diz: “Isso das mulheres... sabe como é. Terra pequena, não há nada para fazer, chega-se a casa todos os dias... Elas não ficam mais bonitas com o tempo. Bebe-se uma pinga e quando se dá por ela já só se fala à chapada. É assim.”
É assim, mas ouvindo os moradores de Trevões não era assim com “Palito”, que não bebia. Basta um pulinho ao café Século XXI, ou ao Buraco, em Trevões, onde há uns anos a GNR apreendeu 17 armas ilegais numa só rusga, para encontrar dezenas de homens que concluem que “o crime foi um bocado culpa delas, que não tinham nada que se meter”. “Intrometer-se” era dizerem a Angelina que não tinha de se sujeitar à violência. Ainda há coisa de semanas, uma prima de Maria Angelina repetiu a mesma ideia.
Não raro as pessoas têm um rebate de consciência e refazem a afirmação: “Mas o que ele fez foi errado” ou “perdeu a razão quando matou”. Ninguém afirma que “Palito” perdeu a razão quando começou a bater na mulher.
Já viúva, mas com a filha ainda casada, Maria Lina deu ordem para se fazer uma vinha nos seus terrenos; na prática arrendava (por 10 ou 20 anos, há informações em ambos os sentidos) os terrenos a “Palito”, que estava incumbido de explorar a vinha e recebia os dinheiros. Esta terá sido a altura do casamento em que o casal viveu melhor.
Mas, quando Maria Angelina saiu de casa, “Palito” proibiu-a de entrar nos “prédios” de Maria Lina, o que legalmente podia fazer: “Estava a tentar matá-la à fome”, conta Albano.
Já separados, “Palito” “surpreendia-a na jorna e ameaçava-a e a quem estivesse com ela”. Esta agressividade foi aumentando até ao ponto de “Palito” bradar ter uma bala para quem se aproximasse da ex-mulher.
É sabido que até à ordem do tribunal para manter os 400 metros de distância, “Palito” passava diariamente à porta de casa dela; em Valongo, diz-se que pagou a um reformado local para vigiar Maria Angelina. O reformado nega qualquer contacto com “Palito”.
A separação de Maria Angelina coincide, segundo Manuel [nome fictício], vizinho e amigo de infância de Angelina, com “a altura em que a Elisa obteve a reforma e começou a passar mais tempo em Valongo que em França”. Na realidade, Angelina só saiu de casa quando os filhos — que não foram para a universidade mas acabaram o 12.º ano — já haviam saído.
Para o psiquiatra Fernando Almeida, na cabeça de “Palito”, “Angelina pertencia-lhe; podia ter de lhe arrear de vez em quando, mas isso faz parte; ter saído de casa não era uma manifestação da vontade dela, antes fraqueza face às manipulações da tia e da mãe que por isso, pensaria ele, mereceriam ser punidas”. “Palito” estraçalhou o corpo de Elisa ao alvejá-la directamente no peito.
A primeira pessoa a relatar publicamente actos de violência de “Palito” foi Filomena, mulher de Mário: “Foi no cemitério, no dia dos Fiéis [do ano passado]”, contou. “Atirou a Sónia [a filha] ao chão, tentou bater-lhe, meti-me no meio e ele derrubou-me e deu-me pontapés.” De volta a Trevões, “Palito” apertou-lhe o pescoço.
Houve uma altura em que o único dado acerca de violência doméstica que se conhecia no caso era que Maria Angelina tinha pedido ajuda à APAV, sendo colocada em casas-abrigo, primeiro em Vila Real e depois, quando “Palito” a descobriu, na Régua, onde voltou a ser descoberta pelo ex-marido.
No acórdão do tribunal que puniu “Palito”, lia-se que ele dava chapadas na mulher e recorria a violência para a obrigar a dormir na cama do casal.
O motivo do isolamento de Maria Angelina seria a violência doméstica?, perguntei a uma familiar muito próxima de Maria Angelina, em casa a passar a ferro e a dobrar a roupa. “Não”, diz com as mãos a tremer e lágrimas prestes a cair. “Nunca lhe bateu.” Nunca lhe bateu?, insisti. Ela pára, baixa a cabeça e diz: “Ela não se queixava.” E o facto de não se queixar indica que não lhe batia? Ela pára de novo, antes de se recompor e voltar a dobrar a roupa. E é ela quem diz: “Os homens, aqui, são do século XVII. Há muita coisa escondida. As telhas escondem muita coisa.”
Insisto: ele começou a bater-lhe quando? Ela começa a chorar — foi a única pessoa que vi chorar nas semanas que passei em São João da Pesqueira. Foi cedo?, pergunto. E aqui sim, ela chora mesmo. E baixa a cabeça e pede-me que saia antes que o marido volte.
Última pergunta: porque é que as mulheres dali que apanham não se divorciam? Ela olha-me atónita. “E fazer o quê? Ir para onde? Ao menos aqui sabemos com o que contar... O senhor sabe o que se passou, não precisa de mim, deixe-me, eu só quero esquecer.” Senta-se na cama e chora.
O sexo é uma roleta
Valério [nome fictício], habitante de Valongo, conta-me um dia uma história passada em Trevões há duas décadas e que tem como protagonista uma vizinha de “Palito”.
“Um rapaz tinha uma namorada, estavam noivos e a rapariga rompeu o noivado. A mãe do rapaz não foi de modas: esperou que os pais da moça saíssem de casa, bateu à porta e quando a miúda abriu: tau, tau, tau, cinco chumbadas nos cornos.” A história é verificada por vários habitantes das duas localidades.
Porque é que ela não quis casar?, pergunto. “Porque não queria levar na tromba.”
A maior parte das mulheres por estas bandas é de idade. “Quando [os homens locais, mesmo os casados] querem acção vão ao alterne” nas terras circundantes, relata um caçador, que não quis ser identificado. Um dia fomos os dois pela serra verificar os casebres onde “Palito” podia ter-se escondido. No trajecto demos com algumas dessas casas, como o 125 Azul, que recebe “brasileiras e tailandesas — as tailandesas são muito bonitas” e “são todas ilegais”, informa. Resolvi perguntar a este caçador — cuja mulher estava emigrada como ama para dar mais algum à escassa reforma — porque perdia o seu tempo a ser meu guia. “Solidão. Ao menos assim, estou entretido.”
Valério diz que em Valongo não há farmácias, o que tem implicações nas mais simples situações quotidianas. “Se uma miúda quiser a pílula, tem de ir a São João da Pesqueira”, conta, antes de elucidar acerca da moral ainda vigente na zona. “Pela vontade dos pais, não é possível uma miúda de 16 anos ter sexo antes do casamento. Elas aproveitam as jornas ou fazerem um recado. Não há precaução, pelo que o sexo é uma roleta: pedem aos homens para se virem fora ou rezam para não engravidarem. Se engravidarem, é simples: levam na tromba e o pai vai convidar o emprenhador a casar.” Faz uma pausa e entrega a punchline com um sorriso entre o amargo e o resignado: “O convite é feito com uma chumbeira.”
Estávamos sentados na mesa de um café em Valongo: entra-se, há um balcão em U e à direita uma enorme sala de cujo tecto pende uma bola de espelhos. Fazem bailes aqui?, pergunto. “Não. O Buraco, em Trevões, tem uma salinha onde puseram uma bola de espelhos. Esta surgiu por imitação. Foi ‘se tu tens, eu também tenho de ter’. Há uma grande rivalidade entre as terras”, responde Valério.
Em Valongo, certa tarde, estavam algumas mulheres a conversar quando uma diz: “Ao menos isto deu para falarem [de Valongo].”
Nos 34 dias em que esteve a monte, “Palito” foi avistado quatro vezes. A primeira foi no dia imediatamente a seguir ao crime, quando apareceu a José Costa, na quinta do pastor, no Penedono.
Costa, amigo de “Palito”, recusou-se a falar, visto os jornalistas serem “todos uns vigaristas”. Um jornalista de televisão disse-lhe que “telefonava a avisar quando saía a peça e nunca mais telefonou”. Um fotojornalista fotografou-o num ângulo que ele não apreciou.
Calçado com galochas, Costa move-se com facilidade por entre a lama. A sua quinta tem um grande salão repleto de bandeiras do Benfica — o trabalho, a bola, as cartas e o dominó que joga à noite num café no Penedono são os seus únicos assuntos.
“O que é que eu havia de fazer?”, responde quando perguntamos porque ajudou “Palito”.
“As amizades aqui são complexas”, explica um amigo que conheceu ambos na caça. “Os caçadores não querem problemas. Há uma época legal para caçar, armas designadas, mas eles caçam fora de época com armas ilegais e têm medo de ser investigados. Por isso ajudam-se.”
Além disso, faz ver, “ele tem razão: o que é que você faria se lhe aparecesse um homem que tinha matado duas pessoas no dia anterior? Aqui as amizades são de caça, de cartas, do cultivo. Mas tem-se sempre uma desconfiança”.
António Canela é acusado (por muita gente de ambas as terras) de ter matado o filho de um vizinho que teria, alegadamente, molestado crianças. Certa noite, Canela e um comparsa perseguiram o filho do suposto pedófilo e este fugiu para casa — mas os perseguidores haviam estragado as fechaduras e por mais que o rapaz chamasse pelo pai, este, preso por dentro, não o pôde acudir. Foi morto à paulada à entrada de casa, em Valongo.
Uma sobrinha do alegado pedófilo confirma que Canela e um cúmplice terão matado o seu primo. Na sua versão, contudo, alegado pedófilo e filho viviam num dos muitos barracos hoje vagos na serra (e que “Palito” usou para se abrigar, durante a fuga); o pai estaria dentro do barraco, que foi fechado por fora. Esta versão parece mais coerente do que outras, cujo grau de elaboração deverá ser fruto do tempo.
Noutra história, e segundo rezam várias almas, os dois irmãos Puges raptaram um homem endinheirado, a quem extorquiram as posses e ataram a um cavalo; açoitaram o animal, que ao fugir desmembrou a vítima.
Os dois casos terão ocorrrido há mais de 30 ou 40 anos e fornecem um retrato dos amigos chegados de “Palito”. A maior parte dos habitantes de Valongo acusa os Puges de ajudarem “Palito”, enquanto este andou a monte. Em Trevões, ninguém sabe nada.
O terreno dos Puges, que inclui pastagens para os animais, é próximo do cerejal. Era nas manjedouras dos seus animais que um dos Puges deixava diaramente comida para “Palito” — isto segundo os valonguenses.
“Se eu pudesse contava tudo. Mas é família”
Até meados de Junho, nenhum familiar havia visitado “Palito” na prisão, pelo menos a crer na mulher de António, irmão de Manuel Baltazar. Há dias, Filomena, cunhada de “Palito” por casamento com Mário Baltazar, disse-nos: “Não fui nem faço menção de ir visitá-lo.” Agora já menciona directamente a violência de “Palito” ainda durante o casamento.
Tal como a própria Maria Angelina, Filomena está assustada com a possibilidade de “Palito” vir a ser libertado. “Dizem que está a preparar-se para [se fazer passar por] doido” durante o julgamento.
Dizem que António não trocava uma palavra com Manuel e que Mário ainda tentou manter relações com o irmão — até ao incidente com a mulher.
As partilhas não terão deixado os irmãos em pé de igualdade. Mário, além de lidar com os seus pequenos terrenos, tem de trabalhar à jorna nos terrenos dos outros, no cultivo dos produtos locais mais procurados — a vinha, os olivais, os castanhais, a amêndoa e a maçã.
A primeira vez que o vimos, em Maio, Mário vinha a subir um carreiro, acartando um saco às costas, quando nos viu à conversa com Filomena. Gritou para a mulher: “Tu, vai para casa que já falaste demais.” Depois, ameaçou-nos. Por fim, ofereceu cerveja e vinho.
É um homem baixo e encorpado, de face rósea, com um bigode alourado. Perdeu recentemente um dedo na lavoura e repete várias vezes que “ainda [está] à espera do seguro”, mostrando o dedo em falta: fala mais deste que do irmão.
Está suado do trabalho, com galochas e roupa de trabalho suja, o cabelo empastado do esforço físico e recusa chamar-se Mário, ser irmão de “Palito”, exigindo ser tratado por João — só respondeu quando o tratámos assim. Durante alguns minutos pode ter mentido sobre tudo: “Não sei ler, mas sei estreler”, diz. (Um antigo colega contesta-o: “Estudei com ele e ele fez pelo menos a 4.ª classe. Todos os irmãos fizeram. O ‘Palito’ até deve ter feito mais.”)
“Eu sou um homem que vive com 450 euros e é a minha mulher que os ganha [no lar de idosos de Trevões]. Sem ela, como é que eu vivia?”, diz Mário. Nas semanas em que ali estive, foi a única vez que ouvi um homem elogiar a mulher. “Eu trago dinheiro, ele traz comida, é assim que fazemos vida”, corrobora Filomena, ainda especada à porta de casa.
Comem “batatas e azeitonas todos os dias”, que é o que Mário cultiva. “Tirando beber umas minis, que isso bebo, a minha vida é só trabalho”, diz. Mais calmo e já de cerveja na mão explica que “se a [sua] mulher morresse arranjava outra, mas o [seu] irmão não era assim”.
Joaquim, que mora a meio caminho entre os dois irmãos, conta que “Palito” repetia muito uma frase: “Aqui entrou uma mulher; a sair alguma, só morta.” O sr Joaquim só tem uma coisa a dizer sobre o caso: “Tenho ali uma cassete com um filme de Entre-Os-Rios, também deviam fazer um filme disto.” Ri-se e oferece tinto e chouriço.
Segundo Carlos, uma pipa de vinho produz 500 litros e “dá benefício de 2 mil euros”. “Benefício” é o termo técnico para o que um produtor recebe pelo vinho que vende como vinho do Porto; Mário tem uma microprodução de vinho na garagem, que inclui lagar e uma pipa semi-industrial. Faz “250 litros por ano”, isto é, meia pipa: mil euros ao ano.
Tem um jipe Nissan que foi topo de gama há anos, remanescente dos dinheiros da emigração na construção civil; mas reclama com a qualidade do sinal dos quatro canais da TDT. É este o paradoxo em que vivem os habitantes de Trevões: uma côdea de dinheiro que restou da emigração, a casa construída a pulso e batatas com batatas para o jantar.
Mário, que tem dois filhos emigrados e “um já com contrato!” — dado que repete muito —, aponta para um altar a Nossa Senhora de Fátima erguido numa das paredes de sua casa. “Sou um homem temente a Deus.” “Fui eu que fiz [o altar].” Já quase sem força mas não sem orgulho: “À noite, está sempre ligada.” E de facto à noite lá está a brilhar no escuro.
A última coisa que ouvi deste homem, nessa primeira conversa em que me pareceu um ser ferido, foi: “Se eu pudesse contava tudo, amigo. Mas é família.” Fiquei na dúvida se por família Mário estava a referir-se só a “Palito” ou a incluir Maria Angelina. Segundo fontes familiares, Angelina não era a única a sofrer violência doméstica.
Já separada, Angelina quis ir uns tempos para França; “Palito” ameaçou o transportador e chamou-lhe corno. Os seus actos públicos de agressão aumentaram com a separação e chegou também a apontar uma arma ao filho e agredir a filha.
O que espoleta a espiral de violência, diz-nos Fernando Almeida, “é a separação do objecto amado — e no caso admirado”: Angelina sair de casa. “Pelos testemunhos, ela estava uns furos acima do que ele pensaria obter. Torna-se o objecto central da sua razão de vida. A partir daí a existência dele só tem sentido com ela. Ou é com ela ou não é com ninguém.”
O homicídio terá então sido o culminar de um processo de desintegração que se iniciou quando a mulher saiu de casa e que levou o filho Rui, que na altura da separação ficou com o pai, a cortar relações com este.
A primeira vez que bati à porta de casa de uma das amigas de Maria Angelina que testemunharam a seu favor no caso contra “Palito”, ela escusou-se a comentar, afirmando ter de “fazer o comer” para o marido. Pela janela, via-se o marido já a jantar — e também se o ouvia a mandá-la para dentro.
A segunda amiga disse exactamente o mesmo, mas insisti: o seu marido já está a comer. A violência começou cedo? Ela anuiu com a cabeça. Era muita? Anuiu com a cabeça. Ela evitava contar? Anuiu com a cabeça. Porque é que não queria contar? “Tenho de fazer o jantar para o meu marido.” E a porta fecha-se.
Meses depois do atentado — numa altura em que Angelina, de canadianas, voltara a casa, sendo visitada com regularidade pelos filhos (Sónia andava com uma espécie de corpete a proteger as costas) — um morador em Valongo contou-me: “A Elisa dizia que dava a vida pela sobrinha e deu. Agora você anda aqui a fazer perguntas às mulheres sobre violência doméstica quando a maior parte delas sofre o mesmo. E qual é a lição que este caso lhes dá? Que, se se divorciarem, acabam assim.”
Há dias, voltámos a Trevões e Valongo. Fonte próxima de Angelina disse-nos que “Palito” começou a bater logo ao início do casamento; e que Maria Angelina tentou esconder o facto por vergonha e uma estranha culpa. Mas também porque não valia de nada falar: “As outras mulheres sofrem o mesmo. E em muitos casos os pais [das vítimas] ou não acreditam ou acham que têm de se aguentar.”
A própria Maria Angelina diz-nos apenas: “Não sei ainda o que vai ser a minha vida; mas vou lutar.”